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© Francisco Emolo

Incentivados por uma aluna de Fonoaudiologia da Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da USP a fazer um teste de linguagem escrita, Reginaldo e Regiane, gêmeos de 10 anos de idade, escrevem por linhas tortas e palavras obscuras um versinho aprendido na escola que freqüentam, no povoado de São Geraldo, localizado numa das “linhas” que compõem o traçado rural do município de Monte Negro, em Rondônia. Mesmo com o teste terminado, as crianças permaneciam ao redor dos estudantes, numa sala quente, improvisada para o atendimento à população, como se ainda existisse algo a ser dito, a ser visto, a ser aprendido. Inevitável a interação com crianças tão curiosas e olhar indagador. Esta repórter, transfigurada de “tia”, propôs um exercício para o aprendizado da palavra “agropecuária” e pediu a Reginaldo uma lista das plantações e das criações encontradas no sítio onde moram os Tamandarés. A atividade revelou alguma variedade de leguminosas e grãos plantados para subsistência da família, além de pequenos animais criados pelo pai de Reginaldo. Mas fruta, “xiii”, disse o menino. “Tem goiaba, limão... e só.” Mas e na feira de Ariquemes?, perguntei. “Ah, lá tem laranja, maçã, uva... e só.” O universo vocabular pode revelar um mundo. Nesse dia, Reginaldo aprendeu o significado da palavra “agropecuária”. Como será na volta às aulas?

“A linguagem escrita deles está bem atrasada e a oral está de acordo com a idade. Isso pode acontecer por inúmeras razões, envolvendo desde aspectos fonoaudiológicos e cognitivos, motivados por agentes externos ou congênitos, até o fato de não estarem se beneficiando do método de ensino-aprendizagem utilizado em sala de aula”, diz a professora Maria Aparecida Miranda de Paula Machado, da FOB, coordenadora do grupo de fonoaudiologia.

Segundo a professora, os problemas fonoaudiológicos são muito comuns em regiões onde é freqüente o uso do quinino, medicamento ototóxico usado para tratar a malária, que entre outros efeitos pode causar alterações do sistema nervoso, surdez, cegueira e miocardia.

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A USP em Rondônia: docentes e alunos
promovem a saúde e a cidadania

Naquela manhã quente de julho, os Tamandarés e outras famílias do povoado de São Geraldo, convocados pelas agentes de saúde locais, receberam atendimento fonoaudiológico e médico. “Todos os irmãos, inclusive o Reginaldo, apresentaram sintomas e sinais semelhantes de anemia, relataram dores musculares, dores abdominais e muita sonolência. Suspeitamos que pode ser verminose ou efeitos da malária que acabaram de passar, conforme os relatos”, diz o terceiranista do curso de Medicina da USP de Ribeirão Preto Pedro Ernesto Barbosa Pinheiro.

Malária é tão comum que um estudante de Odontologia já ouviu o relato de um paciente que pegou a doença 84 vezes. “O recorde que já ouvi foram 54 vezes”, disse outra aluna.

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Longe de tudo – Os “destemidos pioneiros das paragens do poente”, como diz o hino do Estado de Rondônia, surgem especialmente nos vilarejos distantes dos pequenos centros urbanos. A comunidade mais carente e com as maiores dificuldades de acesso que esta reportagem visitou foi a colônia Nova Fortaleza, localizada a cerca de 80 quilômetros de Monte Negro, cidade onde está o núcleo de pesquisa e extensão do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, o ICB-5.

As cerca de 40 famílias de Nova Fortaleza recebem atendimento apenas das agentes de saúde e enfermeiras alocadas em Campo Novo, cidadezinha a duas horas de Monte Negro e a três horas do povoado, em estrada ruim. No total, são cerca de cinco horas a partir de Monte Negro, de onde partiu a equipe de reportagem.

Para se locomover ou buscar socorro em algum hospital, os mais “sortudos” possuem motocicletas ou conseguem alguma carona nesse meio de transporte acessível e muito comum em todas as comunidades visitadas.

Com nossa chegada e após breve apresentação, o mineiro Pedro Dias Damasceno pára de escolher o feijão que este ano venderá por R$ 45,00 a saca, ou R$ 0,75 o quilo, e nos mostra a quantidade de exames de sangue que ele e o filho fizeram quando acometidos pela malária. “Eu só peguei dez vezes. Tem gente aqui que em menos de cinco anos pegou 30 malárias”, conta “seu” Pedro. “Sair da terra? Não saio. Aqui é o nosso pedaço de chão”, diz.

Danúbia da Silva, destemida professora de apenas 19 anos de idade, encarou a distância para lecionar para um grupo de 1a a 4a série na recém-inaugurada Escola Municipal Vale da Fortaleza. A turma se ajeita em carteiras improvisadas: cadeiras são escrivaninhas e bancos são tábuas sobre tijolos. “Temos poucos livros e, para os alunos acompanharem a lição, preciso pôr até três deles em cada livro”, fala Danúbia. Solteira, a professora tem um bebê de 5 meses que, por enquanto, mora com os pais da moça, em Ariquemes. “Não trago ele porque aqui dá muita doença. Ele ainda está muito novinho para começar a pegar malária”, diz Danúbia, com a naturalidade de quem sabe que a enfermidade não dá só uma vez nesses lugares.

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A escola Vale da Fortaleza, com suas carteiras improvisadas (à esquerda), e a equipe da USP em ação: comunidade carente de serviços essenciais

Mesmo acompanhada por uma experiente agente comunitária, nossa equipe se perdeu entre as “linhas” e travessões que fazem a divisão rural em Rondônia, e acabou se desviando do caminho ao retornar a Campo Novo. A breve parada para abastecer o “carro alto” (caminhonete) se deu em Buritis, a cidade com o maior crescimento populacional dos últimos anos e também com os mais altos índices de violência do Brasil.

As hostilidades naturais e as doenças tropicais já mataram tanto em Rondônia que levaram o sanitarista Oswaldo Cruz, em 1910, a constatar que o saneamento da região seria impraticável, pois ficaria duas vezes mais caro que a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, conhecida como “ferrovia do diabo” ou “ferrovia da morte”, em razão do número de vítimas de malária entre os operários de sua construção, finalizada em 1912. Dos cerca de 21 mil trabalhadores arregimentados para a obra, entre eles nordestinos, europeus e até asiáticos, estima-se que metade foi dizimada pela “tremedeira”.

Redução de casos graves – De acordo com o professor José Roberto de Magalhães Bastos, atual prefeito do campus da USP em Bauru e um dos responsáveis pela implantação do projeto de atendimento odontológico e fonoaudiológico em Monte Negro, um levantamento da saúde bucal da população do município acaba de ser concluído e os dados preliminares demonstram uma nítida melhora no índice de dentes cariados, perdidos e obturados (CPOD). Trata-se de um indicador internacional que aponta que, em Rondônia, a média para crianças de 12 anos está acima de quatro. Em Bauru, por exemplo, aquele índice é de 0,9 para a mesma faixa etária.

“O grupo realiza ações nas escolas sobre prevenção e saúde bucal, alertando sobre escovação, uso de creme dental, consumo de doces, refrigerantes e chocolates. Também é feito o atendimento à população, tanto na clínica em Monte Negro como nas visitas às comunidades rurais”, afirma Bastos. “Tudo isso vem colaborando para mudar o perfil da saúde bucal da população. A região ainda está longe dos padrões mínimos aceitos mundialmente, porém houve uma redução significativa de casos graves.”

© Francisco EmoloPróteses – Implantado em 2002, o USP em Rondônia é um projeto de extensão universitária voltado para alunos dos cursos de graduação e de pós-graduação de Odontologia e Fonoaudiologia, e tem como objetivo dar atendimento à população local nas zonas urbana e rural e desenvolver pesquisas.

As viagens acontecem geralmente nos meses de julho e janeiro, depois de os alunos passarem por uma seleção, de acordo com critérios de notas, redação e entrevistas. Este ano, 34 pessoas participaram do projeto, entre professores, alunos e funcionários, incluindo dois estudantes de Odontologia e de Fonoaudiologia da USP de Ribeirão Preto e outros dois da Universidade do Sagrado Coração (USC), de Bauru.

Segundo Magali de Lourdes Caldana, professora do Departamento de Fonoaudiologia da FOB e atual coordenadora do USP em Rondônia, em cada expedição é atendida uma média de 2 mil pessoas, nas áreas de fonoaudiologia e odontologia. Magali afirma que nas duas últimas expedições foram colocadas próteses dentárias e adaptações de aparelhos auditivos, e realizada a promoção de saúde bucal e fonoaudiológica com cursos de capacitação de professores, agentes comunitários da saúde e educadores de creche, além das ações direcionadas às crianças.

“Com o trabalho de saúde preventiva, deu para perceber que a população passou a valorizar mais a saúde bucal. Até então, os procedimentos eram realizados na cidade por dois ‘práticos’, ou seja, dentistas não habilitados”, diz o mestrando da FOB Ricardo Pianta, que participa do USP em Rondônia desde 2003, quando ainda era aluno de especialização do curso de Saúde Coletiva do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da USP, o popular Centrinho de Bauru.

Após sete viagens para Monte Negro, Pianta reuniu conhecimentos e responsabilidades suficientes para coordenar a logística desta 14a expedição. Mas este ano o estudante fez um roteiro diferente, dividindo parte de seu tempo no Xingu, numa expedição também da USP, e finalizando a última semana em Monte Negro. “Sou um profissional da saúde pública e acredito que conhecer outras realidades pode contribuir para meu próprio conhecimento. Gosto da experiência de ajudar pessoas que não têm acesso aos serviços de saúde”, diz.

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A equipe da USP (à direita), que saiu de São Paulo para levar saúde e educação às populações de Rondônia: projeto é
realizado há quatro anos

Pesquisas – Depois de algumas idas a Monte Negro, a aluna do quarto ano da FOB Bianca Delazari Denis sentiu-se motivada a estudar maneiras de atender a uma população carente em condições mínimas de infra-estrutura, exatamente como é a realidade da região de Monte Negro. Transportou sua idéia para um projeto de iniciação científica e conta com a orientação da professora Maria Fidela de Lima Navarro, ex-diretora da FOB e uma das responsáveis por impulsionar em 2002 o projeto USP em Rondônia. “O objetivo da pesquisa é avaliar as condições de saúde bucal desta população e verificar a possibilidade do uso do ART (Tratamento Restaurador Atraumático, na sigla em inglês). Trata-se de uma técnica versátil, que possibilita o atendimento em qualquer lugar. Para trabalhar, o profissional só precisa do seu instrumental e de um banco para o paciente sentar”, afirma a estudante.

No seu estudo, que inicialmente se baseia em questionários sobre as condições socioeconômicas e culturais e numa avaliação bucal dos participantes – o que é feito a cada saída do grupo para as “linhas” rurais –, Bianca vem descobrindo coisas interessantes. “Ainda não existem levantamentos epidemiológicos sobre a saúde bucal da região. Tenho percebido diferentes lesões que são específicas de determinadas comunidades. Tiramos fotos para levar para especialistas e a idéia é saber mais a respeito”, diz.

Um levantamento sobre o histórico fonoaudiológico de crianças de até 6 anos de idade vem sendo feito pelo mestrando Maurício Leonardo Margini Rocha, outro “veterano” das viagens a Monte Negro. “Meu objetivo é estudar a percepção das mães sobre a dor de ouvido e o tipo de tratamento utilizado. Aqui é muito comum o uso de remédios caseiros, como óleos quentes e emplastros. Já ouvi casos em populações ribeirinhas de pessoas que derretem a vela, passam em rabo de tatu e o colocam quente dentro do ouvido. Outros utilizam urina. O calor até alivia a dor. Mas tudo isso só piora a infecção. Estou focando minha pesquisa nessa faixa etária porque a privação sensorial nessa fase afeta severamente o desenvolvimento escolar, da fala e da linguagem”, afirma.

Além de coordenar os trabalhados de atendimento, a professora Maria Aparecida Miranda de Paula Machado orienta uma pesquisa de três estudantes a respeito das alterações fonoaudiológicas da região de Monte Negro. “Estamos fazendo uma avaliação global dessas alterações, que será levada aos profissionais de diversas especialidades em fono, para poderem desenvolver projetos nas áreas em que as necessidades dessa população forem maiores e assim possivelmente pensarmos em políticas públicas locais”, diz.

O levantamento é feito com moradores do município de Monte Negro, ao final do dia, depois do trabalho de atendimento nas “linhas” ou na clínica da cidade. As orientandas de Maria Aparecida realizam visitas domiciliares com um outro grupo de alunas de Fono, que no momento participam de um estudo internacional da Organização Mundial da Saúde (OMS), coordenado no Brasil pela professora Maria Cecília Bevilacqua, do Centrinho de Bauru.

“Aproveitamos a mesma metodologia porque os dois estudos apresentam semelhanças. A OMS faz esse levantamento em Monte Negro desde julho de 2005 e esta é a quinta coleta de dados. No Brasil, a mesma pesquisa foi aplicada em Porto Alegre. O objetivo é saber a prevalência de surdez e outros transtornos da saúde auditiva desta população”, diz a mestranda Ana Carolina Zamprônio Bassi, participante do projeto.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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