Ele transforma o seu cotidiano em obra de arte. Arquivos, livros, documentos, sala, quarto, cozinha, banheiro... Quebra os limites entre o privado e o público. E vai compondo ele próprio. Paulo Bruscky, 58 anos, um personagem de si mesmo em suas perambulações artístico-poéticas. Em 2004, esse pernambucano surpreendeu o público quando rebocou o seu ateliê em Recife para a Bienal de São Paulo e fez uma instalação do espaço onde cria e vive.

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Com muita sensibilidade, Cristina Freire, crítica de arte e professora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, vem pesquisando a obra de Bruscky, um dos pioneiros da arte conceitual no Brasil. Um estudo de quase dez anos que agora resulta na exposição “Ars Brevis”, na sede do MAC na Cidade Universitária, e também no livro Paulo Bruscky – Arte, arquivo e utopia, lançado pela Companhia Editora de Pernambuco.

“Muitos artistas que realizaram parte

significativa de sua obra na década de 1970 ficaram à margem do sistema da arte naqueles anos difíceis e permanecem, ainda hoje, pouco conhecidos pelo público e por grande parte da crítica”, observa Cristina. “A obra de Bruscky é um exemplo. Sua produção como artista multimídia, iniciada no final da década de 1960, é tão vasta quanto diversificada. Distante dos padrões convencionais de obra de arte, levanta questões pertinentes à temporalidade da arte.”

Os projetos do artista se caracterizam pela efemeridade. São instalações, performances e ações que não foram feitas para durar além de seus registros. “A rede de trocas estabelecida pela arte postal, que é central em sua poética, também indica algo sobre a fugacidade e o sentido de transitoriedade da sua produção.” Daí o título da mostra, “Ars Brevis”, que é a primeira exposição individual do artista em um museu. “A obra de Bruscky se destaca no acervo do MAC pela sua prolixidade e a riqueza de relações que possibilita”, explica a curadora. “Amplia o campo de investigação da arte contemporânea ao incluir questões referentes às técnicas de reprodução e os mais variados meios de comunicação, como rádio, vídeo e fax. Alguns de seus inventos, como os xerofilmes, que também estão na exposição, atestam esse caráter interdisciplinar. A importância do arquivo como referência de sua poética propõe temas pertinentes à confluência entre obra de arte e documentação.”

Foto crédito: ReproduçãoUm labirinto – Quando o público entrar no MAC, terá a impressão de penetrar num labirinto. O visitante fica um pouco desorientado, mas logo percebe que a ordem é exatamente o caos. Cristina optou por subdividir a mostra em núcleos, para uma melhor compreensão do processo criativo do artista. Entre esses núcleos estão: Eu Comigo, em que o artista se apresenta como personagem de si mesmo em performances e ensaios fotográficos; Arte Postal, que apresenta a intensa troca de correspondência de cunho político entre artistas de várias nacionalidades, realizada nas décadas de 60 e 70; Poesia Visual, com frases sintéticas, colagens e caligramas; Máquinas Poéticas, sobre sua vasta experimentação com máquinas xerox e aparelhos de fax; Biblioteca, que traz os livros que compõem grande parte de sua obra. Mas não são livros como o visitante pode imaginar. O primeiro, realizado em parceria com Daniel Santiago, em 1971, tem um espelho na capa branca e inclui textos e projetos de ações. Outro livro é o Comoler, na forma de um enorme pão, com edição da padaria Nabuco, em Recife, que foi lançado e comido na livraria Livro 7, também em Recife, acompanhado de manteiga e café.

Outro núcleo da exposição é o Hospital-Estúdio, que traz as experimentações de seu dia-a-dia como funcionário público de um hospital, que envolviam carimbos e papel timbrado, além da manipulação de eletroencefalógrafos, aparelhos de raios X e afins, para o seu fazer artístico. No espaço Cotidiano, há objetos como um ferro de passar roupa. Um ferro que poderia ser só um utilitário doméstico, se não fosse o de Bruscky. O artista transformou o objeto em matriz de gravura.

Foto crédito: ReproduçãoCerca de 70% dos trabalhos apresentados na mostra são da coleção do artista, instalada no seu labiríntico ateliê/arquivo no apartamento onde mora, em Recife. As demais obras pertencem ao acervo do MAC, que foi redescoberto pela curadora quando realizava a pesquisa do acervo de arte conceitual do museu. “Até aquele momento, trabalhos como livros-objeto, arte-postal e projetos de performance não tinham um local específico no MAC, que não sabia se catalogava o material na biblioteca ou na reserva técnica”, afirma Cristina. “Depois da organização desse material, doado por Bruscky na década de 70, e de trabalhos de outros artistas, poderemos dizer que possuímos o mais importante acervo de arte conceitual do País.”

A mostra “Ars Brevis” está em cartaz no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP (rua da Reitoria, 160, Cidade Universitária, São Paulo), de terça a sexta-feira, das 10 às 18 horas, sábados, domingos e feriados, das 10 às 16 horas. Entrada franca.

 

Entre a imaginação e o lúdico, a irreverência e o humor

O trabalho de Cristina Freire na curadoria da mostra e na pesquisa do livro sobre a trajetória de Paulo Bruscky é inédito e pioneiro. Apesar da produção vasta e diversificada de quase quatro décadas, o artista não tinha, até então, sido estudado com a devida atenção e reconhecimento.

Nas primeiras páginas de Paulo Bruscky – Arte, arquivo e utopia, a pesquisadora apresenta o labirinto do artista. A seqüência de fotos propõe um se perder no caos. Os papéis espalhados pelo chão, os livros na desorganização proposital, a coleção de relógios pendurados na parede marcando horas diferentes, o cartaz “Vacina contra tédio”, o vaso sanitário aberto, a samambaia e as trepadeiras que crescem sem rumo... Enfim, um cenário para o artista que é o seu próprio personagem.

“Qualquer definição é insuficiente para definir esse artista”, explica Cristina. “Multimídia, inventor, educador, poeta, fotógrafo, arquivista, editor, curador, enfim, em duas palavras, um artista contemporâneo.” Muitos dos projetos de Bruscky não chegaram a ser realizados porque foram recusados por salões e instituições. “Permanecem registros de idéias que se expandem no tempo e no espaço. Outros, sobretudo nos anos 1970, foram realizados em parceria com o artista Daniel Santiago, que Bruscky encontrou na Escola de Belas Artes, em Recife. Essa parceria durou quase duas décadas.”


Paulo Bruscky – Arte, arquivo e utopia
, de Cristina Freire, Companhia Editora de Pernambuco, 275 páginas, R$ 100,00

Cristina lembra que Bruscky nunca vendeu nenhuma obra, ganhando a vida como funcionário público. “Essa perspectiva quase utópica e idealista de negação do valor de troca, opondo-se à retificação da arte como objeto de consumo, sugere um romantismo anticapitalista.”

Com essa liberdade, Bruscky se dá o direito de criar o tempo todo. Vai transformando cada atitude em proposta de arte. Atua entre a imaginação e o lúdico, com irreverência e humor. Daí a foto de 1984, onde o próprio e Daniel Santiago posam com uma faixa avisando: “Limpo e desinfetado”. É exatamente na condição de artista limpo e desinfetado que Bruscky satiriza a institucionalização da arte. “Com seu humor, combate a atitude pretensiosa da alta cultura, em sua ênfase absoluta no profissionalismo do artista, na noção romântica de artista como gênio, distinto representante da elite.”

A trajetória de Bruscky é apresentada em seis capítulos, destacando as diversas fases e as suas múltiplas faces. Cristina apresenta temas como a relação do artista com o grupo de vanguarda Fluxus, as performances e ações na época da ditadura militar, a poesia visual, os livros de artista, a relação entre poesia visual e sonora, as intervenções urbanas e a utilização ampla dos meios de reprodução, como fotografia, fax, heliografia e xerox, além dos inventos que articulam arte, ciência e jogo.

Interessante é a análise da poesia visual do artista. “Bruscky tem como inspiração declarada a obra do artista pernambucano Vicente do Rego Monteiro, que ele vem pesquisando exaustivamente”, analisa Cristina. “Observa-se, em sua trajetória, que sua poética caminha lado a lado com uma busca quase quixotesca da ampliação das sensibilidades, sempre incluindo mais interlocutores. Em primeiro plano, está a mais íntima relação entre arte e vida.”

 
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