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© Cecília BastosDepois de cruzar o rio numa balsa sem tração motorizada, é necessário vencer um trecho de estrada de terra estreita até chegar ao centro da comunidade de Ivaporunduva, município de Eldorado, no Vale do Ribeira. Ao redor da capela que começou a ser erguida no século 18 por mãos escravas, pode-se ficar sobre um dos poucos pedaços “asfaltados” da vila. O piso da pracinha foi colocado recentemente por meio de parceria com a Caixa Econômica Federal. Há apenas dois anos Ivaporunduva passou a contar com luz elétrica para 100% de seus moradores – antes disso ela só chegava a 40% –, por meio do programa Luz para Todos. Água encanada em toda a comunidade e direitos sociais garantidos, como aposentadoria rural ou auxílio-maternidade, também são novidade por ali, embora Ivaporunduva tenha sido a primeira comunidade remanescente de quilombo reconhecida como tal no Estado de São Paulo.

A dificuldade de acesso a serviços básicos se explica: por muito tempo, esses agrupamentos permaneceram isolados e sem dispor do arcabouço jurídico para reconhecimento e titulação das terras em que seus antepassados foram utilizados como mão-de-obra escrava ao longo de mais de três séculos de história do Brasil. Para poder contar com investimentos públicos de infra-estrutura e para que seus moradores tenham seus direitos reconhecidos, é necessário que todas as etapas de um longo caminho legal sejam percorridas, o que não é simples. Em Ivaporunduva, esses passos começaram a ser dados em 1975, embora um dos líderes da comunidade, Benedito Alves da Silva, o Ditão, de 52 anos, ressalte: “Essa é uma luta que tem mais de 400 anos. Nós somos os discípulos dos antigos lutadores, que foram os que começaram esse processo de libertação”.

Legislação – Como fruto das pressões de movimentos sociais, a Constituição de 1988 determinou, no artigo 68 das disposições transitórias: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado garantir-lhes os títulos respectivos”. A regulamentação, entretanto, ficou à deriva, e só foram estabelecidos seus mecanismos com a publicação, pelo governo federal, do decreto 4.887, em novembro de 2003. O texto determina que se consideram remanescentes das comunidades dos quilombos “os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-definição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.

Embora a auto-definição não seja um instituto aceito universalmente, é a partir dela e da conseqüente requisição de reconhecimento da comunidade à Fundação Cultural Palmares, ligada ao Ministério da Cultura, que se dá início ao processo e entram em cena outros órgãos públicos, que farão os levantamentos históricos, antropológicos e de medição de terras. Cabe ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) , o processo de identificação, reconhecimento, demarcação e titulação das terras ocupadas. Estima-se que existam 4.500 comunidades remanescentes no País, tanto urbanas quanto rurais, 1.170 delas já identificadas pela Fundação Palmares .

Órgãos estaduais também podem participar do processo. Em São Paulo, são 37 as comunidades identificadas pelo Instituto de Terras (Itesp). Quando os quilombos ocupam áreas públicas estaduais, geralmente em terras devolutas (aquelas devolvidas ou a serem devolvidas ao Estado), recebem o título de domínio das terras. O título é sempre emitido em nome de uma associação que o quilombo precisa constituir, nunca em nome de particulares. Quando as áreas são consideradas privadas ou pertencentes à União, a responsabilidade é do governo federal.

A comunidade de Ivaporunduva iniciou seu processo ainda em 1994, obtendo reconhecimento da Fundação Palmares em 1997 e sendo titulada em 2000. “São Paulo avançou bastante na parte de reconhecimento e levantamento do território, mas os processos param quando começam a mexer com os terceiros, os invasores. Não há política do governo voltada para desapropriação dos fazendeiros”, revela Ditão. “Por terem ficado muito tempo sem escola e sem acesso à educação, os quilombolas eram um alvo fácil para os aproveitadores. Muitos fazendeiros se enraizaram nos territórios quilombolas e hoje está difícil de tirá-los.”

O problema é particularmente sentido no Vale do Ribeira, em que a imensa maioria das terras é devoluta ou tem problemas de titulação: são muitas as áreas em que o ocupante é o proprietário apenas de fato, mas não legalmente. De acordo com Ditão, mesmo quilombos reconhecidos não obtêm o registro definitivo em cartório – é o caso dos quatro já titulados no Vale do Ribeira –, e por isso sofrem para ter acesso a investimentos públicos.

© Cecília Bastos

Herança – Assim como nem todas as comunidades que se auto-identificam como quilombolas querem enfrentar todo o processo de titulação, nem todos os quilombos originaram-se de agrupamentos de escravos que fugiram e criaram áreas de resistência, como o mais famoso deles, o de Palmares, em Alagoas. De acordo com a pesquisadora Lourdes Carril, que fez mestrado e doutorado sobre o tema na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, alguns surgiram a partir do abandono das terras pelos antigos senhores – caso de Vila Bela, em Mato Grosso, de onde os donos saíram com o final do ciclo do ouro.

Para Ditão, recém-eleito coordenador da Associação Quilombo de Ivaporunduva, as principais heranças que os descendentes carregam estão no espírito de mutirão e ajuda mútua da comunidade. Nos cerca de 3.000 hectares da área vivem cerca de cem famílias, 400 pessoas. O uso coletivo da terra, o rodízio das capoeiras – que a agricultura moderna chama de plano de manejo – e as festas tradicionais são outros pontos que Ditão cita. “A religião de matriz africana acabou, nosso pessoal é católico”, explica. Os cantos afro não permaneceram, mas têm sido resgatados e são utilizados no ritual das missas.

Pelas áreas de chão batido de Ivaporunduva espalham-se pequenas casas feitas de pau-a-pique, onde não raro se cozinha em fogões de pedra. O carro-chefe da economia local é a produção de banana. São cerca de 100 mil pés de bananeira – ao lado de um deles está enterrado o umbigo de Ditão, num exemplo de um antigo costume. Uma das apostas da comunidade é a produção de banana orgânica, em que se faz controle biológico de doenças e preparo da terra sem uso de substâncias químicas.

Cada área de atuação da comunidade possui a sua coordenação. Carlos Ribeiro da Silva é um dos coordenadores na produção de banana. Depois de ter morado em São Paulo, Carlinhos, como é chamado, voltou a Ivaporunduva há seis anos para trabalhar na terra. A oportunidade de produzir preservando o ambiente foi um dos fatores que o atraiu de volta. Para Carlinhos, o grande desafio é expandir o mercado da banana orgânica – que tem a certificação do Instituto Biodinâmico (IBD) –, inclusive para o exterior. “Queremos chegar lá. O certificado dá esse poder”, diz. Outra perspectiva é o início de funcionamento da fábrica de banana-passa, cujo prédio já está construído – faltam os equipamentos. A comunidade aposta também no cultivo do palmito juçara, que além de gerar renda vai ajudar na recuperação das matas ciliares do Ribeira de Iguape.

A banana está relacionada a outra atividade de Ivaporunduva: o artesanato feito a partir da palha da bananeira. A técnica foi introduzida na comunidade num trabalho da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP em 1997. A fibra é extraída do caule e, após vários processos, transforma-se em palha. Na mão de mulheres habilidosas como Érica Helena da Silva Pedroso e Elvira da Silva Pedroso – elas são concunhadas, não irmãs –, transforma-se em colares, pulseiras, bolsas, esteiras, descansos de mesa e vários outros artigos. “Depende da criatividade de cada um”, diz Érica. Os cerca de 30 artesãos do grupo da comunidade vendem seu material para os turistas que visitam o local e também em feiras. “Estamos correndo atrás de mais comércio”, diz Elvira. Parte da renda é destinada para manter a associação do quilombo.

De olho no ecoturismo, Ivaporunduva já conta com uma pousada construída com recursos de um projeto da Petrobras. A idéia é receber cada vez mais visitantes, principalmente estudantes, para conhecer a comunidade, aprofundar-se na história dos quilombos – e do Brasil – e explorar atividades em meio à riqueza ambiental do lugar. Os móveis de suas instalações simples são construídos pelo artesão e escultor Raí Maltt, que há quatro anos deixou Embu para viver na região e há pouco mais de um ano faz as mesas, cadeiras, bancos, beliches e outros móveis em peroba, retirada com licença da própria área do quilombo. “Vim só para fazer os beliches e fui ficando”, conta o artesão contratado pela Associação Quilombo de Ivaporunduva. Maltt também ensina seu ofício a dois jovens aprendizes da comunidade. Assim como a fábrica de banana-passa, a pousada aguarda verba de convênios ou parcerias para entrar em pleno funcionamento.

© Cecília Bastos
Casas de pau a pique compõem a paisagem da comunidade, que tem a produção de bananas como a principal atividade econômica

“Pioneiros” – Estudar nunca foi uma tarefa fácil para os quilombolas de Ivaporunduva. A escola local vai até a quarta série do ensino fundamental. Depois disso, é preciso deslocar-se para Eldorado, enfrentando diariamente a balsa (ou barco) e ônibus. Recentemente, alguns jovens vêm conseguindo romper os obstáculos e chegar ao ensino superior. “Somos meio que pioneiros da comunidade nas universidades”, diz Paulo Sílvio Pupo, 28 anos, que trabalha como agente administrativo da Prefeitura de Eldorado e no final do ano deve se formar em Gestão Ambiental.

Pupo conciliou os estudos com o trabalho na roça e as atividades de organização e liderança jovem em Ivaporunduva. Participação nas festas tradicionais e nos esportes também fez parte de sua história, ao lado de outras demandas mais “sérias”, como educação e titulação da terra. “Não dá para separar a questão quilombola na sua essência da luta pela terra, que transmite a liberdade, a união e é o símbolo-mãe das comunidades”, diz. Para Pupo, o modelo vivido em lugares como Ivaporunduva “é fantástico pela dinâmica coletiva, na qual os laços se fortalecem”. Esse modelo, acredita, pode ser ameaçado por visões de desenvolvimento econômico que não respeitem as tradições culturais e sociais dos quilombos e nem a preservação ambiental.

Aproveitando a chance de se dirigir ao público da USP, Paulo Pupo manda um recado: na sua opinião, os profissionais formados numa instituição pública devem procurar entender todos os ângulos de cada problema, sem defender visões imediatistas de lucro de seus empregadores. “Muitos profissionais poderiam dar mais retorno à oportunidade que tiveram na instituição pública e acabam não fazendo isso”, afirma.


“Quilombos são um problema social do campo”

Não foi por acaso que Chico Buarque transformou em música (“Funeral de um lavrador”) os versos de João Cabral de Melo Neto: “É uma cova grande pra tua carne pouca/ Mas a terra é dada, não se abre a boca/ É a conta menor que tiraste em vida/ É a parte que te cabe deste latifúndio”. Num país em que a propriedade da terra é, desde sempre, motivo de disputas que muitas vezes terminam com uma das partes – em geral a mais pobre – sepultada sob os famosos sete palmos, a possibilidade de que segmentos antes desconsiderados venham a ter acesso a propriedade mexe com interesses e concepções arraigadas há muito tempo.

“A autodefinição traz mais repúdio porque toca no problema fundamental da propriedade, que é histórico no Brasil, e é crucial para entender realmente o problema agrário e a origem dos movimentos sociais no campo”, diz a pesquisadora Lourdes Carril, que estudou os quilombos em sua dissertação de mestrado e tese de doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “As terras de quilombo nada mais são do que um problema social do campo que se relaciona também a uma pendência racial no Brasil.”

Já em 2004, poucos meses depois da publicação do decreto 4.887, o então PFL, atual DEM, ingressou no Supremo Tribunal Federal com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, pedindo o cancelamento dos efeitos do decreto. Na imprensa, o assunto também tem repercutido. O jornal O Estado de S. Paulo – em cuja lista de fundadores encontram-se vários grandes fazendeiros – publicou no dia 10 de julho um editorial intitulado “A proliferação de quilombolas”, no qual argumenta que “passou-se no País a uma verdadeira ‘produção' de quilombos, sem paralelo com os dos tempos da escravidão”.

O editorial baseia-se em artigo do jornalista Marcos Sá Corrêa, que aponta o caso do quilombo Santo Antônio do Guaporé, em Rondônia, para o qual o Incra destinou 86 mil hectares – enquanto o Ibama havia proposto 3,5 mil. “Em outras palavras, para todos os efeitos práticos, senão legais, quilombola é quem se diz quilombola. E quilombo é tudo o que o quilombola chama de seu”, aponta o jornalista.

Esquecimento – Para a pesquisadora Lourdes Carril, as coisas não são assim tão fáceis como afirmam os opositores do decreto. “Tem a Fundação Palmares, tem o Incra, tem o Itesp... Ninguém chega simplesmente e diz que é quilombola, assim como não é ‘todo mundo' que pode dizer que é. Isso não é verdadeiro”, aponta, salientando que “na contemporaneidade o quilombo é categoria conceitual de autodefinição”. Esse processo inclusive é bastante avançado “para uma nação que não reconhece o problema racial”.

A pesquisadora afirma que paira sobre a questão “o processo de esquecimento da história brasileira, em que a própria escola muitas vezes não tratava da questão do negro”. Estudos mostram que, mesmo nos mais de três séculos de vigência da escravidão no Brasil, não se sabia que aquilo estava acontecendo. “Não havia conceito para aquilo, nem juridicamente nem na sociedade”, diz Lourdes.

É exatamente a essa falta de referência, tanto jurídica quanto em termos de conceito para a sociedade, que o decreto 4.887 faz frente. “É preciso explicar o decreto à sociedade. A escravidão no Brasil foi esquecida. É preciso ter claro que houve escravidão, que as pessoas não foram reparadas e que não houve indenização”, afirma.

É de seres humanos que se trata. A irmã Ângela Biagioni, da Cáritas Diocesana de Registro, que desde 1990 trabalha com as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, relata que no quilombo de Porto Velho, em Iporanga, uma família conseguiu recuperar o ferro que marcava os escravos com as iniciais “JS”, provavelmente relativa aos proprietários. “Pensar que um ser humano é ‘carimbado' em ferro quente é muito triste”, diz.

Para a pesquisadora Lourdes Carril, compreender o processo histórico ajuda a entender a própria desigualdade do País. “O Brasil é uma sociedade altamente segregacionista, feita de ilhas separadas. Como é que um mundo paralelo, de vida urbana, que tem outros confortos, pode entender o que seja um agrupamento como os Kalungas, de Goiás?”, pergunta.

Em seu doutorado em Geografia na FFLCH, Lourdes Carril abordou o resgate da noção de quilombo em comunidades pobres da zona sul de São Paulo, principalmente por meio das letras de rap . Ali, a idéia de resistência aparece como meio de elevação da auto-estima e da possibilidade de criatividade dentro de um território segregado pela falta de emprego, pouca infra-estrutura, baixa escolaridade etc. “Esse movimento chama a atenção para que desenho de metrópole está sendo construído. Os negros reemergem num novo cenário de exclusão da periferia, ou da hiper-periferia”, diz, ressaltando o fato de que praticamente não há negros em áreas como o Centro e os bairros da zona oeste de São Paulo. Sua tese foi publicada em 2006 pela editora Annablume, com apoio da Fapesp, sob o título Quilombo, favela e periferia.

Lourdes Carril defende que as comunidades quilombolas têm respaldo para procurar o direito de propriedade de terras. “É a reafirmação de um conteúdo simbólico que tem a ver com as necessidades das pessoas. Essas comunidades estão lutando no contexto do agronegócio e de assédio às terras. Elas têm como provar que essas áreas são herdadas de antepassados quilombolas, portanto têm legitimidade para assumir o conteúdo simbólico do quilombo”, conclui.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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