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O 75º Congresso da Association Francophone pour le Savoir (ACFAS) foi realizado em maio passado na cidade de Trois-Rivières, em Quebec, no Canadá. O tema desse encontro, que pode ser considerado uma “SBPC canadense”, mais especificamente francófona, foi “L'Esprit en mouvement”. Tal evento contou com a participação de 4 mil pessoas de diversos países, constituindo, portanto, um dos principais eventos em língua francesa do planeta.

Neste artigo, gostaríamos de expor reflexões que apresentamos naquele evento e que podem nos ajudar a pensar a educação hoje. Como pudemos perceber, apesar das distâncias que separam Canadá e Brasil e guardadas as devidas proporções, os educadores brasileiros têm preocupações semelhantes às de seus colegas canadenses. Queiramos ou não, o acesso à aprendizagem da leitura e da escrita, a apropriação desse instrumento de luta política, nas duas realidades sociais – brasileira e canadense –, são necessários para que um caminho digno de ser chamado humano se constitua.

Oralidade no Brasil – Ao Brasil, ex-colônia portuguesa, é atribuído o mito da unidade lingüística. Com seus cerca de 180 milhões de habitantes, o País tem a língua portuguesa como oficial e veicular, apesar da existência de pelo menos 180 línguas indígenas. A língua portuguesa falada atualmente no Brasil possui influências muito variadas: das línguas indígenas, desde o início da colonização, no século 16, das línguas africanas, desde o início do tráfico negreiro, no século 17, e das línguas européias, influência intensificada e variada desde o fim do tráfico negreiro, no final do século 19, com a chegada de espanhóis, italianos, alemães e japoneses, entre outros, para o trabalho na agricultura. A língua francesa exerceu um papel influente entre a população urbana e letrada desde a vinda da Corte Portuguesa ao Brasil, no início do século 19.

Atualmente podemos dizer que a língua inglesa exerce muita influência lexical, trazendo com ela uma série de conceitos e idéias, principalmente no que se refere à cultura americana. O número de bilíngües vem aumentado no Brasil, principalmente devido à pressão do mercado de trabalho. Por outro lado, contamos com pelo menos 40% da população em situação de pouco domínio da leitura e da escrita na língua oficial devido às imensas diferenças socioeconômicas do País.

Pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) comprovam que, ao longo do século 20, as taxas de analfabetismo entre os brasileiros com 15 anos ou mais decresceram paulatinamente, apesar de serem ainda muito elevadas. A esse respeito cabe ainda lembrar aqui a pesquisa de Alceu Ferraro “Escolarização no Brasil na ótica da exclusão” (publicada em Fracasso escolar: uma perspectiva multicultural, Artmed, 2004) . Ela retrata de maneira clara e objetiva aspectos do fracasso escolar no Brasil. Aponta que os conceitos de exclusão e de fracasso representam juntos um mesmo fato, costumeiramente denominado de analfabetismo, não-acesso à escola, reprovação, repetência, defasagem nos estudos, evasão, etc. E, assim, o analfabetismo pode ser considerado um processo contínuo. Trata-se, como diz o autor, de “exclusão praticada pelo aparelho escolar”.

Frente a esses dados, a pesquisadora Mary Kato, em No mundo da escrita (Ática, 1986), afirma que o Brasil é ainda uma “nação de real primazia do oral”. Como a linguagem oral abriga subsistemas paralelos não previstos nas normas prescritivas da gramática, a “avalanche do uso oral ao lado do uso relativamente insignificante da escrita pode fazer com que, a longo prazo, as formas do oral venham a afetar as formas da escrita”. Ela destaca que, no Brasil, a força da oralidade marca a escrita, ao contrário das sociedades letradas, em que a fala simula a escrita. Ou seja, mesmo os falantes letrados revelam a primazia do oral, pois preferem procurar informação oral em vez de consultar um guia,um manual, as leis e regimentos, uma enciclopédia, livros técnicos etc.

Diversidade no Canadá – O Canadá, por sua vez, também é um país multicultural: segundo dados do útilmo censo daquele país, a população inclui canadenses (39,42%), ingleses (20,17%), franceses (15,75%), escoceses (14,03%), irlandeses (12,9%), alemães (9,25%), italianos (4,29%), ucranianos (3,61%) e chineses (3,29%), entre vários outros grupos. O inglês e o francês são idiomas oficiais, falados por 59,3% e 23,2% da população, respectivamente. Fala-se também o italiano (1,6%), o alemão (1,5%) e o cantonês (1,1%).

Nessa diversidade – fruto da recepção de imigrantes, principalmente qualificados, e fundada em território em que existiam (e existem) os aborígines –, dois mundos coexistem: o anglófono, influenciado também pelo domínio socioeconômico e cultural dos Estados Unidos, e o francófono, isso porque franceses e ingleses são os dois povos fundadores do Canadá, que é, após inúmeros debates em diferentes planos políticos, um país oficialmente bilíngüe.

Tendo em vista essa história, apesar do desenvolvimento do Canadá, algumas questões no âmbito da educação de jovens e adultos precisam continuar na agenda educacional do país.

A característica do francês no Canadá é sua concentração geográfica nas seguintes regiões: Quebec, Nouveau Brunswick, Ontario, Manitoba, Île du Prince Édouard e Nouvelle Écosse. Entretanto, de acordo com estudiosos da questão do uso das duas línguas pelos canadenses, nos últimos 40 anos tem ocorrido um processo de diminuição dos falantes de língua francesa. Dois motivos dessa redução são: a queda da taxa de natalidade entre os francófonos em relação aos falantes do inglês a partir de 1971 e a imigração de anglófonos que chegam com freqüência ao Canadá. Dispersos sobre o vasto território canadense, muitas vezes reagrupados em pequenas comunidades rurais isoladas, os francófonos minoritários, ainda que numerosos, apresentam fraca densidade demográfica. Assim repartidos, as comunidades e os indivíduos sofrem inegavelmente uma grande influência da língua e da cultura majoritária.

No Canadá, muitos alunos do meio minoritário canadense sofrem uma insegurança lingüística. Ela se manifesta quando as pessoas se sentem incapazes de falar bem a sua língua e acabam por construir uma baixa autoestima e, finalmente, apresentam dificuldades de aprendizagem na escola.

De acordo com a Constituição canadense, de 1982, há três grupos principais de aborígines no Canadá; os nativos americanos (chamados oficialmente de "Primeira Nação”), os inuit (esquimós) e os métis. Segundo fontes oficiais, a população aborígine tem crescido em um ritmo duas vezes maior do que o resto do Canadá. Atualmente, cerca de 790 mil aborígines vivem no país. Desses, 69% são nativos americanos, 26% são métis e 5% são inuit. Essa população tem 50 idiomas e tudo indica que o uso destes tem caído, excetuando-se o inuktitut (idioma oficial nos territórios do noroeste e em Nunavut, com um total de 29 mil falantes). O objiwe e o cree, ambos com um total de 150 mil falantes, são sustentáveis a longo prazo.

Paulo Freire – Seja pela coexistência da anglofonia e da francofonia, pela imigração deliberada adotada nas últimas décadas pelo governo canadense e ainda pela presença dos nativos, o Canadá, assim como o Brasil, não pode deixar de se preocupar com a alfabetização de jovens e adultos em língua(s) oficial(ais) e, desse modo, a obra do educador Paulo Freire é valiosa.

Porém, seu trabalho será engrandecido se levarmos em consideração o mundo das letras como um todo. Ou seja, visto pelo mundo da literatura, que canta e encanta. Assim, conforme foi tratado no congresso realizado em Quebec, a literatura de cordel, a telenovela, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, o teatro de Boal, o cinema, em suma, as artes podem fazer com que nossos alunos – e os deles, muitos desencantados com a escola – encontrem uma porta para o mundo das possibilidades, e assim se tornem resilientes e vençam as barreiras impostas pela escola, tomem o poder em suas mãos, estabeleçam uma relação de prazer com o saber e façam do saber um motivo para que a conversa entre a família se constitua. Um saber, nesse caso, com sentido de transformação, de mudança interior, para que depois ela seja exterior, num movimento dialético de contrução da subjetividade e do mundo exterior.

Faz-se ainda mister a construção de discursos científicos transdisciplinares e transculturais, escapando do dualismo – pares de opostos/fixos –, e a pesquisa das ligações existentes entre as mães-pátrias. Assim, é necessário que possamos nos abrir também para trabalhos tais como os da École de Palo Alto (Bateson, Watzlawick), das dinâmicas sociossemióticas em movimento (F. Barth, Eco, Lash), dos processos antropossemióticos nas relações de poder e da violência (René Girard), assim como apreender o discurso não como uma estrutura estereotipada, mas como uma promessa de um futuro melhor (Austin,Searle).

Em suma, corroborando os estudos de Freire, servindo-nos das artes, dos estudos antropológicos e sociais, das considerações da semiologia e das representações, afirmamos que, na alfabetização/ educação de crianças, jovens e adultos, sejam eles nordestinos em São Paulo, bororo, inuit, precisamos levar em consideração que nos humanizamos quando, através do outro, pela alteridade, nos tornamos sujeitos, e ainda, pelo encontro com semelhantes, constituímos nossa identidade.

No caso destes apontamentos comparativos, o encontro com esse “outro” diferente é muito claro, principalmente por tratarmos de pessoas provenientes de culturas distintas, em constante confronto regido pelo capitalismo, visível no processo de aprendizagem da leitura e da escrita. E, assim, por mais que esse sistema queira fragmentar para imobilizar os espíritos, alfabetizar pertence àqueles que, antes de mais nada, desejam e respeitam a vida ou ainda o “saber em movimento” , não imobilizado pelas artimanhas do sistema e pelas vaidades dos membros das academias, considerando-se as diferentes facetas das "novas fronteiras" – culturais, econômicas e científicas próprias às Américas e à sociedade do saber.

Nilce da Silva é professora da Faculdade de Educação da USP, coordenadora do Projeto Acolhendo Alunos em Situação de Exclusão Social e Escolar e editora da revista eletrônica Acolhendo a Alfabetização em Países de Língua Portuguesa.

Patrick Imbert é professor da Universidade de Otawa, no Canadá, e pesquisador das transformações socioculturas nas Américas contemporâneas.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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