No caminho para a integração do Mercosul, a Amazônia tende a ser novamente o centro topográfico e político do continente sul-americano e a retomar o papel de destaque que já ocupou no passado. Compartilhada territorialmente por nove países, incluindo as Guianas, a Amazônia representou durante muito tempo o “fim da linha” por suas dificuldades de comunicação e acesso. Mas o pensamento antigo do general Meira Mattos – publicado no livro Brasil: geopolítica e destino, de 1975 –, retratando a região como um eixo comunicante entre os diversos países limítrofes, parece estar sendo retomado atualmente no desenho das estradas que vão sendo planejadas e concluídas naquela área.

Foto crédito: Cecília Bastos

Essas idéias foram apresentadas pelo professor convidado do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Hervé Théry, durante a sessão de abertura do Seminário Internacional Integração Política e Econômica da América do Sul. Realizado pela Coordenadoria de Comunicação Social (CCS), pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA), ambos da USP, e pelo Programa Ações em Regiões de Cooperação Universitária e Científica (Arcus) – capitaneado pelo Ministério das Relações Exteriores da França e pelo Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) –, o encontro ocorreu nos dias 23, 24 e 25 de outubro no IEA.

O seminário reuniu pesquisadores e autoridades do Brasil, Chile e França para debater os caminhos e as dificuldades para a efetiva integração da América Latina. O Programa Arcus está composto, em sua versão para a América do Sul, por parcerias entre a USP, Unicamp, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Nacional de Buenos Aires, Universidade Católica do Chile e Universidade Nacional do Uruguai, além de universidades mexicanas e francesas.

Projetos conjuntos – “Além de discutir política, logística, economia, cultura e outros aspectos da integração, queremos construir uma cooperação acadêmica e científica que se reflita em projetos conjuntos. Estamos nos saindo bem nesse intento porque este grupo, que já trabalha há algum tempo com o tema, acaba de propor um projeto temático para a Fapesp, que terá duração de quatro anos”, revelou o professor Wanderley Messias da Costa, que coordenou o evento, em parceria com os professores Théry e Christian Girault, do Centro de Pesquisa e Documentação sobre América Latina do CNRS.


Segundo Messias da Costa, além das publicações decorrentes do trabalho, a idéia do grupo é gerar um atlas da integração regional e impulsionar a criação de um observatório inédito em São Paulo, cuja finalidade será constituir um centro de documentação e estudos sobre a integração na América do Sul.

No primeiro dia de exposições, o professor Raúl González Meyer, da Academia de Humanismo Cristão, do Chile, destacou a importância das forças locais – como as representadas por empresários –, das forças étnicas e das estruturas de governos municipais para a consolidação da integração regional. Para Meyer, as estratégias de integração devem ter respeito pelas estruturas microssociais, mas também se balizar pelas de alcance supra-regional.

Já o diplomata e sociólogo Paulo Roberto de Almeida lembrou que o Mercosul ainda é um adolescente comparado à União Européia e que a efetiva integração ainda esbarra nas assimetrias conjunturais e estruturais dos países, o que inclui dificuldades relativas à legislação e harmonização tarifária, política, cultural e diplomática, além de estratégica e militar. O diplomata disse que, apesar do discurso integracionista, os países têm buscado acordos bilaterais, especialmente com os Estados Unidos, ou mesmo plurilaterais, entre alguns membros sul-americanos do bloco.

Para Almeida, no contexto geopolítico global, não se pode perder de vista que a importância estratégia da América Latina está na sua oferta de mercados, energia e recursos naturais. Em relação ao Hemisfério Norte, o sociólogo acredita que “não podemos nos enganar, porque não vai ocorrer a abertura total dos Estados Unidos e nem da Europa para os mercados agrícolas”.

O professor Cláudio Jedlicki, do CNRS, defendeu a instituição de compensações comerciais para os países pequenos, porque “as diferenças e assimetrias não se resolverão só pelas vias de mercado”. Destacou que a efetiva integração deve incluir também as pequenas economias.

Lições da União Européia – “Não existirá integração transnacional sem a integração jurídica. Nesse sentido, a integração regional precisa de um sistema integrado de informações, que cumpra uma função didática, seja capaz de democratizar o conhecimento, abranger todo o corpo jurídico de cada país, relacionar fontes jurídicas e não jurídicas, que inclua normatizações e regulamentações técnicas e não técnicas e que cumpra a missão de subsidiar as decisões dos magistrados em todo o bloco. Nesse sentido, temos muito a aprender com a União Européia e com a forma como os europeus conseguiram harmonizar suas leis para a instituição do mercado comum”, defendeu Luiz Fernando Martins Castro, professor da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), no segundo dia das apresentações.

Foto crédito: Mauro Bellesa
O seminário no IEA: em discussão, as várias barreiras que impedem a integração da América Latina

De acordo com Castro, no campo jurídico, o aspecto pragmático da integração é a própria aplicação das normas e estas, por sua vez, possuem um caráter dinâmico, pois sempre são passíveis de mudanças. Devido a esse dinamismo, os magistrados precisam de um instrumento que possibilite “acesso a todas as informações sobre determinado tema, as origens das regras ligadas àquele assunto em questão e sua evolução em todos os países do bloco, para que possam tomar suas decisões com eficácia”. Do ponto de vista do cidadão, o professor defende que um sistema comum de informações para o Mercosul deve ainda “banalizar a informação jurídica, para que todo cidadão saiba como e até que ponto ele é um agente efetivo da integração”.

O professor Fernando Diaz Menezes de Almeida, da Faculdade de Direito da USP, destacou pontos da Constituição Federal e da jurisprudência exercida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que travam a integração, especialmente a incorporação dos tratados internacionais ao direito brasileiro. Lembrou que, apesar de a integração regional ser um princípio inscrito no texto constitucional, trata-se de uma norma de pouca eficácia por sua natureza preceptiva. Ou seja, deve ser cumprida dentro do contexto jurídico e social existente e, embora ela deva inspirar os governantes, não os obriga a tomar determinadas medidas. A transformação daquele princípio em uma norma de natureza programática a tornaria mais eficaz, pois a mesma teria como pressuposto alterar os contextos jurídico, social e político, defendeu.

Almeida citou o exemplo de uma nova postura que começa a se delinear no Supremo Tribunal Federal quanto à interpretação do Pacto de São José da Costa Rica e que essa mudança pode abrir precedente sobre a futura interpretação de leis previstas em tratados internacionais. O Pacto de São José estabelece a Convenção Americana dos Direitos do Homem, que, entre outras coisas, traz a proibição da prisão civil por dívida, com exceção da dívida por alimentos. Ora, a legislação brasileira não admite que leis externas como as previstas nos tratados internacionais se transformem automaticamente em lei interna. Elas entram no direito brasileiro após decisões do Poder Legislativo ou do Executivo e ganham status de lei ordinária. Sendo assim, o Pacto de São José não tem aplicabilidade no Brasil porque aqui se admite a prisão civil por dívida no caso do depositário infiel e, por extensão, no caso do devedor na alienação fiduciária. “Durante décadas o Supremo insistiu na tese de que não vale o Pacto de São José, e sim o que estabelece o direito interno brasileiro. Mas agora o Supremo dá sinais de mudança de postura”, disse Almeida.

Com isso, abriu-se uma porta para que o Tratado de Direitos Humanos tenha um nível superior à legislação ordinária e, sendo assim, “está aberto o argumento para se afirmar, por exemplo, que os tratados sobre integração regional também desfrutem de um status supralegal, ainda que infraconstitucional, ou acima da lei, porém abaixo da Constituição. Aí teriam maior eficácia, compelindo as autoridades brasileiras a cumprir o disposto na Constituição”, afirmou.

 
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