Toda língua é um organismo vivo e em mutação, cujas transformações acompanham as necessidades dos falantes. O fenômeno não é ignorado pelos parlamentares brasileiros. Nesta semana, a Câmara dos Deputados deve dar nova parcela de colaboração a essas transformações, ajudando a fazer com que um “P” deixe de significar “Provisório” e assuma o caráter de “Permanente”.

Trata-se da votação em segundo turno da Proposta de Emenda à Constituição que prorroga a Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF), prevista para esta terça, dia 9. A cobrança foi aprovada em 1993 e vigorou até o final de 1994. Dois anos depois, já no governo Fernando Henrique Cardoso, o tributo retornou, dessa vez com a justificativa de direcionar recursos para a área da saúde. Prorrogada sucessivamente desde então, a CPMF é uma fonte importantíssima de recursos para o governo. Apenas em 2006, arrecadou R$ 32 bilhões.


A CPMF possui inúmeros inimigos, que têm organizado movimentos que tentam convencer os parlamentares a derrubá-la. Mas entre os seus defensores está o ex-ministro da Saúde Adib Jatene, que no 3º Simpósio Avanços em Pesquisas Médicas, promovido pelo Hospital de Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP, no final de setembro, afirmou que o principal problema do sistema de saúde brasileiro não é de gestão, mas sim de falta de recursos. “A área econômica do governo e parte do setor empresarial procuram impor à população a idéia de que não nos faltam recursos e sim gestão. Dizem que a carga tributária é elevada e o volume de recursos à disposição do setor é muito grande. Isso é uma completa falácia”, disse Jatene à Agência Fapesp (leia o texto abaixo).

“Reconheço que nós, os defensores da CPMF, cabemos todos juntos numa van”, brinca o médico Paulo Andrade Lotufo, professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da USP e superintendente do Hospital Universitário (HU) da USP. Para ele, só se pode dizer que há problemas de administração quando existe uma quantidade mínima de recursos à disposição. “Se você não tem os recursos, como pode falar que está gerindo mal esse dinheiro?”, pergunta.

Isolamento – Opinião divergente é a do professor José Antonio Franchini Ramires, do Instituto do Coração do HC e presidente do Conselho Superior do Sistema Integrado de Saúde da USP (Sisusp), responsável pelo atendimento a docentes e funcionários. “É óbvio que há necessidade de recursos, mas a falta de uma boa gestão acaba trazendo um buraco enorme”, diz. “A CPMF é uma torneira aberta numa caixa d'água cheia de ralos. De quantas CPMFs vamos precisar para não esvaziar a caixa d'água?”

“Todas as vezes que conversei com algum presidente da República sobre financiamento, eles dizem: ‘Mas eu coloco muito dinheiro na área da saúde. Isso é um buraco sem fim'. Entendo essa preocupação, porque eles não conseguem enxergar o limite de onde vai esse recurso”, diz o professor Ramires. “Quando estouram escândalos como o dos sanguessugas, acabam transparecendo os desvios e a malversação dos recursos. Se você gasta muito e vê que o dinheiro está sendo mal gasto, o problema é de gestão.”

Para Ramires, o Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1988 e regulamentado em 1990, é ideal para um país pequeno e com bons recursos, mas não para uma nação das dimensões do Brasil, com seus quase 200 milhões de habitantes e 8,5 milhões de km 2 . Entre os problemas do modelo está o fato de que as unidades não conversam entre si e permanecem isoladas. Muitos pacientes acabam procurando um serviço de Pronto-Socorro mesmo que não precisem de atendimento de urgência. “A consulta simples numa unidade local demora tanto que é mais fácil ir ao Pronto-Socorro, porque pelo menos a pessoa será atendida, ainda que não de forma adequada”, diz o professor. É uma realidade que afeta todos os grandes hospitais, causando sobrecarga e desvio de funções.

Outro problema da falta de integração do sistema é que equipamentos caros, como os que realizam exames de ressonância magnética ou de tomografia computadorizada, não são utilizados nas 24 horas do dia nos hospitais públicos que os possuem. “Às 18 ou 19 horas fecha-se a porta e ficam dentro da sala milhões de dólares dormindo até a manhã seguinte. Que direito temos de fazer isso, se o dinheiro é público?”, pergunta Ramires. Dessa forma, impede-se o intercâmbio de pacientes na rede e cria-se uma fila desnecessária.


Lotufo e Ramires: opiniões opostas sobre o tributo

O professor também critica o desvio de arrecadação da CPMF para outros setores. “Pode ser que os recursos não sejam suficientes, mas, com gestão adequada e destinação apenas para a saúde, não seria necessário tanto a mais.” Entretanto, afirma, há “muitos outros interesses” que impedem que se “coloque o dedo na ferida” para promover as mudanças necessárias. “Vivemos num sistema desintegrado e bagunçado por interesses pessoais, e a CPMF vai cobrir esses erros” acredita Ramires.

Limites – “O financiamento da saúde é complexo em todos os lugares do mundo. Hoje não há nenhum país que possa dizer que está com a situação equalizada”, diz o superintendente do HU, Paulo Lotufo. O que o Brasil precisa fazer em relação ao seu sistema, defende, é estabelecer prioridades. “O SUS faz de tudo, desde caçar mosquito da dengue até transplante de medula óssea. Se vou fazer de tudo para todos, certamente farei pouco para quem mais necessita.”

Como não há limites, quem tem melhor capacidade de organização e de reivindicação acaba obtendo mais benefícios, mesmo que não seja o segmento da população que mais precisa. “A classe média consegue obter remédios caríssimos fornecidos pelo SUS, mas quem está em determinadas regiões do País não tem acesso a medicamentos básicos”, diz. No fundo, é uma discussão política sobre de que forma as pessoas se apropriam das riquezas do País. Como o Brasil é um dos campeões mundiais da desigualdade, geram-se distorções como a apontada por Lotufo em relação à vacina contra o papilomavírus humano (HPV), associado ao câncer de colo uterino. “A vacina vai para o mercado a um custo de R$ 1,2 mil. Quem vai se vacinar são as pessoas que não estão sob risco, porque o HPV é totalmente relacionado à pobreza”, afirma. “Mesmo que a pessoa pague, depois vai abater no Imposto de Renda. Ou seja, o governo acaba financiando parte da despesa. O correto seria vacinar gratuitamente as populações em que o risco é maior.”

Para o professor, “todos estão no SUS”, mesmo quem paga convênio de saúde particular, pois acaba deduzindo parte desse gasto. “Quem sofrer um acidente hoje será atendido num hospital público pago pelo SUS. Depois, quando estiver estabilizado, é que irá para o atendimento privado.” No próprio HU, 25% dos atendimentos são para pacientes que têm convênio privado, sem que o hospital seja ressarcido. Por essas e outras razões, Lotufo defende o aumento da alíquota da CPMF e a diminuição do Imposto de Renda.

Para a rede pública atender melhor, seria necessário estabelecer alguns limites e prioridades, como alguns países já fazem em relação a tratamentos de câncer ou diálise. “É preciso definir: até que idade vamos fazer transplante? Até que peso vamos reanimar prematuros? São questões muito sérias cuja discussão não é dos médicos, mas sim um debate ético para toda a sociedade.”

 

Sonegação e isenções tiram verba do sistema

Para Adib Jatene, o porcentual para a saúde destinado pela Constituição – de 30% do orçamento da seguridade – não é cumprido. O valor deveria ser de R$ 110 bilhões em 2007, mas, incluindo a parte contingenciada pelo governo, chega a R$ 44 bilhões. “É ruim uma gestão que consegue, com esses recursos, internar 11,5 milhões de pessoas, financiar todos os transplantes de órgãos, mais de 70% das cirurgias cardíacas, quase toda a hemodiálise e medicação para análise, fazer uma vacinação em larga escala que é a melhor do mundo?”, questionou o professor à reportagem da Agência Fapesp.

Para Jatene, que já foi diretor da Faculdade de Medicina da USP e presidente do Conselho Deliberativo do Hospital das Clínicas, o problema do financiamento da saúde está relacionado à má distribuição de renda no País e a realidades como a sonegação e a evasão fiscal. Como a CPMF atinge praticamente todas as movimentações financeiras, o cruzamento de informações do sistema bancário com as declarações de Imposto de Renda permitiu identificar contribuintes que se declaravam isentos, mas que movimentavam milhões em suas contas. Segundo Jatene, um levantamento indicou que, dos cem maiores contribuintes da CPMF, 62 nunca tinham pago Imposto de Renda.

“Quando cruzamos informações, a arrecadação triplicou e isso não quebrou ninguém, as exportações vão bem e as reservas se mantêm. Mas, além da CPMF, a legislação ainda tem muitos outros mecanismos de elisão, de não-pagamento de tributos, de evasão de recursos por multinacionais e isenções de toda ordem”, afirmou o ex-ministro.

 
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