São Paulo é conhecida como
um pólo cultural, sede de inúmeros museus e galerias
para todos os gostos e estilos. Agora, São Paulo é colocada
em cena em “Radiografias da Cidade”, nova exposição
do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, no Ibirapuera,
que será inaugurada nesta terça-feira, dia 7.
Primeira de um conjunto de três mostras, a exposição
traz o fotógrafo Bruno Giovannetti e o artista plástico
Gregório Gruber para apresentarem a sua visão da
cidade, construída a partir de sua vivência, seus
laços afetivos e sua rotina pelas ruas e bairros da metrópole. “É a
cidade vista pela arte, enunciando-se em relatos humanos, um pouco
de São Paulo em seu modo mais íntimo de ser”,
afirma Lisbeth Rebollo Gonçalves, diretora do MAC e curadora
da exposição.
Com
técnicas diferentes, Giovannetti e Gruber se complementam,
refletindo essa cidade construída de opostos. O primeiro
retrata São Paulo em suas pequenas pregas, captadas instantaneamente
pela lente de sua câmera. É uma cidade de contínuos
estímulos à comunicação, seja por uma
placa de propaganda, um grafite no muro ou um cartaz rasgado em
uma parede. O segundo silencia a cidade, abre seu olhar para o
plano arquitetônico, exaltando as grandes construções
da cidade, vazias diante do cair da noite. “Ambos criam representações
com imagens da cidade, debruçando o olhar sobre seu espaço
urbano, sobre seu modo de ser e sobre seu território cultural,
identificando particularidades e traços que a caracterizam”,
conta Lisbeth.
Bruno Giovannetti e suas imagens: olhar
treinado
A ironia da cidade – “Ouvem-se problemas por R$ 1,99
a hora. Seus problemas são nossos.” “Procura-se
pessoa para jogar baralho e ganhar sempre, com espionagem eletrônica
e cartas trucadas.”
São esses pequenos flagrantes da cidade, espalhados em cartazes,
faixas e muros, que Bruno Giovannetti passou a vida fotografando.
Seu exercício favorito é o flanar, perambular pela
cidade como andarilho, palavra com a qual ele se define, com o
olhar treinado, atento aos detalhes de um todo caótico.
A moto e a câmera digital são suas companheiras de
passeio. Com a moto estaciona onde quer e com a câmera digital
fotografa sem limites essas imagens tão características
de sua São Paulo. “Aqui está uma coleção
que fui fazendo casualmente. Com os anos, minha capacidade de ler
pequenas frases é mil vezes maior. Eu passo na rua já ‘antenado’,
em busca desses pequenos detalhes”, descreve Giovannetti.
A São Paulo radiografada por Giovannetti é uma cidade
de múltiplas faces. A primeira, com suas placas de propaganda
mal redigidas e cartazes oferecendo serviços inusitados, é uma
cidade irônica, divertida e, muitas vezes, de sentimentos
perdidos diante do ritmo imposto por seus moradores, como na faixa
colocada em uma rua da Vila Madalena, procurando uma senhora idosa,
sem nome, apenas indicada por seu apelido, “Boca de Litro”.
Outra, com seus grafites coloridas que se sobrepõem continuamente
sobre o mesmo muro registrando novas idéias, novos sentimentos,
novos artistas. Ao primeiro olhar, é difícil reconhecer
até que é o mesmo lugar. “Gosto de fotografar
o mesmo muro várias vezes, ao longo dos anos. É notável
como aquela paisagem se altera, se molda ao novo grafite”,
afirma.
O passar do tempo é tema recorrente de Giovannetti, assim
como a cidade de São Paulo. Em seu andar descompromissado,
ele entra em prédios e fábricas abandonadas para
capturar a ação do sol, da água, do vento,
o tempo agindo sem compaixão na cidade.
Sua paixão pela fotografia surgiu ainda jovem, nos anos
em que morou na Toscana, na Itália, terra de origem de sua
família e de seu sotaque ainda marcado. Foi lá que
despertou seu interesse por fotografia, a qual praticava em um
clube de amantes da arte, homens das mais diversas profissões
que dedicavam seu tempo livre a contemplar paisagens e capturar
momentos.
Seus caminhos o levaram ao jornalismo, foi radialista e assessor
de imprensa, mas a fotografia permaneceu como sua arte principal.
Já expôs em diversos museus da cidade. No mesmo MAC,
expôs “Res nullius”, inspirada em versos de Haroldo
de Campos, de quem ganhou uma poesia, homenagem que ele considera
a maior de sua vida. “Res nullius é um conceito do
direito que se refere às coisas que não têm
valor comercial. É isso que eu fotografo, as coisas comuns,
mas que podem ser valorizadas por um reflexo, uma cor, uma história.
A beleza está em todos os lugares, até em uma poça
d’água”, explica.
Esse conceito se perpetua em “Radiografias da Cidade”,
que mostra uma São Paulo bela pelos seus detalhes mais efêmeros.
Nela, o objeto se torna arte estética e o homem aparece
não como personagem, mas como criador e interventor desses
monumentos.
Para Giovannetti, a exposição é também
uma forma de desmitificar o papel do fotógrafo como artista,
alcunha pela qual não gosta de ser classificado. Ele simplifica
a arte do fotógrafo como sendo apenas um treinar dos olhos,
da percepção do momento efêmero que surge à frente
da lente da câmera, para ser capturado e eternizado. “Não
são fotos de uma grande procura estética, são
flagrantes do cotidiano. Muitas das minhas obras eu devo ao acaso
de estar ali no momento certo. Não é questão
de eu ser um grande fotógrafo e sim de ter desenvolvido,
como qualquer pessoa pode fazê-lo, o sentido da visão.”
É esse prazer de se perder na cidade, de mudar de trajeto,
de perambular pelos caminhos de São Paulo como um eterno
turista que Bruno Giovannetti imprime em cada uma de suas obras.
Essa é sua visão da cidade que, espera, influencie
alguns dos visitantes de sua exposição. “É um
convite a apreciar a cidade, aprender a olhar com mais atenção
e mais carinho para o lugar onde vivemos.”
Gregório Gruber e suas pinturas (a baixo:
espírito de contemplação
A cidade do vigilante – Gregório Gruber conta que
seu sobrenome significa, em grego, vigilante. É assim que
ele se sente diante da cidade, um vigilante noturno, sempre atento às
belezas arquitetônicas escondidas diante da eterna correria
da vida urbana.
É por causa dessa correria que Gruber prefere a noite, as
horas quietas, mais tranqüilas, quando pode se colocar diante
dos monumentos da cidade e observar por horas, captar seus detalhes,
seus reflexos, suas nuances. “No caos diário você não
pode parar diante de um prédio e observar. São dezenas
de pessoas passando à sua frente o tempo todo, a fumaça
dos carros, o barulho. Eu tenho esse espírito de estagnação,
de contemplação”, descreve-se.
Esse vigilante aparece explicitamente em A ronda noturna, que retrata
o Vale do Anhangabaú após a reforma que o tornou
novamente uma das paisagens arquitetônicas mais bonitas da
cidade. Pintado todo em tons escuros, o quadro mostra uma paisagem
serena, com um solitário carro de polícia zelando
pela conservação da região. “Após
a reforma, fiz uma seqüência de quadros da região.
O Vale participou da minha infância de um jeito e agora está completamente
diferente, sem todos os carros e pessoas transitando o tempo todo”,
explica.
O centro de São Paulo é o grande tema de Gruber.
Seus cenários ganham diversas seqüências ao longo
dos anos, em momentos diferentes, com outras luzes, em novos horários. “Para
mim, é o local que verdadeiramente caracteriza a cidade.
Os paulistanos têm uma fixação com a avenida
Paulista, que por muitos anos relutei em pintar (nesta exposição,
Gruber apresenta uma única pintura da região, na
qual retrata o prédio da Rede Gazeta). Para mim, ela poderia
ser em qualquer cidade, como Nova York ou Paris. É o centro
que me atrai, que acho mais pessoal, mais típico”,
revela.
Quando menino, ele subia as rampas do MAC para contemplar seus
artistas, conhecer o que havia de novo na arte. Nascido em Santos,
sempre morou em São Paulo, cidade que protagoniza suas obras.
Desde a infância dedicou-se à arte e ao longo da vida
experimentou e se especializou nas mais diversas técnicas
plásticas. Suas obras foram temas de diversas exposições
pela cidade. Hoje, São Paulo é personagem, uma pessoa
com a qual criou afeto ao longo de tantos anos de trabalho conjunto. “Minha
relação com São Paulo é como um amigo.
Vivo, trabalho, faço tudo aqui”, afirma.
A vida dedicada à arte se mostra, em parte, na seqüência
de trabalhos sobre a mesma paisagem. A reforma do Estádio
Municipal Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu, em 2001, aparece
em uma seqüência de quadros que, à exceção
da maioria de suas obras, é retratado cheio de torcedores. “Quando
se tem um tema recorrente por tantos anos, é natural que
se pinte várias vezes o mesmo local. Aqui, pus os torcedores
em um dia de jogo, também para atender a um pedido das pessoas
que sempre me perguntavam por que não punha pessoas nos
quadros”, diverte-se.
Dono de uma eterna inquietude artística, Gruber utiliza
as mais variadas técnicas de desenho e pintura. Em “Radiografias
da Cidade”, carvão, aquarela, pastel, nanquim e pinturas
dividem as paredes do museu em telas sempre inspiradas nas paisagens
da cidade. “Às vezes fico cansado da mesma técnica. É como
se fosse testar uma coisa diferente. Até mesmo em detrimento
da qualidade, afinal, você está pesquisando, descobrindo
novas possibilidades”, conta.
Para poder explorar todas as possibilidades de um objeto, prefere
ser guiado pelo acaso. Ele não planeja suas obras, faz inúmeros
ensaios, com diferentes materiais, até obter um resultado
que o agrade. “É como se eu estivesse colhendo informações
a cada nova tela, desde o bloco de desenhos até a pintura.
Cada técnica me permite uma nova descoberta”, afirma.
Essa diversidade é ainda mais aparente em “Radiografias
da Cidade”, que traz uma retrospectiva de décadas
de trabalho. O colorido do pastel na visão de uma janela,
o esfumaçado do carvão na neblina noturna da cidade,
a tinta do reflexo perfeito no prédio de vidros espelhados.
Cada técnica traz não só uma visão
diferente, como também inspira uma sensação
diferente diante de uma cidade que, na visão pintada por
Gruber, parece ser tão acolhedora como desoladora. “Pintar
um rio maravilhoso, uma cidade como Ouro Preto ou Paris é fácil.
O desafio é encontrar beleza nesses pontos da cidade. O
desafio é gostar de uma cidade tida como feia, poluída,
complicada, que ninguém gosta.” O desafio foi cumprido.
Não há como não achar beleza na São
Paulo de Gregório Gruber. |