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© Atílio Avancini

Durante séculos, o Japão bastou-se com seus problemas e mistérios. Não havia a tal fúria capitalista do mundo dito “ocidental-civilizado”. A isolada cultura nipônica seguia o seu curso contínuo, lento e inexorável. Hoje, bem se podia dispensar grande parte da parafernália advinda pós-Hiroshima. O excesso de tudo borbulha, fria e ruidosamente, no alvorecer do ano novo. Nas metrópoles não há indícios de poluição, mas algo no ar intoxica. Não há mais tempo para apreciar as estéticas dos jardins. Nem para escutar o pouco que ainda resta do grasnido áspero do corvo, do canto estridente da cigarra e do coaxar denso do kaeru (rã).

O japonês vive mais na rua do que em casa. Mas é na rua que se constata uma sociedade igual, justa e homogênea. Por esse motivo o Japão é um país seguro. Idosos e mulheres podem sair sozinhos. Há senhoras andando de bicicleta nas noites frias do inverno. Em Osaka, numa cafeteria com mesas sobre a calçada no movimentado bairro de Namba, vi uma jovem deixando o café com creme, o celular e a carteira abandonados por alguns minutos. Nesses cafés, chega a ser normal dorminhocos “oferecerem” documentos aos passantes. Aqui, a consciência de grupo se sobrepõe à individual.

© Atílio Avancini

Ter um carro significa possuir uma casa ambulante. Automóveis estacionados se transformam em lar. Dentro, os motoristas comem, dormem, assistem à TV, lêem jornal, fazem a barba e até escovam os dentes. A solidão é uma tendência: não é preciso fazer amizade ou entrar na intimidade de alguém. Os relacionamentos se resumem apenas ao meio profissional. É hábito não ter envolvimento com vizinhos, tampouco receber amigos em casa. As relações são permeadas por ares de cordialidade. Abraços, beijinhos, apertos de mão e toques corporais significam invadir terreno alheio.

O grande centro comunitário circula entre as quatro paredes de um lar. E não há transparência da vida familiar. Não é por acaso que o shoji (porta ou janela corrediça forrada com papel branco) deixa passar apenas a luz, mas não o olhar. Na família japonesa, o relacionamento vertical é tradicionalmente mais importante que o horizontal: a relação entre pais e filhos é mais forte que o envolvimento entre marido e mulher.

Há uma certa leveza espacial nos domicílios pelas poucas luzes, cores, divisórias, arranjos e mobílias. Por outro lado, há sempre cantos abarrotados com inúmeros objetos gerados pelo excesso consumista. A segunda maior economia do mundo satisfaz plenamente as necessidades da família e entope lugares da casa com o acúmulo de bens materiais. O Japão vive um conflito entre o Oriente e o Ocidente.

© Atílio Avancini

Ritual e prazer – Há poucas praças públicas. Mas os sentô (banho comunitário), de certo modo, substituem as trocas que as praças promovem, como o ver e o ser visto. De origem popular, o primeiro sentô foi idealizado em 1590 e buscou ser uma réplica urbana do onsen (água termal). O banho no Japão é uma paixão e tem sido mais utilizado para se atingir a pureza do que a limpeza. Todos os sentô aderem ao mesmo plano básico: a retirada dos sapatos na entrada. Divididos em ambientes masculino (cor azul) e feminino (cor vermelho), a regra é todo mundo nu. Nada de roupão, toalha ou roupa de banho. Os pais levam seus filhos ou filhas com muita naturalidade e se divertem acompanhados: conversam, brincam, se abraçam, riem.

Os banhos são freqüentados como ritual, distração e prazer. Antes da 2ª Guerra Mundial podia-se encontrá-los a cada esquina. A primeira regra nos banhos é, sentado, ensaboar-se abundantemente. Com o corpo físico limpo entra-se no ofurô (banho de imersão com água quente). Ou seja, quanto mais limpo você estiver, mais adequada ficará a água para o próximo. Após o longo banho é o momento para esfriar o corpo e relaxar. Há confortáveis lugares ao ar livre em pequeno jardim japonês. Deita-se numa esteira de bambu ou senta-se calmamente numa pedra. E a mente pode ser esvaziada. Vez ou outra, no espaço masculino, adentram jovens moças profissionais uniformizadas. Mas os homens não estão nem aí. E elas cumprem rigorosamente a atividade de cuidadoras do ambiente. O que se busca fundamentalmente nos sentô é o relaxamento, pois o cotidiano das cidades é muito estressante.

País formatado para cumprir regras e obrigações, há uma certa pressa em comprar e ser pontual. Os prédios voltados ao consumo têm proporções arquitetônicas megalomaníacas. Algumas redes de lojas de departamentos pertencem às próprias companhias de transporte e estão construídas sobre as estações de metrô. Assim, caminhos para consumir ou para acessar os trens se confundem. Na superfície da cidade o brilho das vitrinas e painéis publicitários ofusca. No subterrâneo, o intenso frenesi agride.

© Atílio Avancini

Outro gigantismo: viadutos. Superposições de planos, curvas justapostas, configurações helicoidais. São formas plásticas que giram incessantemente como carrossel. Ou carro-céu? “No Japão, transite no contrafluxo”, sugeriu a amiga brasileira R. Koshiba. Estar em Kyoto – a cidade-alma do país – significa amenizar o choque da pós-modernidade. Para se ter uma idéia do porte da antiga capital, basta dizer que há 17 sítios tombados como patrimônio mundial pela Unesco. Dentre eles, o jardim globalmente famoso, criado pelo pintor e jardineiro Soami (falecido em 1525), o Ryoanji.

Nesse templo budista não há nada de extraordinário. É um simples jardim de pedras. Mas lá se percebe a sabedoria de uma pré-cultura ocidental capitalista. As pessoas, como num teatro, assistem àquele cenário por minutos ou horas. Nesse lugar compreende-se o sentido de o vazio ser forma e de a forma ser vazio. Para os japoneses, sempre que há vazio há forma. E o mesmo é verdadeiro para o impulso vital, o sentimento, os sentidos, o pensamento.

Esse singelo local possui apenas 250 metros quadrados (25 m x 10 m). O arranjo do jardim Zen em relação ao jardim dos nobres da Idade Média é completamente diferente: pontua a inexistência de árvores. O Ryoanji conta apenas com 15 pedras grandes numa base de seixos brancos, ordenados em forma de ondas. O jardim seco pode sugerir uma folha branca com algumas manchas, um céu com poucas nuvens, um campo nevado com raras árvores, um oceano com pequenas ilhas, um manjar branco com ameixas pretas. De qualquer modo, fica para cada espectador descobrir significados – eventualmente apenas receber, procurando nada imaginar ou pensar. Ou seja, o exercício de deixar a forma adentrar nosso ser sem qualquer pré-conceito.

Hoje é fundamental que o Japão desenvolvido valorize a diversidade dos seus antigos modos de conceber a vida. O Ryoanji é daqueles lugares onde ainda se pode ouvir cair a neve – ou a chuva – suave e intermitente. E é um espaço adequado para saborear a natureza em cada uma das quatro estações do ano. Os veteranos poetas de haiku – a poesia japonesa de 17 sílabas – encontraram nesse universo inumeráveis temas. Como o clássico haiku escrito por M. Basho em 1692:

Furuike ya
kawazu tobikomu
mizuno oto

No velho lago
uma rã salta
o som da água

Atílio Avancini é professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Suas fotos feitas no Japão estão em exposição atualmente no Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA


Entre a tradição e a modernidade

Kyoto (antiga Heian-Kyo) foi capital do Japão por mais de um milênio, da era Heian (794) à era Meiji (1868). Cidade calma e tradicional, possui vários sítios tombados como patrimônio mundial. Localiza-se na ilha de Honshu, região de Kansai, dista 60 quilômetros de Osaka e 500 quilômetros de Tokyo. Sua população é de 1,4 milhão de habitantes. Kyoto lida simultaneamente com a tradição e a modernidade, o Oriente e o Ocidente, o campestre e o urbano, o artesanal e o industrializado.

A Kyoto University of Foreign Studies (KUFS) – conhecida como Kyoto Gaidai – completa, em 2007, 60 anos de fundação e conta com 4.800 alunos. A Habilitação em Português, chefiada pelo professor Ikunori Sumida, tem cerca de 280 alunos (70 por ano). O curso de Português tem duração de quatro anos e se iguala em procura com os de Espanhol, Chinês, Japonês, Francês, Alemão e Italiano. O destaque da KUFS, direcionada para o ensino de línguas estrangeiras, é o inglês. Fui o primeiro professor desse convênio de 11 anos entre a USP e a KUFS, representadas pela reitora Suely Vilela e pelo presidente Yoshikazu Morita. O convênio acolhe principalmente estudantes de graduação. A realização desses intercâmbios se ajusta às novas demandas de internacionalização e de modernização da USP. (A. A.).


Mais perto do homem de Kyoto

No Japão, de abril de 2006 a março de 2007, desenvolvi um trabalho pedagógico focando a “Cultura Brasileira e Comunicação” no Departamento de Estudos Luso-Brasileiros da Kyoto University of Foreign Studies (KUFS).

Para enfrentar os desafios em sala de aula e na vida cotidiana de Kyoto, lancei-me nas áreas da literatura, arte visual e música. A fim de encorajar os estudantes a deixar a passividade, fazer perguntas e se lançar mais abertamente ao universo das idéias do outro – e simultaneamente para formatar também as suas próprias idéias –, propus experimentos com três autores da arte moderna brasileira: a poesia de Cecília Meireles, a pintura de Tarsila do Amaral e a música de Tom Jobim. Com esse “tesouro”, pude avançar cuidadosamente, evitando a acomodação.

O enfoque na escritora Cecília Meireles (1901-1964) foi baseado no livro Ou isto ou aquilo, escrito para o público infantil e adulto. Assim, cada fragmento poético – possuindo narrativa própria, rima interna e traço cultural – foi discutido criativamente com os alunos. Nesse âmbito, procurei ser conduzido pela simplicidade e profundidade das ondas poéticas de Meireles, convidando os alunos a compartilhar tal vivência.

O foco na pintora Tarsila do Amaral (1886-1973) foi a partir de algumas de suas mais importantes obras, que foram significativas na ruptura estilística das artes plásticas brasileiras. Imagens como A japonesa (1920), A negra (1923), Abaporu (1928), Antropofagia (1929) e Operários (1933) foram reproduzidas pelos alunos na busca da similaridade – e não da cópia –, na tentativa de facilitar análises estéticas e simbólicas das obras.

© Atílio AvanciniChega a ser natural a atração do Japão pelo gênero musical bossa nova: calmo, romântico, leve, discreto, ritmado e intimista. Desse modo, tomei a iniciativa de levar meu violão em sala de aula para tocar e cantar algumas canções do genial músico Tom Jobim (1927-1993), compostas nos anos 50 e 60: Garota de Ipanema, Este seu olhar, Eu sei que vou te amar, Corcovado, Desafinado, Samba de uma nota só e A felicidade.

O som da bossa nova trouxe brilho aos olhos dos estudantes, os corpos renovaram os movimentos, as barreiras se diluíram. Com a introdução de elementos didáticos brasileiros e afinados com a identidade japonesa, pude promover a troca de idéias: dar prazer aos ouvidos e estimular o pensar. A bossa nova favoreceu um trabalho de compreensão das letras, de discussão sobre os “anos de ouro” da cidade do Rio de Janeiro, de vivências rítmicas, de experiências bem- sucedidas com o coral formado por alunos em sala de aula.

Olhar estrangeiro – Fora dos domínios universitários, minha troca com a gente de Kyoto processou-se no mesmo eixo: assumir um olhar estrangeiro e uma vontade de conhecer. Pensando num futuro ensaio fotográfico a ser apresentado no Centenário da Imigração Japonesa no Brasil, em junho de 2008, aproveitei os finais de semana e as férias escolares para exercitar o gênero fotografia de rua: flagrantes espontâneos de pessoas no espaço público.

Meu desejo de tirar boas fotos deu energia para ir adiante e chegar mais perto do homem de Kyoto. Como repórter, mergulhei na realidade urbana para extrair uma visão subjetiva do mundo. Quando reflito calmamente sobre algumas imagens, sinto que fui além dos limites de minha experiência. Eu sempre amei as cidades e seus cidadãos.

E fotografar foi deixar a teoria de lado e partir em direção à prática. Conforme Henri Cartier-Bresson, “ver é um desfrute para o olho, deixando os pensamentos conceituais em repouso”.

Para um fotógrafo, a homogênea paisagem natural do Japão exerceu muito fascínio e descoberta, como a intersecção contrastante a cada estação do ano. Nas saídas fotográficas busquei um sentido investigativo e social nas fotos. Foquei especificamente o elemento humano inserido na cidade: luzes, sombras, formas, linhas, texturas, movimentos, emoções, comportamentos, gestos e olhares. Assim, os vários aspectos dos sentidos, alavancados pelo refinamento da cultura japonesa, puderam ser simultaneamente trabalhados.

Face a face com a vida de Kyoto, procurei revelar templos tombados, jardins secos, parques e rios, festas populares, jogos esportivos, banhos comunitários. Não por acaso, senti também a necessidade de escrever uma crônica mensal de eventos ou fenômenos da natureza na ordem em que eles se sucederam, como a Sakura (flor da cerejeira), em abril, o Kodomo no hi (dia da criança), em 5 de maio, a Aoi Matsuri (procissão com costumes aristocráticos da era Heian), em 15 de maio, o Gion Matsuri (festival popular com carros alegóricos), em 17 de julho, o Daimonji (fogo para as almas ancestrais retornarem aos seus mundos), em 16 de agosto, e o Jidai Matsuri (desfile da história do Japão da ea Heian à era Meiji), em 22 de outubro.

Tais considerações dão uma idéia dos desafios que enfrenta um professor estrangeiro no Japão. Minha proposta pedagógica buscou minimizar o choque de olhares para o exercício do diálogo entre povos de culturas tão díspares. Como afirma o educador R. Richterich: “Qualquer que seja o processo desenvolvido e as áreas exploradas pela pedagogia e didática das línguas estrangeiras, todos os esforços tendem sempre a um só objetivo: melhor ensinar para ajudar a melhor aprender”.

Como brasileiro, constatei que temos muita versatilidade para lidar com os desafios da vida e somos queridos no exterior. Não por acaso, o Brasil é o país que acolhe a maior colônia nipônica do mundo. Fica claro perceber o sentido – e a forma – que o Brasil tem como “país-coração”. Mas essa particularidade ainda não foi integralmente reconhecida e conscientizada por nossa gente. De volta a São Paulo, no primeiro final de semana motorizado, tive o desafeto de encontrar o carro de meu filho assaltado: levaram o som, três álbuns de fotografia do Japão e, incrível, o meu estimado violão.

No dia seguinte, na escola de música de uma amiga, senti que os melhores violões do mercado são japoneses. E aproveitei para agendar umas aulas de aprimoramento em bossa nova. Nada é por acaso e tudo é aprendizado. Certas culturas antigas reconheciam que o número de sentidos que temos a desenvolver poderia chegar a doze.

ATÍLIO AVANCINI, especial para o Jornal da USP

 

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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