Mutantes, Gal Costa, Jorge Ben, Caetano e Gil no programa “Divino,
Maravilhoso”, 1968
A Tropicália ou o tropicalismo,
o conceito cunhado pelo artista plástico Hélio Oiticica
que virou música e movimento pelas mãos de Caetano
Veloso, sempre gostou de andar na contramão e de revirar os
sentidos. Quando, nos anos 60, a estética determinava minissaias
vestidinhos apertados, Oiticica inventou seus parangolés.
Quando a MPB ainda procurava beber na fonte da bossa nova, surgiram
guitarras dissonantes e jovens mutantes. Agora, quando a Tropicália
comemora quatro décadas de eclosão, não partiu
do Brasil a idéia de uma exposição em comemoração
ao movimento que até hoje reverbera em todos os espectros
da arte: “Tropicália – Uma revolução
na cultura brasileira”, em cartaz no Museu de Arte Moderna
(MAM) do Rio de Janeiro até final de setembro, foi elaborada
pelo Museu de Arte Contemporânea de Chigago (EUA) e pelo Museu
do Bronx, em Nova York. Correu mundo – além dos Estados
Unidos, passou por Berlim e Londres – e só agora aporta
no Rio, curiosamente – mas não um caso de mera coincidência,
que nunca existe quando o assunto é tropicalismo –
no mesmo museu que acolheu pela primeira vez as criações
de Oiticica, quando a década de 60 mal começara a
exalar seu indefectível aroma de patchuli e revolução.
Faz sentido. Afinal, inverter mãos e entrecruzá-las
sempre foi o papel prioritário da Tropicália.
Não se pode afirmar categoricamente que a Tropicália,
o movimento, é uma fiel sucessora, por exemplo, do Antropofagismo
criado pelos modernistas. Este era nacionalista, digamos assim –
por mais que seus criadores detestassem rótulos. Já
o movimento de Caetano, Oiticica, Gil e tantos outros era mais,
por assim dizer, anárquico. Ou, como eles mesmos gostavam
de afirmar, era uma “geléia geral”, onde tudo
era possível e os cruzamentos culturais, mais do que bem-vindos,
eram quase uma exigência. Um movimento includente, que unia
guitarra e bossa nova, Chico Buarque, Roberto Carlos e Carmem Miranda
– ou seja, tudo que pudesse representar essa tal de “brasilidade”
de que tanto se fala e tão pouco se entende. Cenas da cultura
nacional – por mais que os sotaques parecessem estranhos uns
aos outros – explodindo para todos os lados, como já
bem avisava Caetano na música tema do movimento, lançada
no disco de 1968 Tropicália ou Panis et Circensis, com Gilberto
Gil, Caetano Veloso, Tom Zé (que por muitos anos ganhou o
injusto epíteto de “o baiano que não deu certo”)
e os jovens cabeludos dos Mutantes, com arranjos do maestro Rogério
Duprat: “Domingo é o fino da bossa/ Segunda-feira está
na fossa/ Terça-feira vai à roça/ Porém,
o movimento/ É bem moderno/ Não disse nada do modelo/Do
meu terno/Que tudo o mais vá para o inferno meu bem/Que tudo
o mais vá para o inferno, meu bem/ Viva a banda, da, da/
Carmem Miranda da,da,da,da”. Um festival de citações,
sem ordem, sem preocupações orgânicas. Uma geléia
geral, enfim. E era isso mesmo.
Os tropicalistas de primeira hora Caetano Veloso, Gilberto Gil e
Mutantes na capa do disco Tropicália e o maestro Rogério
Duprat (`a esq.): caldeirão de cultura em meio `a repressão
do regime militar
E é esse clima de geléia generalizada que toma conta
da mostra no MAM carioca. São ao todo 250 objetos, entre
obras, cartazes, poesia, roupas, divididos em tópicos como
teatro, artes visuais, arquitetura e música. Mas não
necessariamente em ordem cronológica ou organizada de
forma a ser mais “palatável” ao senso comum.
As obras políticas se misturam àquelas festivas, as
geométricas se fundem com as participativas, as datas se
alvoroçam em uma subversão de calendários.
Mas isso não impede que a exposição –
com obras de Lygia Clarck, do próprio Oiticica, Lygia Pape
e Nelson Leirner, por exemplo – retrate bem o período
nem que o público se sinta fora de esquadro, como se estivesse
desfilando de parangolé no meio da avenida Paulista. Nada
disso. O que se tem é uma imersão em um movimento
artístico – da maneira mais ampla que esta expressão
pode aceitar – que, hoje os críticos internacionais
entendem, rivalizou com a pop-art de Liechenstein e Andy Warhol
e serviu de válvula de escape para a repressão política
e social que o Brasil vivia naqueles agora (felizmente) distantes
anos de chumbo. “Tropicália é a tentativa de
buscar um lugar entre a indústria cultural, a vanguarda e
a cultura popular”, atesta o curador da mostra, o argentino
Carlos Basualdo. “A Tropicália não foi só
música, mas um momento, feito de múltiplas conversas”.
Mau humor fardado – Esse “momento”
e essas “múltiplas conversas” aos quais se refere
o curador surgiram em uma hora particularmente delicada da história
recente do País, justamente quando a chamada “linha-dura”
do regime militar que havia se instalado no Brasil em 1964 mostrava
sua carranca mais assustadora. E aqueles generais de maus bofes
que mandavam e desmandavam no País e determinavam prisões
a pretexto de uma fluída e nunca bem explicada “lei
de segurança nacional” não primavam pela estética
nem pelo bom humor para entender – ou tentar, pelo menos –
o que aqueles jovens cabeludos estavam procurando realizar. Ainda
mais depois que, em finais de 1968, foi baixado o AI-5 e, segundo
o Jornal do Brasil na época, o “ar ficou irrespirável”.
Esse mau humor fardado prendeu Caetano e Gil e os obrigou, em
1969, a se exilarem em Londres, a “swinging London” do
idílio psicodélico. Em vez de punir, no entanto, os
estetas verde-oliva acabaram por fazer um favor à Tropicália
– e o tempo se encarregou de provar isso. O movimento atravessou
fronteiras, bebeu em outras fontes, ganhou o mundo. Permaneceu,
como estética, como estilo, como história. Ou como
reflexão. O golpe, nem isso.
Oiticica (`a dir.) e um de seus parangolés: anarquia estética
A exposição “Tropicália –
Uma revolução na cultura brasileira” está
em cartaz no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (avenida Infante
Dom Henrique, 85) até 30 de setembro. |