“Se eu morrer, vá embora com sua mulher e por onde passar pode dizer que Corisco tava mais morto do que vivo. Virgulino morreu de vez e Corisco morreu com ele. Mas por isso mesmo precisava ficar em pé, lutando até o fim, desarrumando o arrumado. Até que o sertão vire mar e o mar vire sertão”. Assim Corisco, uma das figuras do filme Deus e o Diabo na terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, resume sua perspectiva como personagem: a de personificação do fim do cangaço. A metáfora, entretanto, aparece de diversas formas na produção, em constante contraponto com o messianismo típico de uma época no Nordeste brasileiro. A análise do filme é desenvolvida por Ismail Xavier, professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da USP, no livro Sertão Mar: Glauber Rocha e a Estética da Fome, que acaba de ser relançado pela Cosac Naify, depois de ficar mais de dez anos esgotado, por conta de questões editoriais.

Na obra, além de Deus e o Diabo, o crítico de cinema faz um detalhado estudo de outro filme de Glauber Rocha, Barravento, de 1962, contrapondo-os a outros dois O Pagador de Promessas (de 1962, dirigido por Anselmo Duarte), e O Cangaceiro (de 1953, dirigido por Lima Barreto). “Escolhi exatamente esses dois filmes do Glauber porque queria trabalhar com produções anteriores ao golpe militar de 1964”, explica Ismail Xavier. A comparação de Barravento com O Pagador de Promessas e de Deus e o Diabo na terra do sol com O Cangaceiro foi pensada de maneira a evidenciar tudo o que as obras de Glauber deixam de ser. “Acreditei que ajudaria o leitor se revelasse os contrastes entre o cinema

moderno de Glauber Rocha e os protocolos do cinema clássico, respeitados pelos outros dois filmes”, esclarece.

O texto, que foi concebido como uma tese de doutorado, apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP em 1979, sob orientação inicial do crítico Paulo Emilio Salles Gomes e, após sua morte, de Antonio Candido, tinha como objetivo analisar de maneira ampla um aspecto negligenciado dos trabalhos de Glauber Rocha, sua potência estética. “Neste sentido, meu propósito foi superar o caráter redutor e excessivamente ideológico do debate em torno de Glauber Rocha, renovar a visão dos seus filmes pela atenção à forma, discutindo, em outros termos, o sentido político de sua mise-em-scène dentro de sua peculiar junção entre o olhar do documentarista e o cerimonial dos atores – gesto e palavra”, afirma Xavier na apresentação de Sertão Mar. O trabalho aprofundado e rico em detalhes fez do livro uma obra de referência para a crítica cinematográfica do país.

Leitor de Marx e da Bíblia – Ambos os filmes do cineasta baiano pautam-se por uma crítica social, abordando temas como exploração do trabalho, latifúndio e estruturas de poder no Brasil. “As obras evidenciam a figura de um Glauber que é leitor de Marx, mas também é leitor da Bíblia”, conta Xavier. O percurso de ambos, entretanto, tem mais a ver com a estrutura bíblica, a partir do caráter profético da visão de esperança ressaltada principalmente em Deus e o Diabo. O filme, marcado por grande descontinuidade, estabeleceu uma série de avanços, como a exploração de novas relações entre imagem e som, a utilização de possibilidades inovadoras de planos de imagem e o estabelecimento de uma variada gama de focos narrativos, em um processo definido por Ismail Xavier como “dilaceramento”.

“O filme, ao dialogar com a cultura popular, assume o cordel como uma das linguagens narrativas. Não se trata exatamente da mesma linguagem da obra cinematográfica de Glauber, contudo, e por isso Deus e o Diabo acaba oferecendo múltiplos canais de comunicação”, informa. O amplo espectro de pontos de vista resulta em uma produção complexa, conflitante, cujo narrador às vezes se aproxima da incerteza de algum personagem, com planos-seqüência feitos com câmera de mão, outras vezes deixa de revelar a subjetividade dos bastidores.

Sertão Mar faz uma extensa análise de estilo, trabalho ainda não empreendido de maneira profunda na época em que o livro foi escrito, detalhando informações de imagem e som deixados de lado por uma parte da crítica, que encarava o enredo como superior, do ponto de vista estético, aos “ornamentos” da imagem e do som. É justamente o conjunto dos aspectos técnicos, além das características narrativas, que configuram o estilo cunhado por Glauber Rocha no período, batizado de estética da fome, cuja função era expor a miséria brasileira, utilizando-se de uma linguagem que invertia o convencionalismo do cinema clássico e utilizava-se de poucos recursos técnicos. “O cinema clássico converge a multiplicidade de vozes em cena, unindo-as em uma só. Já no cinema moderno observa-se uma polifonia, que inclui até o ponto de vista do narrador”, afirma Xavier.


O livro Sertão Mar: Glauber Rocha e a Estética da Fome, é uma reedição da Cosac Naify (232 págs, R$ 49,00), com autoria de Ismail Xavier.

A interpretação é outro ponto central no trabalho de Glauber Rocha. Na personagem de Corisco, por exemplo, vivida por Othon Bastos, opera-se o distanciamento proposto pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht. “Por sua maneira de atuar, por sua relação com a câmera, pelos gestos, declamações e monólogos, o diretor deixa claro que aquela cena se trata de um grande teatro. A formação teatral do Glauber leva à presença do ritual e dos símbolos em seus filmes”, analisa o autor.

O resultado é um trabalho de grande complexidade, que traz dificuldades de leitura a um espectador habituado com o cinema convencional. A riqueza da produção de Glauber Rocha, esmiuçada na obra de Ismail Xavier, pode ser melhor acessada com a leitura do trabalho crítico. Como informa o autor, “Procurei fazer um trabalho tão detalhado para explicar o impacto que o cinema de Glauber teve no mundo inteiro”.

 
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