A expansão desordenada dos espaços urbanos ocupados por populações carentes, que constroem suas moradias sem apoio de políticas públicas, tem causado sérios problemas nas grandes cidades. Pensando nisso, a Unesco criou o projeto Profissionais da Cidade, com o objetivo de capacitar indivíduos e instituições para oferecer soluções aos problemas da cidade e apontar novos rumos ao desenvolvimento urbano. O programa teve início em 2001 e foi organizado pelo arquiteto mexicano Germán Solinís, que reuniu especialistas do Brasil, México, Argentina, Uruguai, Colômbia e República Dominicana.

No Brasil, um dos programas ligados ao Profissionais da Cidade busca contribuir para a melhoria da qualidade de vida no chamado Morro da USP, uma comunidade localizada próxima à favela Heliópolis, no início da via Anchieta, em São Paulo, que conta com 600 casas construídas irregularmente. Esse morro foi concedido à USP por uma herança vacante – ocasião em que uma pessoa morre sem deixar herdeiros.

Segundo a professora Maria Ruth Amaral de Sampaio, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP – responsável no Brasil pelo Profissionais da Cidade –, a Consultoria Jurídica da Universidade pediu ajuda para regularizar a situação daquelas famílias. Com uma equipe de 25 alunos da FAU, ela deu início a um levantamento demográfico e populacional, a fim de que as famílias paguem à USP uma quantia simbólica pelo terreno, ficando todos regularmente proprietários de suas moradias. “Será cobrada uma quantia porque a Universidade não pode doar, mas pode vender por uma

quantia simbólica, que os moradores pagarão em prestações mínimas”, explica.

Alex Sartori, aluno do primeiro ano de Arquitetura da FAU, foi um dos monitores que circularam pelo Morro da USP, passando de casa em casa para fazer o levantamento da pesquisa. Embora já conhecesse algumas favelas, foi a primeira vez que viu tão de perto como se vive nesses espaços. “Nunca imaginei que pessoas conseguissem morar em lugares inabitáveis, inóspitos e em casas sem janelas, ou janelas que dão para uma parede, servindo apenas como objeto decorativo”, comenta.

Sartori conta que os terrenos visitados já tinham sido divididos em várias partes, contando com a terceira geração de moradores. Os terrenos maiores foram subdivididos ao máximo e hoje apresentam 12 metros quadrados para cada família. Há casas com três andares, sendo que cada andar abriga uma família com cinco pessoas, em média. “Visitei uma família em que os pais ficaram com a pior localização da casa. Como o terreno é bastante íngreme, eles ficaram com a parte de baixo, com janela meramente decorativa, porque dá de frente para uma outra parede. Toda a iluminação dentro da casa é artificial, e não tem ventilação. A filha ficou com a parte de cima.”

“Entrar numa viela de um metro de largura com casas dos dois lados e muitas delas com três andares é inenarrável”, exclama Sartori. “Dentro, elas são bem cuidadas, limpas, com azulejos, móveis novos. Comprando em 30 vezes eles conseguem o objeto do desejo e vão pagando. Encontrei casa com DVD, microondas, televisão, videogame, geladeira e fogão, mas, como o espaço é pequeno, vão amontoando uma coisa na outra para caber. Já a parte externa da casa não tem muita importância.

Outra casa visitada por Sartori tinha quatro andares, como se fosse um conjunto. Em cada andar, uma família nova. “Tinha um espaço para subir pelas escadas e os apartamentos tinham 12 metros quadrados. O interessante é que a escada ia diminuindo conforme você subia os andares, até ter que passar abaixado para entrar no cômodo. Só estando lá para entender como eles conseguem viver.”

“Foi um batismo de fogo”, exclama Ruth. “Entrar em cada casa, entrevistar, conhecer o dia-a-dia delas, sentir como são os espaços de moradia e como foram construídos é uma experiência única. Só assim o aluno se transformará num profissional capaz de entender os problemas urbanos.” Ela enfatiza que a idéia principal do projeto Profissionais da Cidade é levar os estudantes a conhecer de perto os problemas urbanos da cidade e, como resultado da investigação, retornar à Universidade analisando os problemas e, inclusive, influenciando nos ensinamentos e no currículo do curso.

Experiências urbanas – Ruth reuniu algumas das experiências obtidas com o projeto no livro Profissionais da Cidade. Elas mostram importantes contribuições da Universidade para a sociedade. Um dos artigos do livro, por exemplo, é “Pré-fabricação por ajuda mútua: miniusina modelo em Vila Nova Cachoeirinha”, de Alexander Syoei Yamaguti, que apresenta sugestões para o fortalecimento do sistema de construção por mutirão, que se materializou na construção de uma miniusina de pré-moldados leves, o que representou racionalização do processo construtivo e novas propostas de projeto arquitetônico e urbanístico. Uma equipe multidisciplinar participou da empreitada, envolvendo arquitetos, engenheiros, assistentes sociais, mestres-de-obras e moradores locais.

A professora Ruth ressalta que essa experiência teve grande potencial na formação de mão-de-obra desenvolvida por monitorias e grupos de trabalho. “Esse processo de participação/ensino, ao mesmo tempo em que transmite conhecimento técnico e know-how para produção de pré-fabricados, auxilia na formação de pessoas especializadas.”

Para Yamaguti, o projeto, além de ajudar a população de baixa renda na conquista da casa própria, é um estímulo para a organização da população como comunidade, o que serve para confirmar a força e o potencial de trabalho de um grupo de pessoas com objetivos comuns. “Esse aprendizado fortalece as convicções, justifica posturas e amadurece os que participam do movimento.”


A comunidade do Morro da USP, na zona sul de São Paulo: contribuições da Universidade para melhorar a vida da população de baixa renda

Outro trabalho de destaque apresentado no livro, de autoria de Francisco de Assis Comaru e Letizia Vitale, é “Laboratório de projeto integrado e participativo para requalificação de cortiço: experiência piloto”. Nesse caso, uma equipe da FAU fez uma experiência prática de reabilitação de um edifício, localizado na rua do Ouvidor, no centro de São Paulo, ocupado por 83 famílias de cortiços. “Estudamos caminhos para uma intervenção integrada e participativa, podendo esta ser replicada, visando à melhoria do ambiente e à promoção da qualidade de vida nas cidades”, explica Comaru.

O destaque desse projeto, de acordo com Ruth, foi a divulgação na mídia, despertando o interesse do governo estadual para a solução da questão, que, entretanto, até hoje continua pendente. “O projeto veio reforçar um movimento de requalificação do velho centro da cidade.”

Já “Projeto Cidade de Areia”, de Camila Saraiva, Giselle Tanaka e Tatiana Nobre, surgiu da constatação da carência de espaços e equipamentos públicos em São Paulo adequados às crianças e aos adolescentes. As autoras apresentaram um projeto de equipamento público que contou com a participação da população local, ajudando com sugestões e alternativas. “A transformação social, a apropriação do espaço pela população, a construção de fato de um espaço público de interação social não podem dissociar o projeto físico do programa de atividades e do projeto de gestão participativa”, escrevem as autoras.

“Moradia social e meio ambiente: regularização de loteamentos em áreas de mananciais na região metropolitana de São Paulo”, de Maria Lúcia Refinetti Martins, criou uma parceria com o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado de São Paulo, com o intuito de desenvolver soluções urbanísticas sustentáveis e passíveis de regularização jurídica para superar a situação precária em que se encontram os moradores da área de proteção dos mananciais da região metropolitana. “A represa de Guarapiranga, por ser uma área muito importante para o abastecimento da água consumida pelos paulistanos, precisava de um projeto que regularizasse a situação dos moradores, assim como os detritos despejados na represa”, reflete Ruth.

Para a professora, todas as experiências relatadas no livro revelam uma maneira pela qual a Universidade busca compreender e participar das transformações dos processos urbanos que ocorrem em diferentes âmbitos das relações econômicas, culturais e sociais. “Elas têm, quase sempre, um impacto imediato sobre a vida urbana e a estruturação da cidade, mas oferecem contribuições ao desenvolvimento das práticas sociais internas e externas à Universidade pelo surgimento de novas circunstâncias históricas, em que a instituição universitária deve saber manter sua função de produção e difusão do conhecimento, a serviço da sociedade.”

 
PROCURAR POR
NESTA EDIÇÃO
O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[
EXPEDIENTE] [EMAIL]