Recentemente a mídia trouxe a público o “escândalo do leite”, que teve por objetivo levar ao conhecimento da população as fraudes praticadas na produção do leite UHT (ultra high temperature), popularmente conhecido como leite de caixinha. Infelizmente, os procedimentos relatados para fraudar o leite são uma prática levada a efeito, há muitos anos, por parte dos principais produtores de leite de caixinha e pouco foi feito para coibi-la. Desta vez, provavelmente, algum “contribuinte”, sentindo-se de alguma forma lesado pelo sistema, resolveu formalizar uma denúncia.

foto crédito: Unisul/Gruperh

Assim, a população tomou conhecimento de que ao leite cru se adicionava soro de queijo, soda cáustica (hidróxido de sódio comercial), peróxido de hidrogênio (água oxigenada), citrato de sódio e uma mistura de água, sal e açúcar, além de detectar a presença de coliformes fecais. Esse procedimento foi tratado pela mídia como uma prática que “poderia” trazer inúmeros problemas para a saúde do consumidor.

Diante do exposto, e estimulado por alguns colegas, resolvi escrever este texto no sentido de contribuir para o entendimento dessa ocorrência por parte dos consumidores que se dizem “exigentes”, mas que infelizmente são “comodistas”. Dessa forma, a seguir comentamos a função de cada componente utilizado para fraudar o leite de caixinha, bem como a presença de coliformes no leite.

Soro de queijo: é um subproduto da fabricação de diferentes tipos de queijos, obtido após a coagulação e precipitação das proteínas do leite (caseína). Sua composição revela um teor de sólidos em torno de 6%, representados por carboidratos, proteínas (proteínas do soro), lipídeos, minerais e vitaminas. Nos países desenvolvidos, esse subproduto é desidratado e comercializado como soro em pó, importante ingrediente na

formulação de vários tipos de alimentos. No Brasil, a técnica de desidratação do soro é ainda pouco praticada pelas indústrias do setor, sendo então utilizado para fraudar o leite de caixinha, sem trazer, portanto, prejuízos à saúde do consumidor. Há mais de 20 anos um professor do Departamento de Tecnologia de Alimentos da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, desenvolveu uma metodologia para detectar a presença de soro no leite processado. Infelizmente, pouca atenção foi dada a essa descoberta. Vale salientar ainda que o soro de queijo, devido à sua composição, apresenta uma carga orgânica equivalente a uma DBO, que varia de 75.000 a 100.000 (mgO 2 /L), o que lhe confere um poder poluente superior a 250 vezes o esgoto doméstico, sendo, portanto, proibido o seu descarte na natureza sem o devido tratamento.

Citrato de sódio: a adição deste sal ao leite cru, que será submetido ao tratamento UHT, é o único aditivo permitido pela legislação e atua como “estabilizante”. Sem a sua adição, verificava-se a formação de precipitados protéicos no fundo da caixinha, provocando a rejeição por parte do consumidor “exigente”. Dessa forma, antes de permitir a utilização do citrato no processamento do leite de caixinha, testes foram realizados pelos órgãos competentes com vistas a preservar a saúde do consumidor.

Mistura de água, sal e açúcar: esta mistura é adicionada ao leite cru na proporção de 8%, conforme preconizado pelo engenheiro químico que desenvolveu (não teria sido sob encomenda?) a respectiva fórmula, e tem a finalidade de manter a densidade do leite (1,028 a 1,034 g/mL) inalterada. Dessa forma, deduz-se que água, sal e açúcar não devem interferir negativamente na saúde do consumidor. Nesse contexto, vale salientar que no passado um dos testes que se faziam na plataforma das usinas de leite para verificar a qualidade dessa matéria-prima consistia em medir a densidade do leite para se averiguar a adulteração pela adição de água. Espertamente alguns produtores substituíam a água por “outras substâncias” estranhas, e assim a densidade do leite era mantida dentro dos limites normais.

Soda cáustica: o leite normal, devido às características de seus constituintes, apresenta uma acidez de 1,5 a 1,8 g/L, expressa em ácido láctico. O leite que apresenta acidez superior a 1,8 g/L é considerado “leite ácido” e impróprio para o tratamento térmico (fervura, pasteurização, UHT), pois o efeito combinado da acidez e temperatura elevada provocam a precipitação das proteínas durante o processamento. O aumento da acidez do leite é devido a uma série de fatores, valendo destacar principalmente os procedimentos de higiene, desde a ordenha dos animais, utensílios, tanques de estocagem nas fazendas, nos caminhões de transporte e nas usinas. Assim, ao “leite ácido” se adiciona soda cáustica para neutralizar o ácido láctico excedente, procurando mantê-lo nos níveis de um leite normal. Portanto, em um leite ácido contendo, por exemplo, 2,0 g/L de acidez, é necessário aproximadamente 1,3 g/L de soda para lhe conferir uma acidez de 1,7 g/L. Vale salientar que essa soda reage com o ácido láctico, formando lactato de sódio mais água, e que, portanto, não existe soda cáustica in natura no leite, conforme divulgado pela mídia. Por outro lado, considerando as características de estabilidade térmica das proteínas do leite e o rigor do tratamento UHT, deduz-se que quantidades de soda acima do necessário foram adicionadas, assegurando assim uma certa “margem de segurança”, provocando mudanças significativas nas características do produto.

Peróxido de hidrogênio (água oxigenada): esta substância é utilizada para aumentar a vida útil da matéria-prima, uma vez que atua sobre o desenvolvimento dos microrganismos contaminantes do leite, impedindo assim o aumento da acidez. É sabido que em alguns países da Europa essa prática é adotada para preservar, e não alterar, a qualidade do leite cru, pois sabe-se também que essa água oxigenada será decomposta em água mais oxigênio quando o leite for submetido ao tratamento térmico. Dessa forma, semelhante ao caso da soda, seria impossível detectar a presença dessa substância no leite de caixinha.

Coliformes fecais: microrganismos incluídos neste grupo têm como representantes espécies de enterobactérias que participam da microbiota intestinal de animais de sangue quente. A determinação da população de coliformes fecais é utilizada pela indústria de alimentos como indicativo do grau de higiene desde a obtenção da matéria-prima até o processamento, armazenamento e distribuição de produtos alimentícios. Uma das características dessas espécies, quando se desenvolvem nos alimentos, consiste na rápida produção de ácidos orgânicos e intensa produção de gás. Como conseqüência desse metabolismo, verifica-se uma queda brusca do pH e produção de gás, causando um problema conhecido como “estufamento precoce”, observado na fabricação de queijos a partir de leite cru de qualidade duvidosa. Esse problema é facilmente eliminado quando o leite é submetido ao processo de pasteurização, uma vez que esses microrganismos são sensíveis ao tratamento térmico. Nesse contexto, observa-se que é impossível detectar a presença de coliformes fecais em leite de caixinha, pois, mesmo que ocorressem falhas no tratamento térmico que permitissem a sobrevivência desses contaminantes no leite, a intensa produção de gás que seria observada quando esse produto fosse estocado à temperatura ambiente nas gôndolas dos supermercados ou na dispensa das residências dos consumidores “exigentes” faria com que cada caixinha “literalmente” se transformasse numa bomba.

Diante do exposto, conclui-se que as fraudes apontadas causam mínimo risco à saúde do consumidor. Mas, independente do aspecto de saúde pública, a adição de qualquer substância estranha ao leite cru (exceção ao citrato de sódio), para fabricação do leite de caixinha, é considerada como fraude e interfere negativamente no valor nutritivo do leite. Portanto, deve ser rigorosamente combatida pelos órgãos competentes e pelos consumidores. Acrescenta-se ainda que, considerando as variáveis que interferem no elevado custo do leite UHT, dificilmente as empresas de laticínios teriam como colocar uma matéria-prima de qualidade na caixinha. Assim, para aqueles que não querem dispensar a “cômoda” situação de manter um estoque de leite em suas residências, gostaria de lembrar que no mercado existem marcas confiáveis de leite em pó que lhes permitem preparar um bom copo de leite com qualidade e no momento desejado. Ademais, existe o leite de saquinho, cuja pasteurização lhe garante qualidade nutritiva superior ao leite de caixinha. Dessa forma, o leite de caixinha pode ser dispensado sem alterar a rotina e a qualidade de vida daqueles que ainda apreciam esse alimento.

Ismael Maciel de Mancilha é professor da Escola de Engenharia de Lorena (EEL) da USP

 
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