A seca e a falta de água de qualidade causada pelo seu
mau uso e gerenciamento, associadas à pobreza e a políticas
públicas mal direcionadas, serão os principais impactos
que os países da América Latina deverão enfrentar
no futuro como conseqüências das mudanças climáticas.
As alterações nos padrões das precipitações
pluviométricas ou mesmo o desaparecimento de glaciais afetarão
significativamente a disponibilidade hídrica para consumo
humano, agricultura e geração de energia. Como resultado,
tais impactos trarão um crescimento das enfermidades e mortes
entre as populações mais vulneráveis. “As
doenças diarréicas poderão aumentar drasticamente,
sobretudo no Nordeste brasileiro e em países andinos”,
disse o médico Ulisses Confalonieri, da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz), durante a exposição da segunda
parte do Relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças
Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) da ONU, ocorrida
no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, no dia 10
de abril.
No mesmo dia, todas as instituições parceiras do
IPCC nos cinco continentes divulgaram os relatórios regionais
do Sumário Executivo do Grupo II, que trata das vulnerabilidades
dos sistemas socioeconômicos e naturais associadas às
mudanças do clima. No IEA, cinco pesquisadores brasileiros
que participaram da produção desse volume expuseram
as principais conclusões científicas sobre como as
mudanças no clima afetarão a América Latina
e o Brasil. Além de Confalonieri, apresentaram suas exposições
o climatologista Carlos Nobre, do Centro de Previsão do
Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe), lead autor do capítulo América
Latina, Antônio Rocha Magalhães, executivo do Banco
Mundial e review editor do capítulo sobre Avaliação
das Práticas, Opções, Condicionantes e Capacidades
Adaptativas, Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas
da Amazônia e review editor do capítulo América
Latina, e José Marengo, do Inpe, um dos autores do capítulo
América Latina.
Os cientistas do IPCC não realizam pesquisas para as conclusões
dos relatórios. Trabalham com números já existentes,
ou seja, dados do clima observados durante décadas. Por
isso, um dos maiores problemas dos capítulos dedicados à América
Latina foi a falta de séries históricas de monitoramento
do clima que possibilitassem previsões com alto grau de
certeza da forma como foi possível realizar na Europa.
O encontro
no IEA:
previsões
sombrias para
a América Latina
“De 29 mil séries de dados, 28 mil são européias.
Portanto, os resultados do Grupo II dizem respeito principalmente à ciência
da Europa. Há exceções na América Latina,
especialmente no Chile, Costa Rica e México. Mas a verdade é que
o Brasil possui um verdadeiro vazio sobre o que tem ocorrido nos
sistemas físicos e biológicos”, disse Nobre.
Como foi possível, então, aos cientistas chegar às
conclusões sobre a América Latina se houve um “grande
hiato” de dados a ser preenchido nesta parte do relatório?
Essa foi uma pergunta de um dos presentes no auditório do
IEA. A resposta é que ou um evento pode ocorrer com alto
grau de certeza – classificação que no relatório
do IPCC ganha três estrelas – ou o mesmo pode ocorrer
com graus menores de certeza. “Há locais onde já estão
ocorrendo alterações nos sistemas físicos
e biológicos que, com alto grau de certeza, estão
relacionadas às mudanças no clima. Na América
Latina falta monitoramento de longo prazo para que se possa efetivamente
afirmar e atribuir certos efeitos ao aquecimento global. Nesse
caso, não teremos alto grau de certeza nas previsões
enquanto não observarmos tais eventos ocorrendo de fato
na natureza”, disse Nobre.
“Em saúde pública, problemas com a água
significam doenças diarréicas. Não existem,
no relatório, informações sobre os desafios
de saúde que o Brasil, especificamente, deverá enfrentar.
Os dados de malária e dengue, por exemplo, são de
projeções globais, principalmente da África.
Já sabemos as previsões globais e, com base nisso
e mesmo nos dados mais recentes que temos do Brasil, podemos presumir
as conseqüências para a saúde pública”,
disse Confalonieri, que coordenou o capítulo dedicado à saúde
humana.
Em regiões pobres, os impactos do aquecimento global deverão
comprometer o desenvolvimento infantil e os casos de morbidade
e mortalidade tenderão a aumentar, disse Confalonieri. O
médico afirma que também está previsto um
crescimento de doenças cardiorrespiratórias devido à maior
concentração de ozônio na troposfera, que é a
camada da atmosfera imediatamente acima do solo e que se estende
até 17 quilômetros de altura. Mapeamento necessário – Da mesma forma que muitos
países em desenvolvimento, o Brasil reúne todas as
condições de vulnerabilidade às alterações
climáticas – especialmente pobreza associada a políticas
públicas frágeis e pouco integradas a um planejamento
macro dos impactos relacionados às mudanças do clima.
Por isso, existe um alto grau de possibilidade de os sistemas físicos,
biológicos, sociais e econômicos sofrerem os impactos
das alterações do clima, mostrou o executivo do Bird.
Em razão da alta suscetibilidade aos impactos do aquecimento
global, os cientistas presentes no IEA lançaram um alerta
aos governos e à sociedade: o País precisa agir o
mais cedo possível para minimizar riscos ou evitar que certos
impactos tenham danos permanentes. “Há muita informação
na literatura científica sobre as classificações
de vulnerabilidades. Porém, ainda não temos no Brasil
um mapeamento das vulnerabilidades em todos os setores da sociedade,
inclusive sobre temas como biomassa e biocombustíveis. Esse
grande mapa ainda precisa ser feito e deve partir da comunidade
científica”, disse Nobre.
Os impactos
das mudanças climáticas na América Latina
poderão
resultar em
aumento de
enfermidades e mortes entre as populações mais vulneráveis. “As doenças
diarréicas
poderão
aumentar
drasticamente, sobretudo no Nordeste
brasileiro e em países andinos”, disse o médico
Ulisses
Confalonieri,
da Fiocruz,
durante
encontro
no IEA Na metade deste século, os aumentos na temperatura associados à diminuição
da água do solo levarão a uma savanização
de florestas tropicais no leste da Amazônia, mostrou Fearnside.
Segundo o pesquisador, a vegetação do semi-árido
tenderá a ser substituída por vegetação
do clima árido. Em áreas mais secas existe o risco
de salinização e desertificação de
terras agricultáveis. A produtividade de algumas culturas
importantes deverá diminuir e a pecuária declinar.
Existe um risco significativo à biodiversidade com a perda
de espécies em extinção nas florestas tropicais.
A distribuição e a produção de algumas
espécies de peixes sofrerão mudanças regionais
devido à mudança do clima, com conseqüências
para a pesca e a aqüicultura.
Na Mesoamérica, a elevação da temperatura
da superfície das águas dos oceanos trará efeitos
adversos sobre as barreiras de corais e causará alterações
na localização dos estoques pesqueiros do sudeste
do Pacífico.
.
Políticas públicas – As ações
visando à adaptação relacionada aos impactos
do aquecimento global já estão ocorrendo em diversos
países. Projetos de infra-estrutura prevendo a elevação
dos oceanos e desenhados para proteger cidades costeiras já são
uma realidade nas ilhas Maldivas e na Holanda, por exemplo. No
Canadá, a Confederation Bridge, construída numa altura
acima do padrão, é outro caso de medida adaptativa
aos impactos das mudanças climáticas. “As adaptações
dependem de recursos naturais, sociais, do direito, das instituições,
da governança, dos recursos humanos e da tecnologia dos
países. Mas é bom lembrar que nem sempre a alta capacidade
adaptativa significará necessariamente a redução
das vulnerabilidades e um exemplo isso é o Katrina”,
disse Magalhães, referindo-se ao furacão que devastou
cidades do sul dos Estados Unidos, em agosto de 2005. O aquecimento global de pelo menos 0,6ºC até 2100,
que os cientistas prevêem que certamente ocorrerá em
razão
do nível das emissões ocorridas no período
pós-Revolução Industrial, já demanda
medidas adaptativas nas regiões de maior vulnerabilidade,
afirmou o executivo do Banco Mundial. Em caráter não
oficial, Magalhães disse acreditar que o Bird certamente
apoiará programas e políticas para enfrentar os impactos
resultantes do aquecimento global.
O texto do Sumário Executivo do Grupo II do IPCC traz que
alguns países latino-americanos têm tomado medidas
adaptativas aos impactos do aquecimento do globo, particularmente
através da conservação de ecossistemas importantes,
do gerenciamento de riscos na agricultura, estratégias de
contenção de enchentes e encostas e sistemas de monitoramento
epidemiológico. Porém, a eficácia desses esforços
se perde pela falta de informações básicas
e pela falta de observação e monitoramento dos sistemas,
bem como pela inadequação de políticas, instituições
e tecnologias, além de baixa renda e péssimas condições
de moradia da população, entre outros problemas.
Para Nobre, “faltam capacitação, referências
políticas, monitoramento e tecnologias, além de um
entendimento profundo de como as mudanças climáticas
afetarão os ecossistemas na América Latina”. Debate – O Sumário Executivo do Grupo II traz considerações
setoriais sobre ecossistemas, florestas e produção
de alimentos e fibras, áreas baixas e encostas, indústria,
moradia, sociedade e saúde, além das projeções
regionais para os cinco continentes. A falta de dados sobre o Brasil
deixou em branco qualquer alusão às condições
do futuro climático do País.
Presente na platéia, o geógrafo Aziz Ab’Sáber,
Professor Emérito do IEA, fez duras críticas a qualquer
conclusão sobre clima que não leve em consideração
as alterações das correntes quentes e frias dos oceanos. “Os
mapas do IPCC não incluem as correntes marítimas
quentes e frias. Como discutir aquecimento global sem levar em
conta isso?”, questionou.
Para o geógrafo, é necessário também
que os cientistas considerem o paleoclima da região, pois “os
acontecimentos recentes são uma réplica antrópica
do que foi o ótimo climático no aloceno”, disse.
Segundo o professor, houve um período naturalmente quente
no passado, quando houve a retropicalização do Brasil. “Talvez
o paleoclima seja uma das partes mais fracas do IPCC, o senhor
tem razão”, respondeu Nobre. “Estudar o paleoclima é uma
excelente maneira de estudar a dinâmica do clima como um
todo. Mas não há nenhuma garantia de que só o
paleoclima nos dará projeções seguras para
o futuro. Os modelos matemáticos estão cada vez mais
confiáveis e a ciência tem acertado muito nos últimos
anos.”
As previsões
do relatório
Estes são os principais efeitos previstos em razão
do aquecimento global, segundo o Relatório do Painel Intergovernamental
de Mudanças Climáticas (IPCC)
* Aumento da disponibilidade de água em áreas tropicais úmidas
e altas latitudes
* Seca e diminuição da disponibilidade de água
em médias latitudes e nas regiões semi-áridas
de baixas latitudes
* Centenas de milhões de pessoas expostas a um crescente
estresse hídrico
* Mais de 30% das espécies sob risco crescente de extinção
* Corais ameaçados,
ou mesmo uma mortandade generalizada
* Alterações em ecossistemas
* Impactos negativos sobre
as atividades produtivas
de pequenos agricultores
e pescadores
* Tendência à redução da produtividade
de cereais em regiões de baixas latitudes
* Tendência ao aumento
da produtividade de
alguns cereais em médias
e altas latitudes
* Custos crescentes em razão de cheias e tempestades
* Aumento dos casos de desnutrição, diarréia,
doenças infecciosas e
cardiorrespiratórias
* Aumento de morbidade
e mortalidade em razão
das ondas de calor,
inundações e secas
* Alterações na
distribuição dos vetores
de algumas doenças
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