Uma menina se destacava na sua classe pela letra bonita e uma grafia
excepcionalmente correta, aprendidas na pequena escola que freqüentou
antes de entrar no ensino fundamental. Porém, quando a professora lhe
pedia para criar uma história, só escrevia sobre cachorros que
mordiam e bombas que explodiam. Esses temas, segundo ela mesma, refletiam
o seu ódio pela escrita, que aprendeu às custas de muito esforço,
repetição e nenhum prazer.
Esse é um dos muitos casos com os quais a professora da Faculdade de
Educação da USP Silvia de Mattos Gasparian Colello se deparou
em suas pesquisas e que a fez refletir sobre o processo de alfabetização
que torna o aprendizado mecânico, descontextualizado e um martírio
para as crianças.
Em 2003 e 2004, Silvia acompanhou dez professoras da primeira
série
do ensino fundamental, de duas escolas públicas e duas escolas privadas.
Sua conclusão foi que as professoras seguem uma metodologia antiquada
de ensino, baseada na incansável cópia de palavras e preenchimento
de lacunas.
Essa pesquisa, além de outros trabalhos desenvolvidos por ela e alguns
textos inéditos, compõe o livro A escola que (não) ensina
a escrever. A obra aborda os diversos erros cometidos pelas professoras nas
escolas e propõe caminhos para uma alfabetização mais
criativa e prazerosa para as crianças, que possibilite a formação
de adultos com boa produção de texto. “Este livro apresenta
o meu conceito de alfabetização, como eu acredito que deveria
ser feito. Eu quero que o meu aluno entenda e goste de ler e para isso acredito
que ler e escrever exige um contexto”, resume Silvia.
Entre
as práticas apontadas pela professora está a lição
de casa. No livro, a pesquisadora mostra diversos exemplos de exercícios
que exigem do aluno apenas a capacidade de copiar, seja uma letra, diversas
palavras sem conexão ou mesmo seu nome. Assim, a criança aprende
a escrever fragmentos que não se conectam, como se escrever fosse algo
mecânico, fora de uma função maior. “A criança
sabe escrever, mas não escreve como uma prática cotidiana e
eficiente. Uma professora chegou a dizer para um aluno que quanto mais vezes
ele copiasse seu nome, melhor. Isso só vai servir para que ele aprenda
que escrever é uma tarefa chata e que faz a mão doer”,
critica Silvia.
Para ela, o contexto é fundamental nessas tarefas. Estas devem fazer
parte do cotidiano da criança, para mostrar o porquê daquele
ensinamento e mesmo a real importância da escrita no dia-a-dia. “Ao
invés de tarefas de copistas, a professora pode propor que as crianças
escrevam a receita de um bolo que irão fazer ou uma lista de livros
que desejam que ela leia para eles”, sugere.
Um mito propagado pelas escolas, segundo Silvia, é o de que a dinâmica
de ensino na sala de aula deve ser homogênea, voltada para o aluno médio
da sala, ignorando as dificuldades individuais e colocando o professor como única
fonte de informação. “Assim, o professor simplesmente
desconsidera as diferenças de aprendizagem ou tenta compensar a heterogeneidade
oferecendo tarefas de grau médio, que podem ser fáceis para
um, possíveis para outro e impossíveis para aquele com maior
dificuldade.” Essa atitude – acrescenta – é prejudicial
não só para o aluno como também para a professora, já que
a criança desmotivada logo procura outra distração, como
brincar com colegas ou conversar, o que atrapalha o andamento da
aula.
O problema pode ser resolvido, segundo Silvia, com um simples
desenho diferente da dinâmica da aula. Ao invés de propor apenas uma
atividade, a professora pode oferecer dois ou três tipos de exercícios
para cada nível de aluno, dividir os alunos para que os mais avançados
ajudem aqueles com maior dificuldade ou mesmo criar exercícios flexíveis,
em que cada aluno pode produzir aquilo que é capaz. “Ao invés
de pedir uma redação de 20 linhas, a professora pode pedir que
escrevam uma história. Assim, quem consegue escrever mais o faz em
duas páginas e aquele com maior dificuldade escreve duas linhas, mas
que terão a mesma significância”, exemplifica.
A importância dada à quantificação da escrita é outro
vício extremamente prejudicial apontado pela pesquisadora. Com a obrigação
de preencher espaços determinados, a criança começa a
aprender truques para mostrar que escreveu mais, como fazer um grande desenho
na folha ou mesmo escrever uma palavra em cada linha. “São crianças
de apenas 8 anos que já aprendem como enganar a professora. Isso é um
claro sinal de como a escrita está dissociada do prazer”, diz
Silvia. “E esses truques vão sendo aprimorados durante toda a
vida: há poucos dias, uma aluna da Faculdade de Educação
me perguntou o quanto deveria escrever para o trabalho final da matéria,
como se a quantidade fosse fator determinante.” Os caminhos possíveis – À primeira vista,
o professor parece ser o verdadeiro responsável pela manutenção
desse processo antiquado de alfabetização, mas Silvia
faz questão de frisar que o problema não está na
falta de vontade dos docentes. “Uma coisa que percebi durante
a pesquisa nas escolas é que as professoras são muito
bem -intencionadas. A pedagogia antiquada que elas usam é um
problema de formação, de condições
de trabalho e também da falta de apoio pedagógico
dentro das salas de aula. Elas se sentem abandonadas”, relata.
A solução para esses problemas, indica Silvia, vai
muito além dos muros da escola. Além das iniciativas
básicas de reorganização da escola e de investimento
na formação e educação continuada dos
professores, é preciso uma postura favorável do governo
e uma intensa campanha de valorização da cultura
e da escrita na sociedade. “O Indicador Nacional de Alfabetismo
Funcional (Inaf) mostrou que apenas 26% dos leitores brasileiros
têm um nível de leitura crítica, sabem retirar
informações de um texto ou comparar dois textos diferentes.
Para mim, esses dados escondem uma verdade ainda mais alarmante
que os números do analfabetismo”, afirma Silvia, referindo-se
ao estudo realizado em 2006 pelo Instituto Paulo Montenegro, referente à população
de 15 a 64 anos em todo o País.
A curto prazo, Silvia propõe uma mudança nas atividades
propostas nas escolas, fazendo com que elas tenham um cunho social
e um propósito claro, que aproxime o uso da escrita ao seu
uso rotineiro. Outra proposta da professora é explorar a
heterogeneidade nas salas de aula, para ensinar lições
de convívio social e alteridade. “A alfabetização
sempre foi entendida como uma técnica de juntar letras para
formar sílabas e depois palavras e finalmente textos. Uma
prática pedagógica reducionista que não insere
a escrita no mundo da criança e que vai roubando o prazer
no aprender, afetando toda sua formação. Temos que
mudar essa visão e começar a pensar na formação
de sujeitos escritores. Não profissionais, mas pessoas que
consigam escrever textos com facilidade”, conclui Silvia. |