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© Cecília Bastos

Se lá no assento etéreo, onde subiu, memória desta vida se consente (como disse Camões lembrando a morte de uma criança), o compositor e maestro Camargo Guarnieri não tem do que reclamar. Ele, que era um sentimental e pedia a presença de amigos até quando acamado em razão de uma simples gripe, recebe no centésimo aniversário de nascimento as homenagens de colegas, ex-alunos e pesquisadores de sua obra. No Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP fica até 19 de setembro a exposição “Vida de artista”, aberta na quarta-feira, dia 22, que reúne originais do acervo do compositor – nascido em 1 o de fevereiro de 1907 – doado pela família à USP em 2000, constando de fotografias, manuscritos, artigos de jornal, programas musicais e correspondência. Quanto à Orquestra Sinfônica da USP (Osusp), que Guarnieri organizou e regeu até a sua morte, em 1993, está incluindo composições suas em todos os concertos programados para este ano.

© Cecília Bastos
Guarnieri cultivava a música e as amizades: com Villa-Lobos (à esquerda), o escritor Mário de Andrade e o maestro Lamberto Baldi

Na opinião do maestro Ronaldo Bologna, que sucedeu a Guarnieri na regência da Osusp e ainda é regente de honra do conjunto, embora de fato a função fique com o maestro Carlos Moreno, Camargo Guarnieri é, depois de Villa-Lobos, o maior compositor do Brasil, e a celebração do centenário de nascimento é uma ocasião magnífica para valorizar sua obra. Ao não mencionar antes Carlos Gomes, Bologna pondera que o músico campineiro do Império foi tipicamente um compositor de óperas, não podendo haver paralelo entre ele, Villa-Lobos e Guarnieri.

Mas Bologna, que também está recebendo homenagens de colegas e artistas ao completar 70 anos de idade, tem uma crítica a fazer: o Brasil não sabe reconhecer a importância de seus artistas, muito menos de Camargo Guarnieri. Diz que em ocasiões especiais prestam-se homenagens, fala-se muito, mas o fundamental, que é divulgar a sua obra, publicar as suas composições, ninguém faz. A maior parte de suas partituras continua em manuscrito, ou são cópias antigas em mau estado de conservação. Por que ocorre o descuido? O maestro diz não ter resposta: “Isso acontece no Brasil”. Entende que toda a sociedade deveria se sentir responsável pela divulgação da cultura, especialmente a Universidade, mas, que ele saiba, não há projeto para uma edição crítica da obra de Guarnieri. A falta de partituras impede que compositores como Guarnieri sejam mais conhecidos e executados no exterior. Bologna esteve na Alemanha em 2000 com a Osusp e é testemunha da excelente receptividade que as composições de Guarnieri obtiveram naquele país, apesar da carência de seus escritos.

© Jorge Maruta & Cecília Bastos
O maestro em atividade (à esquerda) e em família (à direita): preocupações estéticas e afetivas

Vida de artista – A primeira composição de Mozart Camargo Guarnieri, aos 10 anos, quando ainda morava com a família em Tietê, interior de São Paulo, chamou-se Sonho de artista , nome que inspirou os organizadores da exposição no IEB, com a curadoria da professora Flávia Toni, do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA), a chamá-la “Vida de artista”. A mostra pretendeu organizar a documentação de tal modo que o visitante possa perceber como o compositor se relacionava com seus intérpretes, regentes, amigos e até autoridades. A exposição procura valorizar o ambiente musical, sem esquecer de aliar sons e imagens. A parte dos conteúdos musicais ficou por conta da equipe da supervisora de Artes Visuais do IEB, Bianca Betino.

Três módulos básicos podem ser observados: vida afetiva (familiares, pais, esposas, filhos, amigos), fomentador da cultura (Coral Paulistano, Rádio Gazeta, Teatro Municipal de São Paulo e Osusp) e trajetórias e sonoridades (o professor, o pianista, o regente, o compositor). Para cada módulo há uma seleção de obras que o visitante poderá ouvir em ambiente especialmente preparado. O primeiro módulo destaca fotografias, cartas e composições que revelam o universo afetivo do músico (“As três graças”). No módulo 2, imagens, objetos e sons relacionados com as instituições mencionadas. No terceiro módulo, os processos de criação do autor (escrivaninha, instrumentos de trabalho, partituras, programas de concertos). O acervo de Guarnieri possui muitas horas de música gravada em fitas de rolo grande, as mais bem conservadas e salvas do incêndio de 2000 que destruiu parte do estúdio da rua Pamplona, e em fitas cassete. Trabalhar esse material sonoro é um projeto caro e que levará tempo para ser finalizado, segundo Flávia Toni.

© Cecília Bastos
A exposição no IEB: documentos de um dos maiores compositores brasileiros

Entre as imagens mais antigas da exposição se encontram fotografias dos antepassados italianos e brasileiros do compositor, imagens de concertos compartilhadas com o maestro Eleazar de Carvalho, Guiomar Novaes, Villa-Lobos, Magdalena Tagliaferro e Mário de Andrade, entre outros. Guarnieri foi casado três vezes e depois de sua morte a família não hesitou em doar seu acervo artístico à USP, recusando mesmo ofertas financeiramente interessantes apresentadas por outras instituições.

Segundo Flávia, Guarnieri vinculava a criação artística a situações do momento, quer fossem concursos ou encontros especiais com amigos. Escrevia partituras para comemorar o nascimento de um filho ou participar de concurso internacional. Com a Sinfonia n o 2 Uirapuru disputou em 1947 concurso nos Estados Unidos, junto com compositores de todas as Américas, sendo 17 do Brasil, e venceu, levando US$ 5 mil de prêmio, uma fortuna na época. Dedicou a obra a Villa-Lobos, que já tinha uma composição com o nome desse pássaro típico do Brasil.

Um exemplo de relação com autoridades remete à sua amizade com Clóvis Salgado, espécie de secretário especial de Cultura do presidente Juscelino Kubitschek, a quem Guarnieri dedica a suíte Vila Rica . Os seus eram gestos de gratidão, afeto e proximidade, típicos de uma pessoa sentimental. Nessa condição, Guarnieri vivia se queixando sempre, exigindo companhia, respeito, consideração. Flávia Toni encontra explicações para tal comportamento. Uma delas é o fato de Guarnieri ter sido um viajante experimentado. No exterior, em bons hotéis e boa companhia, aprendeu a conhecer o que é bom na vida e o que é ser bem tratado e reconhecido, sem contar que lá recebia muitas encomendas que rendiam bom dinheiro. No Brasil era diferente, o dinheiro era curto e convites para trabalho remunerado, minguados. Para um sentimental muito franco, essas eram razões mais que suficientes para uma sucessão de queixas. Flávia concorda com o artista na queixa de que não é comum no Brasil reconhecimento público pelo trabalho artístico, e pergunta por que até hoje não existe em São Paulo um parque com o nome de Camargo Guarnieri, como há o parque Villa-Lobos. No exterior não o homenagearam com parques, mas a curadora aposta que fora do Brasil ele continua sendo muito bem executado, embora não negue as restrições apontadas pelo maestro Bologna.

Orquestra – Flávia é filha do maestro Olivier Toni, um dos idealizadores da Osusp, que apresentou o primeiro concerto em 28 de novembro de 1975. A verdade é que, e Flávia confirma, à época havia uma polêmica não de todo resolvida até hoje sobre que tipo de orquestra a USP deveria manter. Guarnieri, conhecedor profundo das universidades americanas, verdadeiros centros de atividades artísticas, culturais e esportivas, defendia a criação de uma orquestra completa, com cordas, percussão e sopros, mesmo sabendo que a sua manutenção custaria os olhos da cara. Ao mesmo tempo, o Departamento de Música da ECA reivindicava uma orquestra voltada para o ensino da música, com lugar preferencial para alunos. Os anos foram passando e a Osusp continuava sendo um conjunto de cordas e ficou assim até o final da vida do maestro titular. Percussão e sopro, só havia em ocasiões especiais, mediante contratações esporádicas de músicos.

A impossibilidade de ampliar o instrumental da orquestra nos primeiros anos teve tripla conseqüência: obrigou o regente titular a limitar o repertório, a adaptar composições às exigências de um conjunto apenas de cordas e a ocupar a maior parte de seu tempo nas atividades de regência, diminuindo em conseqüência a produção musical própria.

© Cecília Bastos

Desde 2002, a orquestra realiza o Projeto Academia, atividade voltada para o aperfeiçoamento de músicos em processo de formação, agora na quarta versão. Este mês estão sendo contratados os candidatos aprovados nos instrumentos flauta, oboé, fagote, clarinete, contrabaixo, violino (seis), viola (três), violoncelo, trompa, trombone baixo e percussão. O regente Carlos Moreno assumiu a direção da orquestra em 2002, depois de vencer concurso organizado pelo maestro Ronaldo Bologna.

A exposição “Vida de artista”, que homenageia o centenário de nascimento do compositor Camargo Guarnieri, está em cartaz no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP (avenida Professor Mello Morais, travessa 8, número 140, Cidade Universitária, em São Paulo), de segunda a sexta-feira, das 9 às 18 horas, até 19 de setembro. Entrada grátis. Mais informações podem ser obtidas pelos telefones (11) 3091-3199 e 3815-3106.

 

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