O professor Paulo Emílio Salles Gomes chegava antes do horário oficial para suas aulas sobre cinema brasileiro na USP. A aula começava quando o primeiro aluno entrava na sala. O professor iniciava uma conversa leve, provocadora e irreverente, deixando transparecer aos poucos o rigor do pesquisador e as opiniões do crítico cinematográfico. Neste mês, faz 30 anos que Salles Gomes morreu. Para lembrar a data, o Cinema da USP (Cinusp) – que recebe o nome de Paulo Emílio – apresenta uma mostra com clássicos do

cinema que foram alvo dos estudos e críticas de Salles Gomes, além de documentários sobre o professor. A mostra começou no dia 17 e vai até esta sexta-feira, dia 28 (leia abaixo a programação desta semana).

“Ele foi o melhor professor que tive na vida”, relembra Ricardo Dias, diretor do documentário Paulo Emílio (1981). O ex-aluno conta que ajudava o professor a arrumar as cadeiras do auditório, logo cedo, para aproveitar ao máximo a grande conversa pedagógica sobre cinema brasileiro. Salles Gomes começou a lecionar na USP em

Paulo Emílio Salles Gomes durante aula na ECA: pensador do cinema

1968. As aulas da graduação eram abertas e abrigavam os interessados em cinema, principalmente brasileiro, no auditório que hoje leva o seu nome.

Em todas as aulas, um aluno se encarregava de anotar os pormenores de um filme brasileiro em cartaz, que deveria ser assistido pela turma toda. Após a exposição do relator, iniciava-se o debate, que atraía alunos de dentro e de fora da USP. O cineasta Fernando Meireles, aluno da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), participava das reuniões. O distribuidor cinematográfico Marco Aurélio Marcondes e seus colegas atravessavam a rodovia Dutra, vindos do Rio de Janeiro, somente para as aulas. Mesmo quando os encontros eram marcados aos sábados, a turma era numerosa.

A descoberta da cultura brasileira era incentivada. Na seleção de filmes havia clássicos e fitas populares. As pornochanchadas eram assistidas com muita seriedade, conta Ricardo Dias, “para aprendermos mais sobre nós mesmos”. Arnaldo Jabor, como outros diretores brasileiros, apresentou sua produção Tudo bem em pré-estréia nas aulas de Salles Gomes na ECA. “Todo mundo tinha interesse em saber a opinião do Paulo Emílio sobre seu filme”, assegura Dias.

Entusiasmado com o avanço do cinema nacional, o professor até participou como ator em O sistema do doutor Alcatrão e do professor Penna, produzido por alunos do curso de Cinema e dirigido por Luiz Alberto Mendes Pereira, que mostrava uma revolta num hospício. A paixão por anotações, por dados e detalhes da produção cinematográfica se traduzia em um professor alegre mas rigoroso.

Descobrir e construir – Nascido em 1916 em São Paulo, Salles Gomes foi detido, após a Intentona Comunista de 1935, no presídio do Paraíso, em São Paulo, de onde fugiu por um túnel. Ele se escondeu e procurou refúgio no Quartier Latin de Paris por quatro anos. As convicções marxistas seriam sustentadas ao longo de toda a vida. Aos 23 anos, de volta ao Brasil após a estadia na França, ingressou no curso de Filosofia da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.

Décio de Almeida Prado, amigo de infância e colega do Liceu Nacional Rio Branco, logo convidaria Salles Gomes para participar dos encontros na Confeitaria Vienense, onde ele conheceria Antonio Candido e outros jovens eruditos, a geração apelidada por Oswald de Andrade como “chato-boys”. O grupo composto por Lourival Gomes Machado, Ruy Coelho e Gilda de Mello e Souza, além de Antonio Candido, Décio de Almeida Prado e Salles Gomes, fundou a revista Clima, em cujas páginas faziam comentários críticos e pesquisas sobre teatro, literatura, artes plásticas e cinema.


Paulo Emílio Salles Gomes em Londres, com Lygia Fagundes Telles, ao lado do túmulo de Karl Marx

Com a convicção de que o contato aprofundado com os filmes era essencial para a obtenção de dados e percepções – bases para o conhecimento do cinema –, Salles Gomes organizou o Clube de Cinema em 1940, sob a influência de Plínio Sussekind, criador do Chaplin Club do Rio de Janeiro. Os participantes dividiam as despesas, marcavam uma sessão e um local de encontro e alugavam um dos poucos filmes à disposição na época. O clube foi proibido pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo. Depois, em 1946, seria aberto o segundo Clube de Cinema de São Paulo, cujo acervo constituiria a filmoteca do Museu de Arte Moderna (MAM), também dirigida por Salles Gomes. Esse mesmo arquivo de filmes originou a Cinemateca Brasileira, que teve o crítico como primeiro conservador-chefe.

Entre 1946 e 1954, Salles Gomes voltou à França, com uma bolsa de estudos do governo francês. Nesse período escreveu a biografia do diretor francês Jean Vigo, vencedora do Prêmio Armand Tallier, eleito o melhor livro sobre cinema de 1957. “Eu fiquei tempo demais na França e isso atrasou minha vida”, avaliou Salles Gomes, no documentário de Ricardo Dias.

Ao longo de sua vida, ocorreu o que Salles Gomes chamava de “descolonização”, um progressivo caso de amor com a produção cinematográfica brasileira. Entre o fim dos anos 50 e nos anos 60, o professor se torna o mentor intelectual do Cinema Novo. Tendo como objetivo a consolidação do conhecimento sobre cinema, em 1965 ele participou do primeiro curso superior em Audiovisual na Universidade de Brasília (UnB), experiência logo abortada pelo regime militar. No mesmo período, organizou mostras cinematográficas que originariam o Festival de Brasília de Cinema Brasileiro.

Sua produção no campo da crítica e da história cinematográfica abrange os livros 70 anos de cinema brasileiro (1966), em co-autoria com Ademar Gonzaga, Panorama do cinema brasileiro (1970), a tese de doutorado Cataguases e Cinearte na formação de Humberto Mauro (1972), Cinema, trajetória do subdesenvolvimento(1973) e a coletânea póstuma de artigos Paulo Emílio: crítica de cinema no Suplemento (1982). Há ainda a peça de teatro Destinos (1936), a biografia Jean Vigo (1956) e as obras de ficção Cemitério (1973-1976) e Três mulheres de três PPPês (1977).

Um ataque cardíaco fulminante matou Salles Gomes, no dia 9 de setembro de 1977, aos 60 anos. Seu principal legado para a Universidade e o Brasil é o interesse e a pesquisa pelo cinema brasileiro. Nas palavras do professor: “Eu sinto que existe entre nós uma espécie de incapacidade de copiar, que me parece bom sinal. Sinal de uma personalidade nacional, que é difícil de definir, mas que a gente sente que existe”.

A mostra “Paulo Emílio: uma homenagem” fica em cartaz no Cinema da USP (Cinusp) Paulo Emílio até esta sexta-feira, dia 28, na rua do Anfiteatro, 181, Colméia, Favo 37, na Cidade Universitária, em São Paulo. A entrada é franca. Mais informações pelos telefones (11) 3091-3540 e 3091-3152 e na página eletrônica www.usp.br/cinusp.

 

O cinema segundo o mestre

A mostra “Paulo Emílio: uma homenagem”, em cartaz no Cinema da USP (Cinusp), apresenta clássicos de cinema através da ótica de Paulo Emílio Salles Gomes, relembrando os 30 anos do falecimento do professor, crítico e historiador. São apresentados também dois documentários sobre a trajetória acadêmica e crítica do homenageado. Na página eletrônica do Cinusp há trechos de críticas de Paulo Emílio sobre cada filme da mostra.

A seguir, a programação desta semana.

Dia 24, segunda-feira: P. E. Salles Gomes (Brasil, 1979), de David E. Neves (16 horas), e A regra do jogo (França, 1939), de Jean Renoir (19 horas).

Dia 25, terça-feira: O portal do inferno (Japão, 1953), de S. Kinogasa (16 horas), e O grande ditador (Estados Unidos, 1940), de Charles Chaplin (19 horas).

Dia 26, quarta-feira: A linha geral (União Soviética, 1928), de Sergei M. Eisenstein (16 horas), e Nascimento de uma nação (Estados Unidos, 1915), de D. W. Griffith (19 horas).

Dia 27, quinta-feira: A regra do jogo (França, 1939), de Jean Renoir (16 horas), e P. E. Salles Gomes (Brasil, 1979), de David E. Neves (19 horas).

Dia 28, sexta-feira: O grande ditador (Estados Unidos, 1940), de Charles Chaplin (16 horas), e O portal do inferno (Japão, 1953), de S. Kinogasa (19 horas).

 
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