Incentivados por uma aluna de Fonoaudiologia
da Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da USP a fazer um teste
de linguagem escrita, Reginaldo e Regiane, gêmeos de 10 anos
de idade, escrevem por linhas tortas e palavras obscuras um versinho
aprendido na escola que freqüentam, no povoado de São
Geraldo, localizado numa das “linhas” que compõem
o traçado rural do município de Monte Negro, em Rondônia.
Mesmo com o teste terminado, as crianças permaneciam ao
redor dos estudantes, numa sala quente, improvisada para o atendimento à população,
como se ainda existisse algo a ser dito, a ser visto, a ser aprendido.
Inevitável a interação com crianças
tão curiosas e olhar indagador. Esta repórter, transfigurada
de “tia”, propôs um exercício para o aprendizado
da palavra “agropecuária” e pediu a Reginaldo
uma lista das plantações e das criações
encontradas no sítio onde moram os Tamandarés. A
atividade revelou alguma variedade de leguminosas e grãos
plantados para subsistência da família, além
de pequenos animais criados pelo pai de Reginaldo. Mas fruta, “xiii”,
disse o menino. “Tem goiaba, limão... e só.” Mas
e na feira de Ariquemes?, perguntei. “Ah, lá tem laranja,
maçã, uva... e só.” O universo vocabular
pode revelar um mundo. Nesse dia, Reginaldo aprendeu o significado
da palavra “agropecuária”. Como será na
volta às aulas?
“A linguagem escrita deles está bem atrasada e a oral
está de acordo com a idade. Isso pode acontecer por inúmeras
razões, envolvendo desde aspectos fonoaudiológicos
e cognitivos, motivados por agentes externos ou congênitos,
até o fato de não estarem se beneficiando do método
de ensino-aprendizagem utilizado em sala de aula”, diz a
professora Maria Aparecida Miranda de Paula Machado, da FOB, coordenadora
do grupo de fonoaudiologia.
Segundo a professora, os problemas fonoaudiológicos são
muito comuns em regiões onde é freqüente o uso
do quinino, medicamento ototóxico usado para tratar a malária,
que entre outros efeitos pode causar alterações do
sistema nervoso, surdez, cegueira e miocardia.
A USP em Rondônia: docentes e alunos
promovem a saúde
e a cidadania
Naquela manhã quente de julho, os Tamandarés e outras
famílias do povoado de São Geraldo, convocados pelas
agentes de saúde locais, receberam atendimento fonoaudiológico
e médico. “Todos os irmãos, inclusive o Reginaldo,
apresentaram sintomas e sinais semelhantes de anemia, relataram
dores musculares, dores abdominais e muita sonolência. Suspeitamos
que pode ser verminose ou efeitos da malária que acabaram
de passar, conforme os relatos”, diz o terceiranista do curso
de Medicina da USP de Ribeirão Preto Pedro Ernesto Barbosa
Pinheiro.
Malária é tão comum que um estudante de Odontologia
já ouviu o relato de um paciente que pegou a doença
84 vezes. “O recorde que já ouvi foram 54 vezes”,
disse outra aluna.
Longe de tudo – Os “destemidos pioneiros das paragens
do poente”, como diz o hino do Estado de Rondônia,
surgem especialmente nos vilarejos distantes dos pequenos centros
urbanos. A comunidade mais carente e com as maiores dificuldades
de acesso que esta reportagem visitou foi a colônia Nova
Fortaleza, localizada a cerca de 80 quilômetros de Monte
Negro, cidade onde está o núcleo de pesquisa e extensão
do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, o ICB-5.
As cerca de 40 famílias de Nova Fortaleza recebem atendimento
apenas das agentes de saúde e enfermeiras alocadas em Campo
Novo, cidadezinha a duas horas de Monte Negro e a três horas
do povoado, em estrada ruim. No total, são cerca de cinco
horas a partir de Monte Negro, de onde partiu a equipe de reportagem.
Para se locomover ou buscar socorro em algum hospital, os mais “sortudos” possuem
motocicletas ou conseguem alguma carona nesse meio de transporte
acessível e muito comum em todas as comunidades visitadas.
Com nossa chegada e após breve apresentação,
o mineiro Pedro Dias Damasceno pára de escolher o feijão
que este ano venderá por R$ 45,00 a saca, ou R$ 0,75 o quilo,
e nos mostra a quantidade de exames de sangue que ele e o filho
fizeram quando acometidos pela malária. “Eu só peguei
dez vezes. Tem gente aqui que em menos de cinco anos pegou 30 malárias”,
conta “seu” Pedro. “Sair da terra? Não
saio. Aqui é o nosso pedaço de chão”,
diz.
Danúbia da Silva, destemida professora de apenas 19 anos
de idade, encarou a distância para lecionar para um grupo
de 1a a 4a série na recém-inaugurada Escola Municipal
Vale da Fortaleza. A turma se ajeita em carteiras improvisadas:
cadeiras são escrivaninhas e bancos são tábuas
sobre tijolos. “Temos poucos livros e, para os alunos acompanharem
a lição, preciso pôr até três
deles em cada livro”, fala Danúbia. Solteira, a professora
tem um bebê de 5 meses que, por enquanto, mora com os pais
da moça, em Ariquemes. “Não trago ele porque
aqui dá muita doença. Ele ainda está muito
novinho para começar a pegar malária”, diz
Danúbia, com a naturalidade de quem sabe que a enfermidade
não dá só uma vez nesses lugares.
A escola Vale da Fortaleza, com suas carteiras improvisadas (à esquerda),
e a equipe da USP em ação: comunidade carente de
serviços essenciais
Mesmo acompanhada por uma experiente agente comunitária,
nossa equipe se perdeu entre as “linhas” e travessões
que fazem a divisão rural em Rondônia, e acabou se
desviando do caminho ao retornar a Campo Novo. A breve parada para
abastecer o “carro alto” (caminhonete) se deu em Buritis,
a cidade com o maior crescimento populacional dos últimos
anos e também com os mais altos índices de violência
do Brasil.
As hostilidades naturais e as doenças tropicais já mataram
tanto em Rondônia que levaram o sanitarista Oswaldo Cruz,
em 1910, a constatar que o saneamento da região seria impraticável,
pois ficaria duas vezes mais caro que a construção
da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, conhecida como “ferrovia
do diabo” ou “ferrovia da morte”, em razão
do número de vítimas de malária entre os operários
de sua construção, finalizada em 1912. Dos cerca
de 21 mil trabalhadores arregimentados para a obra, entre eles
nordestinos, europeus e até asiáticos, estima-se
que metade foi dizimada pela “tremedeira”.
Redução de casos graves – De acordo com o
professor José Roberto de Magalhães Bastos, atual
prefeito do campus da USP em Bauru e um dos responsáveis
pela implantação do projeto de atendimento odontológico
e fonoaudiológico em Monte Negro, um levantamento da saúde
bucal da população do município acaba de ser
concluído e os dados preliminares demonstram uma nítida
melhora no índice de dentes cariados, perdidos e obturados
(CPOD). Trata-se de um indicador internacional que aponta que,
em Rondônia, a média para crianças de 12 anos
está acima de quatro. Em Bauru, por exemplo, aquele índice é de
0,9 para a mesma faixa etária.
“O grupo realiza ações nas escolas sobre prevenção
e saúde bucal, alertando sobre escovação, uso
de creme dental, consumo de doces, refrigerantes e chocolates. Também é feito
o atendimento à população, tanto na clínica
em Monte Negro como nas visitas às comunidades rurais”,
afirma Bastos. “Tudo isso vem colaborando para mudar o perfil
da saúde bucal da população. A região
ainda está longe dos padrões mínimos aceitos
mundialmente, porém houve uma redução significativa
de casos graves.”
Próteses – Implantado em 2002, o USP em Rondônia é um
projeto de extensão universitária voltado para alunos
dos cursos de graduação e de pós-graduação
de Odontologia e Fonoaudiologia, e tem como objetivo dar atendimento à população
local nas zonas urbana e rural e desenvolver pesquisas.
As viagens acontecem geralmente nos meses de julho e janeiro, depois
de os alunos passarem por uma seleção, de acordo
com critérios de notas, redação e entrevistas.
Este ano, 34 pessoas participaram do projeto, entre professores,
alunos e funcionários, incluindo dois estudantes de Odontologia
e de Fonoaudiologia da USP de Ribeirão Preto e outros dois
da Universidade do Sagrado Coração (USC), de Bauru.
Segundo Magali de Lourdes Caldana, professora do Departamento de
Fonoaudiologia da FOB e atual coordenadora do USP em Rondônia,
em cada expedição é atendida uma média
de 2 mil pessoas, nas áreas de fonoaudiologia e odontologia.
Magali afirma que nas duas últimas expedições
foram colocadas próteses dentárias e adaptações
de aparelhos auditivos, e realizada a promoção de
saúde bucal e fonoaudiológica com cursos de capacitação
de professores, agentes comunitários da saúde e educadores
de creche, além das ações direcionadas às
crianças.
“Com o trabalho de saúde preventiva, deu para perceber
que a população passou a valorizar mais a saúde
bucal. Até então, os procedimentos eram realizados
na cidade por dois ‘práticos’, ou seja, dentistas
não habilitados”, diz o mestrando da FOB Ricardo Pianta,
que participa do USP em Rondônia desde 2003, quando ainda era
aluno de especialização do curso de Saúde Coletiva
do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais
da USP, o popular Centrinho de Bauru.
Após sete viagens para Monte Negro, Pianta reuniu conhecimentos
e responsabilidades suficientes para coordenar a logística
desta 14a expedição. Mas este ano o estudante fez
um roteiro diferente, dividindo parte de seu tempo no Xingu, numa
expedição também da USP, e finalizando a última
semana em Monte Negro. “Sou um profissional da saúde
pública e acredito que conhecer outras realidades pode contribuir
para meu próprio conhecimento. Gosto da experiência
de ajudar pessoas que não têm acesso aos serviços
de saúde”, diz.
A equipe da USP (à direita), que saiu de São Paulo
para levar saúde e educação às populações
de Rondônia: projeto é
realizado há quatro
anos
Pesquisas – Depois de algumas idas a Monte Negro, a aluna
do quarto ano da FOB Bianca Delazari Denis sentiu-se motivada a
estudar maneiras de atender a uma população carente
em condições mínimas de infra-estrutura, exatamente
como é a realidade da região de Monte Negro. Transportou
sua idéia para um projeto de iniciação científica
e conta com a orientação da professora Maria Fidela
de Lima Navarro, ex-diretora da FOB e uma das responsáveis
por impulsionar em 2002 o projeto USP em Rondônia. “O
objetivo da pesquisa é avaliar as condições
de saúde bucal desta população e verificar
a possibilidade do uso do ART (Tratamento Restaurador Atraumático,
na sigla em inglês). Trata-se de uma técnica versátil,
que possibilita o atendimento em qualquer lugar. Para trabalhar,
o profissional só precisa do seu instrumental e de um banco
para o paciente sentar”, afirma a estudante.
No seu estudo, que inicialmente se baseia em questionários
sobre as condições socioeconômicas e culturais
e numa avaliação bucal dos participantes – o
que é feito a cada saída do grupo para as “linhas” rurais –,
Bianca vem descobrindo coisas interessantes. “Ainda não
existem levantamentos epidemiológicos sobre a saúde
bucal da região. Tenho percebido diferentes lesões
que são específicas de determinadas comunidades.
Tiramos fotos para levar para especialistas e a idéia é saber
mais a respeito”, diz.
Um levantamento sobre o histórico fonoaudiológico
de crianças de até 6 anos de idade vem sendo feito
pelo mestrando Maurício Leonardo Margini Rocha, outro “veterano” das
viagens a Monte Negro. “Meu objetivo é estudar a percepção
das mães sobre a dor de ouvido e o tipo de tratamento utilizado.
Aqui é muito comum o uso de remédios caseiros, como óleos
quentes e emplastros. Já ouvi casos em populações
ribeirinhas de pessoas que derretem a vela, passam em rabo de tatu
e o colocam quente dentro do ouvido. Outros utilizam urina. O calor
até alivia a dor. Mas tudo isso só piora a infecção.
Estou focando minha pesquisa nessa faixa etária porque a
privação sensorial nessa fase afeta severamente o
desenvolvimento escolar, da fala e da linguagem”, afirma.
Além de coordenar os trabalhados de atendimento, a professora
Maria Aparecida Miranda de Paula Machado orienta uma pesquisa de
três estudantes a respeito das alterações fonoaudiológicas
da região de Monte Negro. “Estamos fazendo uma avaliação
global dessas alterações, que será levada
aos profissionais de diversas especialidades em fono, para poderem
desenvolver projetos nas áreas em que as necessidades dessa
população forem maiores e assim possivelmente pensarmos
em políticas públicas locais”, diz.
O levantamento é feito com moradores do município
de Monte Negro, ao final do dia, depois do trabalho de atendimento
nas “linhas” ou na clínica da cidade. As orientandas
de Maria Aparecida realizam visitas domiciliares com um outro grupo
de alunas de Fono, que no momento participam de um estudo internacional
da Organização Mundial da Saúde (OMS), coordenado
no Brasil pela professora Maria Cecília Bevilacqua, do Centrinho
de Bauru.
“Aproveitamos a mesma metodologia porque os dois estudos apresentam
semelhanças. A OMS faz esse levantamento em Monte Negro desde
julho de 2005 e esta é a quinta coleta de dados. No Brasil,
a mesma pesquisa foi aplicada em Porto Alegre. O objetivo é saber
a prevalência de surdez e outros transtornos da saúde
auditiva desta população”, diz a mestranda Ana
Carolina Zamprônio Bassi, participante do projeto. |