Fazer uma face é muito parecido com construir uma casa usando as peças mágicas de um Lego. Imagine uma casa de Lego construída com 20 peças (quatro no chão e cinco andares acima). Se uma peça de canto for removida, as outras 19 passam por uma deformação e a casa inclina para o lugar deficiente. A comparação é feita pelo pesquisador Michael Carstens, da Universidade Saint Louis, de Missouri, nos Estados Unidos, responsável pela primeira cirurgia de enxerto com utilização de proteína osteomorfogênica (BMP, sigla em inglês de Bone Morphogenetic Protein) em paciente com fissura labiopalatina feita no Brasil, no Hospital de Reabilitação de Anomalias Labiopalatais da USP, o popular Centrinho, em Bauru.

Foto crédito: Assessoria de Comunicação do HRAC/USP

O procedimento demonstrativo, autorizado pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), foi acompanhado no dia 29 de agosto pela equipe de reabilitação do hospital da USP, com muita expectativa. A primeira cirurgia do gênero no mundo também foi feita por Carstens, em 2001, na Califórnia.

“A proteína BMP atua na região implantada transformando células indiferenciadas (células-tronco) em osteócitos e osteoblastos”, explica o médico Sergio Duval de Barros Vieira, responsável técnico pela cirurgia realizada em Bauru e especialista em Cirurgia Plástica Bucomaxilofacial pela

O pesquisador Michael Carstens e a equipe do Centrinho em ação, no dia 29 de agosto: a primeira cirurgia de enxerto com utilização de proteína BMP em paciente com fissura labiopalatal feita no Brasil


Universidade de Pittsburgh. Ou seja, a proteína induz ao desenvolvimento de ossos do próprio paciente, tornando desnecessário o uso de enxertos ósseos. De acordo com o especialista, a qualidade do osso formado pela proteína é praticamente a de um osso normal, permitindo movimentação do dente na área, assim como o implante dentário na região.

Elaborada sinteticamente em laboratório, a proteína é embebida numa membrana de colágeno que, ao ser implantada, atrai células-tronco, que se multiplicam e se diferenciam, criando o tecido necessário para reconstruir a região malformada. “Recentemente, operamos 19 pacientes no Hospital Infantil da Cidade do México. Os resultados dos enxertos foram excelentes”, complementa Vieira, que compõe o grupo de pesquisa de Carstens.

Atualmente, a equipe do Centrinho utiliza o tecido ósseo da crista ilíaca (região do quadril) para realizar os enxertos de preenchimento e restabelecimento do defeito ósseo na área da fissura. “Embora seja um procedimento com índice de sucesso muito bom, há algumas implicações durante e após a cirurgia, afinal, para obter o tecido do quadril é necessário fazer outra cirurgia, além da feita na região bucal. Além disso, o pós-operatório da região da crista ilíaca é muito doloroso, com necessidade de um tempo de internação maior e de alguns meses de repouso”, explica a diretora da Divisão Odontológica do Centrinho, Terumi Okada Ozawa. “É um avanço, se realmente essa regeneração óssea com a proteína ocorre em menor tempo, por meio de uma técnica tão simples”, complementa Terumi, avaliando a técnica de Carstens. “Mas ainda é um material caro para nós”, reconhece. O custo atual está em torno de US$ 1 mil por cada enxerto.

Foto crédito: Assessoria de Comunicação do HRAC/USP

Segundo Carstens, a utilização dessa proteína para o tratamento de anomalias craniofaciais já está sendo negociada com todos os sistemas de saúde, inclusive com o SUS (Sistema Único de Saúde). Especialista em cirurgia plástica, o médico já realizou mais de 170 cirurgias em países como Estados Unidos e México, todas com utilização da BMP e com a técnica de sua autoria denominada Relocação de Campos Embrionários (RCE). “Nossos pacientes têm obtido bons resultados estéticos e funcionais”, afirma. “Com base numa nova visão sobre o desenvolvimento facial, pensamos os tratamentos atuais considerando dois eixos centrais: a embriologia molecular e a terapia genética com células-tronco”, explica Carstens. “Não podemos mais avaliar as anomalias craniofaciais sem respeitar os planos embriológicos. Por isso comparo a face ao jogo de Lego. Precisamos realocar os diversos setores da face, entendendo toda a estrutura como um mapa genético e o sistema nervoso como endereços que devem ser muito bem observados”, complementa.

Desde 2002, quando foi aprovada pelo FDA (Food and Drug Administration) – órgão dos Estados Unidos similar à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) do Ministério da Saúde –, a proteína morfogenética óssea vem sendo usada em tratamentos ortopédicos, acelerando a recuperação de pacientes e evitando amputações de membros e até mortes. No tratamento das anomalias craniofaciais, a proteína só foi aprovada pelo órgão no ano passado.

“O Centrinho tem interesse em estudar e observar a resposta de novas técnicas que possam, futuramente, fazer parte de nosso protocolo de tratamento”, afirma o cirurgião-dentista João Henrique Nogueira Pinto, diretor administrativo-financeiro do hospital.

Terapia gênica – A primeira aplicação da terapia gênica em humanos ocorreu em 1990. Carstens explica que a terapia gênica já não é limitada à substituição de genes defeituosos, mas se tornou um método de introduzir proteínas ou fatores de crescimento individuais em tecidos específicos e células.

Foto crédito: Assessoria de Comunicação do HRAC/USP
Terumi e Carstens: um avanço para a odontologia e a medicina

“Embora todas as células contenham os genes para todas as proteínas humanas, células derivadas de um tecido específico expressam apenas algumas dessas proteínas. Com a terapia gênica é possível levar um gene a determinada célula e esta a expressá-lo continuamente”, explica.

Nascido com fissura labiopalatina em 17 de fevereiro de 1950, na cidade de Hampton, em Iowa, nos Estados Unidos, Carstens foi um menino retraído que devorava livros, já que não tinha amigos e vivia num mundo de isolamento. Talvez por isso mesmo, o pesquisador que decidiu se dedicar à medicina fale de seu trabalho, explique suas técnicas e a evolução dos casos com tanto entusiasmo. Tanta paixão.

Formado em Medicina pela Universidade de Stanford, Carstens fez residência na Universidade de Pittsburgh, onde conheceu o médico mineiro Sergio Duval de Barros Vieira. “A idéia de Michael vir trabalhar com os fissurados no Brasil é antiga e retornou com força total quando nos revimos no México, em 2005, período em que fizemos cirurgias com Enrique Ochoa, pioneiro na técnica, junto com Michael”, conta Vieira. “Seus trabalhos nos campos combinados de embriologia e cirurgia são, sem sombra de dúvida, um marco para a cirurgia facial moderna”, completa.

Para eles – e para a equipe do Centrinho, que trabalha com cirurgias faciais há 40 anos –, uma coisa é certa: a odontologia e a medicina praticadas hoje sofrerão mudanças profundas quando esses novos conceitos forem disseminados e aplicados.

 
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