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Heloísa e Abelardo, de Étienne Gilson, tradução de Henrique Ré, Editora da USP (Edusp), 224 páginas, R$ 41,00.

 

Conta-se que, certo dia em Paris, a bela Heloísa, então com 17 anos, passeava com sua criada, Sibyle, pelas ruas da cidade quando se deparou com um grupo de alunos reunidos em torno de Pedro Abelardo, já considerado um dos maiores teólogos de sua época – o século 12. Nessa hora, o chapéu da jovem foi levado pelo vento, indo parar nos pés do professor. Este recolheu a peça e, ao devolvê-la, trocou o primeiro olhar com Heloísa. Foi o ponto de partida de uma trajetória amorosa que teria vastas conseqüências na história da literatura, da teologia e da filosofia.

Heloísa tornou-se discípula de Abelardo e ambos viveram um apaixonado romance, contra a vontade do tio e tutor da jovem, Fulbert. Tiveram um filho, Astrolábio, e se casaram secretamente em Paris, após muita resistência da jovem, que se recusava a se unir ao amado pelo matrimônio. Mas o tutor, inconformado, enviou homens para seqüestrar Abelardo, que foi castrado por eles. Puniram-no por onde pecara, como o teólogo diria mais tarde. Separado da amada, Abelardo se retirou para a vida de estudos, aulas e contemplação na abadia de Saint-Denis. Heloísa também entrou para a vida monástica, em profunda depressão.

Por muito tempo não mais se falaram. Comunicavam-se apenas através de cartas, nas quais lembravam com nostalgia o grande amor que viveram e discutiam os principais problemas filosóficos e teológicos da época. “Tu sabes a quais torpezas minha paixão desmedida consagrara nossos corpos. Nem o respeito pela decência nem por Deus, mesmo nos dias da Paixão do Senhor ou das maiores solenidades, me retinha de rolar nessa lama”, escreve Abelardo numa de suas epístolas. “Eu, Deus o sabe, eu não teria hesitado em te seguir ou em te preceder no inferno se me tivesses ordenado a fazê-lo. Não era comigo que estava meu coração, mas contigo. E ainda agora, e mais que nunca, se ele não está contigo, não está em parte alguma, pois lhe é impossível ser sem ti”, declara Heloísa (leia ao lado dois exemplos dessa célebre correspondência).

Ao longo dos séculos, as cartas de Abelardo e Heloísa foram estudadas e comentadas pelos principais especialistas na chamada Idade Média, entre eles o francês Étienne Gilson, que em 1937 proferiu, no Collège de France, em Paris, uma série de lições sobre os dois amantes do século 12. Essas lições se transformaram no livro Heloísa e Abelardo, que, publicado pela primeira vez na França em 1938, é lançado agora no Brasil pela Editora da USP (Edusp). “A correspondência que trocaram é suficientemente importante para que Gilson possa dizer que dela depende toda nossa compreensão do século 12”, afirma o professor José Carlos Estêvão, do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que assina a apresentação do livro, lembrando que o trabalho de Gilson é “a mais fina análise” já feita das mensagens trocadas entre os dois amantes.

Amor puro – Da análise de Gilson, extrai-se um profundo perfil moral e psicológico dos dois amantes e uma descrição pormenorizada do drama vivido por eles. Segundo o autor, Heloísa é a personificação do ideal do mais puro amor, capaz de reprimir seus desejos mais ardentes em benefício do amado. Isso explica a forte resistência com que se opôs à idéia de se casar com Abelardo.


Heloísa se reclusou após a separação de Abelardo: “Impossível ser sem ti”

Acontece que, para o erudito do século 12, a grandeza de um filósofo era medida pela sua conformidade com os princípios morais de Sêneca, o pensador estóico, e do apóstolo Paulo, o missionário cristão autor de várias cartas do Novo Testamento. Para Sêneca, o moralista da continência, o verdadeiro filósofo permanece livre de tudo o que não é filosofia: honras, cargos públicos e até casamento. “Se deves amar, ama a razão”, diz. Para Paulo, o apóstolo da castidade, o cristão deve evitar o casamento para melhor servir a Deus. “Aquele que não é casado cuida das coisas do Senhor, aquele que é casado cuida das coisas do mundo, ele procura agradar sua mulher e fica dividido”, escreve na sua primeira carta à igreja de Corinto. Esses ensinamentos de Paulo, acrescenta Gilson, estão na base das argumentações de São Jerônimo – tão bem conhecidas por Abelardo – sobre a incompatibilidade entre o matrimônio e a vida cristã perfeita.

Heloísa sabia que o casamento significaria, para Abelardo, a sua ruína como teólogo e filósofo. E foi para evitar essa desonra que ela se recusou a fazer o que mais desejava: unir-se ao amado pelo matrimônio. “Heloísa pensava na grandeza de Abelardo e queria somente a sua glória. A perfeita retidão de Heloísa exigia, portanto, não apenas que ela recusasse o casamento, mas que oferecesse uma completa e definitiva separação”, comenta Gilson. “Heloísa estava disposta a sacrificar até as alegrias da paixão se a verdadeira glória de Abelardo assim o exigisse. Ela não pode ser nem a amante nem a mulher de tal homem porque o ama.”

Quando, finalmente, consentiu com o casamento, Heloísa sentiu-se causa de um crime cometido contra Abelardo. Na sua visão, mais uma vez vigorava a lei segundo a qual a mulher é a perda do homem. Assim como Eva fez Adão ser expulso do Paraíso, Dalila entregou Sansão aos filisteus e a mulher de Jó o incitou à blasfêmia, também ela causara a ruína de Abelardo. “O demônio bem sabe, de longa experiência, que a mulher sempre é para o homem uma causa de queda imediata, e por isso, armando para ele a armadilha de Heloísa, conseguiu levar à perdição, através do casamento, esse Abelardo que ele não conseguira arruinar pela fornicação”, escreve Gilson, interpretando os sentimentos da infeliz enamorada. “Desse complô diabólico, Heloísa tornou-se cúmplice ao consentir no casamento, causa da catástrofe. Ela é, então, em certo sentido, culpada. (...) Havia cometido um crime, porém jamais consentira com ele. E é também o motivo pelo qual, no final das contas, Heloísa é inocente.”


Abelardo e Heloísa estão enterrados juntos no cemitério Père Lachaise, em Paris: eternamente inseparáveis

De Abelardo, a reação aos acontecimentos é diferente, mais resignada e com final surpreendente. Ao invés de se revoltar contra a humilhação que lhe foi imposta, ele aceita a expiação provinda da vontade divina, reconhece como justo o castigo pelo pecado cometido e, menos por vocação religiosa e mais por vergonha, consagra a vida a Deus, entrando para a vida monástica. No entanto, isso não representou o fim de sua promissora carreira como teólogo, filósofo e cristão. Pelo contrário, forneceu as condições propícias para que ele se elevasse ainda mais, segundo Gilson. “Essa submissão sem reservas ao julgamento divino, tão contrária à revolta obstinada de Heloísa, parece ter sido o germe de toda a vida religiosa de Abelardo, o ponto de partida e o ponto de apoio da ascensão espiritual que ele realizaria.”

Lógica – Os infortúnios não impediram que os séculos conferissem a Abelardo a glória que Heloísa quis evitar ser arruinada. Ele é autor de influentes textos filosóficos e teológicos. Em Sic et non (“Sim e não”), reúne textos aparentemente contraditórios da Bíblia e dos primeiros filósofos cristãos, para mostrar que, no fundo, há harmonia entre eles. Mais do que em seus pensamentos, é no método utilizado nesse livro que reside a importância do Sic et non: a técnica da confrontação dos contrários, seguida de uma conclusão, será incorporada no século 13 à Suma teológica, de Tomás de Aquino. Abelardo compôs também um tratado sobre Deus, De unitate et trinitate divina, o Diálogo entre um judeu, um filósofo e um cristão e vários sermões. História das minhas calamidades é seu texto autobiográfico.

Em filosofia, a obra de Abelardo é ainda mais original. Autor de uma Dialectica e de vários comentários sobre a obra de Aristóteles e de Boécio, ele se destacou na chamada “querela dos universais”, uma acalorada discussão entre os eruditos da época, que se perguntavam se os conceitos gerais – nomes como “homem”, “árvore” e “cachorro” – têm existência real ou não. Abelardo recusou as duas correntes em disputa, o realismo (para a qual os universais existem objetivamente) e o nominalismo (que assegurava serem os universais puros nomes), e formulou o conceitualismo, segundo o qual os universais são conteúdos da mente, representações do intelecto derivadas das coisas. “É certo que a lógica de Abelardo influenciou profundamente a Idade Média”, explica Gilson em outra de suas obras, A filosofia na Idade Média. “Dois partidos se dividiam quanto à questão de saber se a lógica trata de coisas (res) ou de palavras (voces). Eliminando a primeira solução, ele contribuiu poderosamente para refazer da lógica uma ciência autônoma, livre de todo pressuposto metafísico em sua ordem própria.”

 

 

“Deus fingiu não ver”

A seguir, carta de Heloísa para Abelardo.
Eu, infeliz e aflita entre todas as mulheres. Tu levantaste-me ainda mais alto só para aumentar a minha dor na queda. Enquanto entregávamo-nos aos prazeres da luxúria, Deus fingiu não estar vendo, mas depois castigou-nos, e nem mesmo o nosso casamento abrandou a sua cólera. O Maligno sabe até bem demais como usar uma mulher para arruinar um homem. Éramos dois, a pecar, mas só tu tiveste que pagar. Agora eu também sofro. Por tempo demais entreguei-me aos prazeres da carne e este é o justo castigo. Persegue-me a lembrança. Até durante a missa, quando a oração deveria fazer-me sentir mais pura, as lembranças atormentam a minha mente, e em lugar de arrepender-me tenho saudade daquilo que perdi. As pessoas louvam a minha castidade só porque não sabem que no fundo não passo de uma hipócrita. A minha habilidade em fingir consegue enganá-las, mas eu não me curei: penso em ti, te amo, te quero, te desejo, como antes, mais do que antes.

 

 

 

 


Abaixo, carta de Abelardo para Heloísa.


Tu sabes a que baixeza arrastou minha desenfreada concupiscência a nossos corpos. Nem o simples pudor, nem a reverência devida a Deus foram capazes de apartar-me do seio da lascívia, nem mesmo nos dias da Paixão do Senhor ou qualquer outra festa solene.

Mereço a morte e alcanço a vida. Se me chamam, dou as costas. Persisto no crime e sou perdoado contra minha vontade.

 

 


Tu me disseste: “Mas eu sofri por ti”. Não ponho isso em dúvida. Mas eu sofri mais por ti; e isso, mesmo contra a tua vontade. Não por um amor que saíra de ti, mas por coação minha. Não resultou em tua salvação, mas apenas em tua dor. Ele, ao contrário, padeceu porque quis e nos trouxe a salvação. Ele, que com sua paixão cura todas as enfermidades e dissipa toda dor. É nele – te suplico – e não em mim que irás centrar toda tua devoção, toda tua compaixão. Chora a grande injustiça cometida contra um ser tão inocente e não chora a justa vingança da eqüidade sobre mim – e, se quiseres, como já te digo –, a suprema graça que caiu sobre nós dois.

 

 

 

 

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