Helmi Nasr, professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, dedicou sua vida à aproximação do Brasil com o mundo árabe. Criou as cadeiras de Língua e Cultura Árabe da Universidade, traduziu para o português o Alcorão – livro sagrado do islamismo, ditado em árabe ao profeta Mohamed (Maomé), conforme a tradição – e desenvolveu o primeiro Dicionário Árabe-Português do mundo. Aos 85 anos, sua trajetória é coroada com uma honraria singular: em maio passado, o professor foi convidado a integrar o Conselho dos Sábios da Liga Islâmica Mundial, entidade de grande importância para os muçulmanos.

© Francisco Emolo C/ Reprodução

O Conselho dos Sábios é um dos muitos órgãos integrados à Liga Islâmica Mundial, uma confederação sediada em Meca, na Arábia Saudita, que congrega diversas organizações ligadas aos diferentes aspectos da vida muçulmana. Formada por 21 xeiques, professores universitários ou representantes de importantes associações, a entidade tem a função de debater as principais questões do islamismo e propor soluções para os problemas encaminhados a ela. “Seus membros foram escolhidos para representar os muçulmanos do mundo inteiro. Eles discutem sobre as questões endereçadas e têm a palavra final sobre elas”, explica o xeique Ali Abdune, presidente do Conselho Superior dos Teólogos e Assuntos Islâmicos

Helmi Nasr hoje e quando ainda vivia
no Egito: vida dedicada à aproximação entre as culturas brasileira e árabe

no Brasil. As decisões tomadas são informadas aos governos do mundo árabe e colocadas em prática, graças ao prestígio de que goza a Liga Islâmica Mundial. Cabe à instituição, ainda, o papel de planejar ações para preservar o modo de vida islâmico. “O conselho deve apresentar projetos para melhorar a situação cultural no mundo árabe”, explica o professor Nasr.

O ingresso do professor Helmi Nasr é uma alegria ainda maior para a comunidade muçulmana do Brasil, já que é a primeira vez que um latino-americano é convidado a tomar parte do corpo superior de eruditos. “Nossa felicidade é que agora temos uma voz direta nesse conselho para levar as questões surgidas na comunidade muçulmana do Brasil”, comemora o xeique Abdune.  

O próximo encontro do grupo, que se reuniu pela primeira vez em abril de 2006, acontecerá em novembro. O professor Nasr já tem planos. “Meu trabalho será pautado por um esforço de valorização de nossa cultura básica, no lugar de seguir as influências modernas. Muitos países árabes agora são atingidos pela cultura norte-americana, inglesa e francesa e pensam que a civilização existe apenas lá. Pouca gente reconhece que a cultura original tem tesouros no que se refere ao aspecto humano”, aponta. Após a nomeação, o professor Nasr recebeu cartas de congratulações de diversos embaixadores brasileiros em países árabes e até do chanceler brasileiro, o ministro Celso Amorim.

Trajetória – O convite para integrar o Conselho dos Sábios não foi feito por acaso. Nascido no Egito, o professor Nasr desde cedo interessou-se pela tradição islâmica, indo a Paris fazer seu doutorado em Estudos Islâmicos, na Universidade Sorbonne, após concluir seus estudos de graduação no Cairo. Sua intenção era, até aquele momento, integrar o corpo diplomático de seu país.

Ao retornar ao Egito, no começo da década de 60, entretanto, acabou sendo nomeado para lecionar na Universidade do Cairo. Nessa época, o presidente brasileiro, Jânio Quadros, foi ao Egito para se encontrar com o presidente Gamal Abdel Nasser. “Após a reunião, ele ficou encantado e prometeu ao presidente Nasser que criaria um departamento de estudos árabes na maior e melhor instituição universitária brasileira, a USP”, lembra o professor. Para tanto, Jânio Quadros solicitou que o Egito enviasse ao Brasil um professor e o presidente Nasser atendeu seu pedido, solicitando à Universidade do Cairo que designasse um docente. “Não dispúnhamos, contudo, de nenhum professor que soubesse falar português e a universidade demorou a dar uma resposta.” Nasser fez uma nova solicitação, com caráter de urgência, e o diretor acabou tomando sua decisão. “O diretor me disse que, como eu falava francês, que é uma língua latina como o português, deveria ser eu o escolhido. Pedi um tempo para pensar e, no dia seguinte, concordei, colocando como condição que gostaria de ficar apenas um ano no Brasil”, recorda.

Nasr aportou no Brasil em 1962. Sua adaptação não foi difícil. “Convivia com muitos imigrantes, que falavam árabe e um pouco de português. Além disso, tive uma boa relação com as primeiras turmas, que sempre me ajudavam com a língua portuguesa.” O curso de Árabe se tornou, com a chegada do professor, uma disciplina regular da então chamada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, sendo logo de início muito procurada. “A maioria dos alunos, desde as primeiras turmas, era formada por brasileiros que não tinham origem árabe, mas tinham interesse por nossa língua e nossa cultura”, afirma.

As boas condições de trabalho que teve na USP, com a fundação do Centro de Estudos Árabes da Universidade, e o sucesso no trabalho com os alunos fizeram com que o professor começasse a prolongar sua permanência no País. Estimulado pelo sucesso das atividades, Nasr escreveu ao ministro de Educação da Arábia Saudita solicitando auxílio para a construção de um laboratório para o ensino da língua árabe. Após audiência com o rei, o ministério enviou ao professor uma generosa quantia em dinheiro, com a qual foi estabelecido um laboratório audiovisual de última geração.

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O xeique Abdune: muçulmanos brasileiros comemoram indicação de Nasr

Depois de dois anos, o professor deu início ao seu primeiro grande projeto: a produção de um dicionário árabe-português, algo que ainda não existia. “Pedi uma bolsa da Fapesp para um aluno do curso, Luís Rosa, e começamos a escrever o dicionário”, conta. O trabalho auxiliou gerações de alunos do curso de Árabe, que não tinham outra maneira de consultar palavras no idioma, mas ficou guardado no armário por cerca de 30 anos, aguardando a publicação que aconteceria apenas em 2005, por iniciativa da Câmara de Comércio Árabe Brasileira, da qual o professor é vice-presidente de Relações Internacionais.

Os anos foram passando. Novos projetos apareceram e o professor acabou ficando no País, fazendo visitas anuais a seus familiares no Egito e em outras nações árabes, aproveitando suas viagens pela Câmara de Comércio. Um dos projetos realizados pelo professor foi a versão para o árabe de Novo mundo nos trópicos, de Gilberto Freyre. A tradução do Alcorão para o português foi outro projeto que lhe tomaria diversos anos.


O Dicionário Árabe-Português, primeiro no mundo, e as traduções do Alcorão para o português e de Novo mundo nos trópicos, de Gilberto Freyre, para o árabe: intercâmbio entre povos através das letras

Alcorão em português – Em 1982, surgiu a idéia de fazer uma tradução do sentido do Alcorão para o português. Havia em língua portuguesa, até então, oito versões, sendo sete delas produzidas por escritores cristãos. “Apenas uma tinha sido feita por um muçulmano, porém mesmo ela tinha uma base cultural frágil”, conta o professor.

As traduções anteriores apresentavam falhas gritantes. “Às vezes, o tradutor não conhecia termos ou expressões utilizadas e simplesmente apagava o versículo. Eram também comuns erros simples de conhecimento do idioma, como a confusão entre a palavra em árabe para eternidade , que dava nome a um versículo, e a tarde , que foi a maneira como ele traduziu”, relata. Um dos autores chegou a fazer a tradução em formato de poesia, o que é proibido pelo islamismo. “Analisei diversas dessas falhas, certa vez, e descobri muitos motivos para rir – ou para chorar, se preferir”, brinca.

A Arábia Saudita fez uma solicitação para que Nasr traduzisse algumas obras relativas à cultura islâmica, mas ele enviou uma contraproposta. “Não havia necessidade ainda de traduzir outros livros, mas sim de traduzir a base da cultura islâmica. A idéia foi aceita por Meca e então comecei o trabalho”, conta o professor.

Foram necessários quatro anos de trabalho contínuo. Helmi Nasr afastou-se da USP e formou uma equipe especializada na gramática e na cultura árabe, trabalhando incessantemente. Depois de mais 18 anos de revisão, feita pela Liga Islâmica Mundial em Meca, a publicação foi autorizada. Desde a edição, em 2005, a Câmara de Comércio Árabe Brasileira já distribuiu 30 mil exemplares no País.

 

As raízes islâmicas do Brasil

A entrada do professor Nasr no Conselho de Sábios foi recebida com orgulho pela comunidade islâmica do Brasil, estimada em cerca de 1,5 milhão de pessoas, instaladas principalmente em São Paulo e no Paraná. Se o número de muçulmanos já é representativo, as origens árabes – e muçulmanas – do Brasil também não podem ser ignoradas. No aspecto populacional, o contingente árabe é significativo. Segundo estimativas, o número de libaneses, sírios e seus descendentes no País pode alcançar até 12 milhões de pessoas – população bem superior à do próprio país do Oriente Médio, que é de cerca de 3 milhões de pessoas. “No Brasil, não sofremos discriminação e por isso conseguimos levar com facilidade a prática da nossa religião”, acredita o xeique Abdune.

A maior parte dos imigrantes sírio-libaneses chegou ao Brasil no fim do século 19 e começo do século 20, mas as raízes muçulmanas do País remontam a um período anterior. “O islã tem uma grande tradição no Brasil, desde a época do descobrimento”, conta o xeique. O capítulo principal da presença islâmica no Brasil talvez seja o da escravidão, quando milhares de africanos oriundos da costa oeste do continente e de territórios como o reino do Mali foram trazidos para o Brasil. Originários de territórios muçulmanos da África Negra, os escravos mantinham sua fé no Brasil, apesar das pressões sociais. A influência sofrida no Brasil pela presença islâmica, entretanto, permaneceu em traços culturais, lingüísticos e sociais, principalmente no Nordeste.

O nome do Estado da Bahia, por exemplo, tinha uma conotação diferente para os escravos muçulmanos. “Em árabe, bahia significa belo. O mesmo ocorre com Recife, que em árabe significa calçadão, em referência às barreiras de coral no mar da costa da cidade”, conta o xeique, que analisou uma série de documentos de origem islâmica no Arquivo Público de Salvador. “Há no arquivo uma infinidade de materiais de origem muçulmana, feitos pelos escravos. Pude ver páginas do Alcorão Sagrado , ditos do profeta Mohamed, algumas cartas e súplicas em árabe trazidas ou escritas pelos escravos. Um dos cativos, por exemplo, guardava um papel em seu bolso para se proteger do seu senhor, de nome Francisco. Estava escrito em árabe: ‘Ó Deus, salvai-me do Francisco'”, informa Abdune. Foi possível resgatar uma série de documentos escritos por escravos de origem africana graças ao acesso que eles tiveram à alfabetização em sua região de origem. “A religião muçulmana incentiva o conhecimento, o que faz com que todas as pessoas o busquem. O primeiro versículo recitado por Deus é ‘Leia'. O profeta diz que adquirir conhecimento é uma obrigação, por isso os africanos muçulmanos tinham acesso ao estudo”, conta Abdune.

Preserva-se, dessa época, apenas a memória da Revolta dos Malês, ocorrida em 1835 em Salvador. A insurgência de escravos de origem nagô e hauçá, principalmente, ocorreu de modo sistemático e organizado, envolvendo de maneira mais marcante cativos de religião muçulmana. A rebelião, que foi um dos maiores levantes que aconteceram no Império, marcou a supressão da religião no Brasil, transformando traços religiosos em aspectos culturais. “A própria roupa baiana, branca, com turbante, é uma vestimenta islâmica, parcialmente modificada e modernizada, certamente, mas essencialmente ainda a mesma. O hábito de usar peças de roupa na cabeça e vestimentas compridas e brancas é islâmico. A touca, que ainda vemos na cabeça de muitos baianos, tem raiz no islã, já que é obrigatório que as mulheres cubram a cabeça e aconselhável que os homens façam o mesmo”, explica o xeique.

Segundo Abdune, na cidade de Salvador também é possível ver na arquitetura os resquícios de uma cultura islâmica no Brasil. “A Igreja da Natividade, em Salvador, foi construída por escravos muçulmanos. Quando você entra na igreja, vê o altar, que é baseado nos altares islâmicos, como os das mesquitas. Há inclusive uma imagem que lembra a de um xeique que faz o culto”, compara, lembrando que os escravos que trabalharam na obra, não sabendo construir igrejas por serem muçulmanos, fizeram-na nos moldes de uma mesquita. “No teto, há versículos escritos em árabe, trechos do Alcorão e da própria Bíblia. Uma das frases diz: ‘Esta é a porta do céu'”, aponta.

 
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