As telenovelas – um dos principais artigos de exportação do Brasil – estão entre os fatores que contribuem para que estudantes dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop) queiram cruzar o Atlântico para fazer estudos de graduação e pós-graduação aqui. “A imagem que passa lá não mostra a violência, o lixo nas ruas etc.”, diz o pesquisador moçambicano Carlos Subuhana, 35 anos, que faz

Foto crédito: Cecília Bastos

pós-doutorado no Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Que o diga a estudante cabo-verdiana Amarina Delgado Monteiro, 23 anos, desde 2006 aluna do curso de Psicologia da USP. As novelas, os filmes e a música brasileira – “Ivete Sangalo é superfamosa lá”, conta – influenciaram sua decisão de fazer um curso no Brasil. Um dia, porém, ao chegar em casa, percebeu que sua carteira havia sido roubada no ônibus. “A mídia mostra só o mar de rosas. Quando chegamos aqui, vemos outra coisa”, diz.


Alguns percalços como esse e dificuldades naturais de adaptação fazem parte do relato dos estudantes entrevistados por Subuhana, que falou de sua pesquisa na palestra “O estudante convênio: a experiência sociocultural de universitários da África lusófona em São Paulo”, realizada na semana passada no Instituto de Psicologia da USP. Entretanto, de forma geral, o período passado no Brasil é avaliado de maneira bastante positiva. O próprio Subuhana o qualifica como “muito gratificante”. Depois de fazer graduação, mestrado e doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o moçambicano espera concluir o pós-doutorado na USP e finalmente retornar a seu país. Lá, terá boas chances de lecionar, e espera conciliar as aulas com atividades numa ONG e as pesquisas. O período de estudos não foi o seu primeiro no exterior. Subuhana já viveu na Tanzânia, como refugiado, durante a guerra de libertação moçambicana, na década de 1970.

O colonialismo, a luta pela libertação do domínio português nos anos 60 e 70 e as novas realidades com a independência são traços históricos comuns aos Palops. Uma das mudanças é o crescimento do ainda incipiente ensino superior. Em média, apenas 1% da população tem formação universitária. Até 1999, Angola tinha apenas uma universidade. Hoje são 16, para uma população de 15,9 milhões de habitantes. Moçambique tem 25 universidades e 20,7 milhões de habitantes. Uma delas, a Mussa Bin Bique, no norte do país, recebe muitos brasileiros que querem formação na religião islâmica.

Família – Subuhana entrevistou 20 estudantes de seis universidades de São Paulo, com idade entre 18 e 44 anos, tanto homens como mulheres. A expectativa de retorno é um sentimento dominante entre eles, até como exigência dos programas de convênio firmados entre os governos do Brasil e dos Palops. Os projetos de vida também são atrelados à idéia de voltar, porque o conceito de família é central em muitas culturas africanas. A tia de um dos entrevistados penhorou a casa para que o sobrinho pudesse vir. Também é freqüente que o irmão mais velho tenha que assumir responsabilidades perante os mais novos. No caso de um moçambicano, dois irmãos ajudaram financeiramente. “Só o fato de saber que teriam um irmão com diploma no exterior faz com que eles se sintam mais importantes perante seus amigos”, conta Subuhana.

Foto crédito: divulgaçãoA questão financeira está entre as dificuldades citadas pelos estudantes. Alguns vêm de famílias que pertencem às elites econômicas ou políticas de seu país, enquanto outros não têm recursos e dependem de bolsas, que são prometidas mas nem sempre concedidas. É o caso dos alunos de São Tomé e Príncipe, que já pediram a intervenção do governo brasileiro para solucionar o problema.

Os estrangeiros precisam renovar o visto e obter uma nova carteira de identidade anualmente na Polícia Federal, e pagam taxas para os dois documentos. Como são estudantes, não podem ter emprego, apenas estágios – nem sempre fáceis de obter. Amarina, por exemplo, está tentando uma monitoria no Instituto de Psicologia, mas ainda não conseguiu. Ela não tem bolsa e recebe ajuda de uma amiga de Cabo Verde para se manter. Como mora no Conjunto Residencial da USP (Crusp), não tem despesas com habitação, o que facilita bastante. “Não sei como seria sem o Crusp. Estou muito tranqüila por estar aqui”, afirma.

Discriminação – O preconceito racial é apontado pelos estudantes como a principal causa de mal-estar no Brasil. Um estudante contou que estava com uma namorada branca e foi abordado pela Polícia. Depois de mostrar o documento da USP e ser liberado, perguntou por que havia sido parado. O policial respondeu que o rapaz tinha “sorte de estar vivo”, além de não ter “condições de fazer pergunta nenhuma”. Para Subuhana, o preconceito sofrido pelos africanos é semelhante ao que vitima os negros brasileiros. “A diferença é que um africano não está preparado, por exemplo, para ser discriminado num shopping, como acontece aqui”, afirma. O pesquisador acredita que os alunos africanos podem ajudar a esclarecer os brasileiros sobre a realidade africana. “A imagem da África que aparece na mídia brasileira é só de Aids, guerras e calamidades”, diz. Amarina concorda. “As pessoas acham que a África é um país só. Mas há lugares com vida difícil e outros que são bem tranqüilos”, diz.

Alguns dos fatores positivos citados pelos estudantes são a facilidade com a língua, o custo de vida baixo em comparação com outros países, a valorização da formação universitária no Brasil e a integração e amizade com os brasileiros – entre os pesquisados por Subuhana há uma estudante de Guiné-Bissau que se casou com um gaúcho. Como poucos têm recursos para visitar a família nas férias, a saudade – essa palavra tão portuguesa – é driblada com e-mails, cartas, telefonemas e torpedos via celular.

Para a jovem Amarina, e-mails e cartas não ajudam, porque os pais são analfabetos. Oitava de 11 filhos, ela é a única a ir para a universidade, além de uma irmã que faz formação de nível médio para ser professora. Seus pais estão achando “maravilhosa” a possibilidade de ter uma filha estudando em outro país. A jovem, que veio da Vila das Pombas, Concelho de Paul, na Ilha de Santo Antão – uma das dez que formam Cabo Verde, cuja população total é de 475 mil habitantes –, é grata pela oportunidade. Em sua fala, entremeada pelo brasileiríssimo “tipo assim” e por construções do português africano, como “ninguém não conhecia”, ela reconhece o valor da experiência: “Está valendo muito a pena. A mudança foi a melhor coisa que me aconteceu”.

 

Serviço dá apoio psicológico a migrantes

Se viver fora do país de origem causa estranhamentos e dificuldades de adaptação, a volta também nem sempre é tão simples. “A experiência de retorno é uma nova migração, extremamente impactante, porque tudo está diferente, inclusive a própria pessoa”, diz Sylvia Dantas DeBiaggi, professora de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP. Ao lado do professor Geraldo Paiva, Sylvia é uma das criadoras do Serviço de Orientação Intercultural do instituto, que oferece gratuitamente atendimento psicoterápico para imigrantes, familiares e retornados, além de preparar brasileiros que vão para o exterior. A palestra de Carlos Subuhana foi promovida pelo Grupo de Pesquisa Psicologia, E/I-Migração e Cultura, que integra o projeto.

Para a professora, a realidade de intercâmbio é crescente e seus efeitos vão atingir cada vez mais pessoas, mas suas facetas nem sempre são conhecidas. “Esse contato causa um estresse que você acaba somatizando”, diz a docente, que também passou pela experiência de estudar no exterior (fez mestrado e doutorado em Boston, nos Estados Unidos). “Esse estresse será maior ou menor dependendo de uma combinação de fatores que incluem a sociedade receptora, a motivação do deslocamento e processos internos. É uma questão psicossocial e temos que estar cientes disso.”

Interessados podem agendar uma entrevista no Serviço de Orientação Intercultural pelo telefone 3091-4360 ou pelo e-mail psimigra@usp.br. Na internet, a página eletrônica é www.ip.usp.br/laboratorios/intercult/site. Para informações sobre a África e atividades ligadas aos africanos em São Paulo: www.casadasafricas.org.br (espaço cultural e de estudos) e www.geocities.com/mozucas (página dos estudantes moçambicanos).

 

Integração via idioma

Estudantes de graduação dos Palops na USP em 2007

País

Quantidade

Guiné-Bissau

25

Cabo Verde

24

Angola

9

São Tomé e Príncipe

8

Moçambique

5

Total

71

Fonte: Comissão de Cooperação Internacional (CCInt) da USP

 
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