Durante séculos, o Japão bastou-se com seus problemas
e mistérios. Não havia a tal fúria capitalista
do mundo dito “ocidental-civilizado”. A isolada cultura
nipônica seguia o seu curso contínuo, lento e inexorável.
Hoje, bem se podia dispensar grande parte da parafernália
advinda pós-Hiroshima. O excesso de tudo borbulha, fria
e ruidosamente, no alvorecer do ano novo. Nas metrópoles
não há indícios de poluição,
mas algo no ar intoxica. Não há mais tempo para apreciar
as estéticas dos jardins. Nem para escutar o pouco que ainda
resta do grasnido áspero do corvo, do canto estridente da
cigarra e do coaxar denso do kaeru (rã).
O japonês vive mais na rua do que em casa. Mas é na
rua que se constata uma sociedade igual, justa e homogênea.
Por esse motivo o Japão é um país seguro.
Idosos e mulheres podem sair sozinhos. Há senhoras andando
de bicicleta nas noites frias do inverno. Em Osaka, numa cafeteria
com mesas sobre a calçada no movimentado bairro de Namba,
vi uma jovem deixando o café com creme, o celular e a carteira
abandonados por alguns minutos. Nesses cafés, chega a ser
normal dorminhocos “oferecerem” documentos aos passantes.
Aqui, a consciência de grupo se sobrepõe à individual.
Ter um carro significa possuir uma casa ambulante. Automóveis
estacionados se transformam em lar. Dentro, os motoristas comem,
dormem, assistem à TV, lêem jornal, fazem a barba
e até escovam os dentes. A solidão é uma tendência:
não é preciso fazer amizade ou entrar na intimidade
de alguém. Os relacionamentos se resumem apenas ao meio
profissional. É hábito não ter envolvimento
com vizinhos, tampouco receber amigos em casa. As relações
são permeadas por ares de cordialidade. Abraços,
beijinhos, apertos de mão e toques corporais significam
invadir terreno alheio.
O grande centro comunitário circula entre as quatro paredes
de um lar. E não há transparência da vida familiar.
Não é por acaso que o shoji (porta ou janela corrediça
forrada com papel branco) deixa passar apenas a luz, mas não
o olhar. Na família japonesa, o relacionamento vertical é tradicionalmente
mais importante que o horizontal: a relação entre
pais e filhos é mais forte que o envolvimento entre marido
e mulher.
Há uma certa leveza espacial nos domicílios pelas
poucas luzes, cores, divisórias, arranjos e mobílias.
Por outro lado, há sempre cantos abarrotados com inúmeros
objetos gerados pelo excesso consumista. A segunda maior economia
do mundo satisfaz plenamente as necessidades da família
e entope lugares da casa com o acúmulo de bens materiais.
O Japão vive um conflito entre o Oriente e o Ocidente.
Ritual e prazer – Há poucas praças públicas.
Mas os sentô (banho comunitário), de certo modo, substituem
as trocas que as praças promovem, como o ver e o ser visto.
De origem popular, o primeiro sentô foi idealizado em 1590
e buscou ser uma réplica urbana do onsen (água termal).
O banho no Japão é uma paixão e tem sido mais
utilizado para se atingir a pureza do que a limpeza. Todos os sentô aderem
ao mesmo plano básico: a retirada dos sapatos na entrada.
Divididos em ambientes masculino (cor azul) e feminino (cor vermelho),
a regra é todo mundo nu. Nada de roupão, toalha ou
roupa de banho. Os pais levam seus filhos ou filhas com muita naturalidade
e se divertem acompanhados: conversam, brincam, se abraçam,
riem.
Os banhos são freqüentados como ritual, distração
e prazer. Antes da 2ª Guerra Mundial podia-se encontrá-los
a cada esquina. A primeira regra nos banhos é, sentado,
ensaboar-se abundantemente. Com o corpo físico limpo entra-se
no ofurô (banho de imersão com água quente).
Ou seja, quanto mais limpo você estiver, mais adequada ficará a água
para o próximo. Após o longo banho é o momento
para esfriar o corpo e relaxar. Há confortáveis lugares
ao ar livre em pequeno jardim japonês. Deita-se numa esteira
de bambu ou senta-se calmamente numa pedra. E a mente pode ser
esvaziada. Vez ou outra, no espaço masculino, adentram jovens
moças profissionais uniformizadas. Mas os homens não
estão nem aí. E elas cumprem rigorosamente a atividade
de cuidadoras do ambiente. O que se busca fundamentalmente nos
sentô é o relaxamento, pois o cotidiano das cidades é muito
estressante.
País formatado para cumprir regras e obrigações,
há uma certa pressa em comprar e ser pontual. Os prédios
voltados ao consumo têm proporções arquitetônicas
megalomaníacas. Algumas redes de lojas de departamentos
pertencem às próprias companhias de transporte e
estão construídas sobre as estações
de metrô. Assim, caminhos para consumir ou para acessar os
trens se confundem. Na superfície da cidade o brilho das
vitrinas e painéis publicitários ofusca. No subterrâneo,
o intenso frenesi agride.
Outro gigantismo: viadutos. Superposições de planos,
curvas justapostas, configurações helicoidais. São
formas plásticas que giram incessantemente como carrossel.
Ou carro-céu? “No Japão, transite no contrafluxo”,
sugeriu a amiga brasileira R. Koshiba. Estar em Kyoto – a
cidade-alma do país – significa amenizar o choque
da pós-modernidade. Para se ter uma idéia do porte
da antiga capital, basta dizer que há 17 sítios tombados
como patrimônio mundial pela Unesco. Dentre eles, o jardim
globalmente famoso, criado pelo pintor e jardineiro Soami (falecido
em 1525), o Ryoanji.
Nesse templo budista não há nada de extraordinário. É um
simples jardim de pedras. Mas lá se percebe a sabedoria
de uma pré-cultura ocidental capitalista. As pessoas, como
num teatro, assistem àquele cenário por minutos ou
horas. Nesse lugar compreende-se o sentido de o vazio ser forma
e de a forma ser vazio. Para os japoneses, sempre que há vazio
há forma. E o mesmo é verdadeiro para o impulso vital,
o sentimento, os sentidos, o pensamento.
Esse singelo local possui apenas 250 metros quadrados (25 m x 10
m). O arranjo do jardim Zen em relação ao jardim
dos nobres da Idade Média é completamente diferente:
pontua a inexistência de árvores. O Ryoanji conta
apenas com 15 pedras grandes numa base de seixos brancos, ordenados
em forma de ondas. O jardim seco pode sugerir uma folha branca
com algumas manchas, um céu com poucas nuvens, um campo
nevado com raras árvores, um oceano com pequenas ilhas,
um manjar branco com ameixas pretas. De qualquer modo, fica para
cada espectador descobrir significados – eventualmente apenas
receber, procurando nada imaginar ou pensar. Ou seja, o exercício
de deixar a forma adentrar nosso ser sem qualquer pré-conceito.
Hoje é fundamental que o Japão desenvolvido valorize
a diversidade dos seus antigos modos de conceber a vida. O Ryoanji é daqueles
lugares onde ainda se pode ouvir cair a neve – ou a chuva – suave
e intermitente. E é um espaço adequado para saborear
a natureza em cada uma das quatro estações do ano.
Os veteranos poetas de haiku – a poesia japonesa de 17 sílabas – encontraram
nesse universo inumeráveis temas. Como o clássico
haiku escrito por M. Basho em 1692:
Furuike ya
kawazu tobikomu
mizuno oto
No velho lago
uma rã salta
o som da água
Atílio Avancini é professor da Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da USP. Suas fotos feitas no Japão estão
em exposição atualmente no Departamento de Jornalismo
e Editoração da ECA
Entre a tradição
e a modernidade
Kyoto (antiga Heian-Kyo) foi capital do Japão por mais
de um milênio, da era Heian (794) à era Meiji (1868).
Cidade calma e tradicional, possui vários sítios
tombados como patrimônio mundial. Localiza-se na ilha de
Honshu, região de Kansai, dista 60 quilômetros de
Osaka e 500 quilômetros de Tokyo. Sua população é de
1,4 milhão de habitantes. Kyoto lida simultaneamente com
a tradição e a modernidade, o Oriente e o Ocidente,
o campestre e o urbano, o artesanal e o industrializado.
A Kyoto University of Foreign Studies (KUFS) – conhecida
como Kyoto Gaidai – completa, em 2007, 60 anos de fundação
e conta com 4.800 alunos. A Habilitação em Português,
chefiada pelo professor Ikunori Sumida, tem cerca de 280 alunos
(70 por ano). O curso de Português tem duração
de quatro anos e se iguala em procura com os de Espanhol, Chinês,
Japonês, Francês, Alemão e Italiano. O destaque
da KUFS, direcionada para o ensino de línguas estrangeiras, é o
inglês. Fui o primeiro professor desse convênio de
11 anos entre a USP e a KUFS, representadas pela reitora Suely
Vilela e pelo presidente Yoshikazu Morita. O convênio acolhe
principalmente estudantes de graduação. A realização
desses intercâmbios se ajusta às novas demandas de
internacionalização e de modernização
da USP. (A. A.).
Mais perto do homem de Kyoto
No Japão, de abril de 2006 a março de 2007, desenvolvi
um trabalho pedagógico focando a “Cultura Brasileira
e Comunicação” no Departamento de Estudos Luso-Brasileiros
da Kyoto University of Foreign Studies (KUFS).
Para enfrentar os desafios em sala de aula e na vida cotidiana
de Kyoto, lancei-me nas áreas da literatura, arte visual
e música. A fim de encorajar os estudantes a deixar a passividade,
fazer perguntas e se lançar mais abertamente ao universo
das idéias do outro – e simultaneamente para formatar
também as suas próprias idéias –, propus
experimentos com três autores da arte moderna brasileira:
a poesia de Cecília Meireles, a pintura de Tarsila do Amaral
e a música de Tom Jobim. Com esse “tesouro”,
pude avançar cuidadosamente, evitando a acomodação.
O enfoque na escritora Cecília Meireles (1901-1964) foi
baseado no livro Ou isto ou aquilo, escrito para o público
infantil e adulto. Assim, cada fragmento poético – possuindo
narrativa própria, rima interna e traço cultural – foi
discutido criativamente com os alunos. Nesse âmbito, procurei
ser conduzido pela simplicidade e profundidade das ondas poéticas
de Meireles, convidando os alunos a compartilhar tal vivência.
O foco na pintora Tarsila do Amaral (1886-1973) foi a partir
de algumas de suas mais importantes obras, que foram significativas
na ruptura estilística das artes plásticas brasileiras.
Imagens como A japonesa (1920), A negra (1923), Abaporu (1928),
Antropofagia (1929) e Operários (1933) foram reproduzidas
pelos alunos na busca da similaridade – e não da cópia –,
na tentativa de facilitar análises estéticas e simbólicas
das obras.
Chega a ser natural a atração do Japão pelo
gênero musical bossa nova: calmo, romântico, leve,
discreto, ritmado e intimista. Desse modo, tomei a iniciativa de
levar meu violão em sala de aula para tocar e cantar algumas
canções do genial músico Tom Jobim (1927-1993),
compostas nos anos 50 e 60: Garota de Ipanema, Este seu olhar,
Eu sei que vou te amar, Corcovado, Desafinado, Samba de uma nota
só e A felicidade.
O som da bossa nova trouxe brilho aos olhos dos estudantes, os
corpos renovaram os movimentos, as barreiras se diluíram.
Com a introdução de elementos didáticos brasileiros
e afinados com a identidade japonesa, pude promover a troca de
idéias: dar prazer aos ouvidos e estimular o pensar. A bossa
nova favoreceu um trabalho de compreensão das letras, de
discussão sobre os “anos de ouro” da cidade
do Rio de Janeiro, de vivências rítmicas, de experiências
bem- sucedidas com o coral formado por alunos em sala de aula. Olhar estrangeiro – Fora dos domínios universitários,
minha troca com a gente de Kyoto processou-se no mesmo eixo: assumir
um olhar estrangeiro e uma vontade de conhecer. Pensando num futuro
ensaio fotográfico a ser apresentado no Centenário
da Imigração Japonesa no Brasil, em junho de 2008,
aproveitei os finais de semana e as férias escolares para
exercitar o gênero fotografia de rua: flagrantes espontâneos
de pessoas no espaço público.
Meu desejo de tirar boas fotos deu energia para ir adiante e
chegar mais perto do homem de Kyoto. Como repórter, mergulhei na
realidade urbana para extrair uma visão subjetiva do mundo.
Quando reflito calmamente sobre algumas imagens, sinto que fui
além dos limites de minha experiência. Eu sempre amei
as cidades e seus cidadãos.
E fotografar foi deixar a teoria de lado e partir em direção à prática.
Conforme Henri Cartier-Bresson, “ver é um desfrute
para o olho, deixando os pensamentos conceituais
em repouso”.
Para um fotógrafo, a homogênea paisagem natural do
Japão exerceu muito fascínio e descoberta, como a
intersecção contrastante a cada estação
do ano. Nas saídas fotográficas busquei um sentido
investigativo e social nas fotos. Foquei especificamente o elemento
humano inserido na cidade: luzes, sombras, formas, linhas, texturas,
movimentos, emoções, comportamentos, gestos e olhares.
Assim, os vários aspectos dos sentidos, alavancados pelo
refinamento da cultura japonesa, puderam ser simultaneamente trabalhados.
Face a face com a vida de Kyoto, procurei revelar templos tombados,
jardins secos, parques e rios, festas populares, jogos esportivos,
banhos comunitários. Não por acaso, senti também
a necessidade de escrever uma crônica mensal de eventos ou
fenômenos da natureza na ordem em que eles se sucederam,
como a Sakura (flor da cerejeira), em abril, o Kodomo no hi (dia
da criança), em 5 de maio, a Aoi Matsuri (procissão
com costumes aristocráticos da era Heian), em 15 de maio,
o Gion Matsuri (festival popular com carros alegóricos),
em 17 de julho, o Daimonji (fogo para as almas ancestrais retornarem
aos seus mundos), em 16 de agosto, e o Jidai Matsuri (desfile da
história do Japão da ea Heian à era Meiji),
em 22 de outubro.
Tais considerações dão uma idéia dos
desafios que enfrenta um professor estrangeiro no Japão.
Minha proposta pedagógica buscou minimizar o choque de olhares
para o exercício do diálogo entre povos de culturas
tão díspares. Como afirma o educador R. Richterich: “Qualquer
que seja o processo desenvolvido e as áreas exploradas pela
pedagogia e didática das línguas estrangeiras, todos
os esforços tendem sempre a um só objetivo: melhor
ensinar para ajudar a
melhor aprender”. Como brasileiro, constatei que temos muita versatilidade para
lidar com os desafios da vida e somos queridos no exterior. Não
por acaso, o Brasil é o país que acolhe a maior colônia
nipônica do mundo. Fica claro perceber o sentido – e
a forma – que o Brasil tem como “país-coração”.
Mas essa particularidade ainda não foi integralmente reconhecida
e conscientizada por nossa gente. De volta a São Paulo,
no primeiro final de semana motorizado, tive o desafeto de encontrar
o carro de meu filho assaltado: levaram o som,
três álbuns de fotografia do Japão e, incrível,
o meu estimado violão.
No dia seguinte, na escola de música de uma amiga, senti
que os melhores violões do mercado são japoneses.
E aproveitei para agendar umas aulas de aprimoramento em bossa
nova. Nada é por acaso e tudo é aprendizado. Certas
culturas antigas reconheciam que o número de sentidos que
temos a desenvolver poderia chegar a doze.
ATÍLIO AVANCINI, especial para o Jornal da USP
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