Quais ações são necessárias para que os resultados do desempenho escolar dos jovens do Brasil não continuem semelhantes ao dos jovens do Quirguistão? Se, nos primeiros anos de vida, for intensificado o acesso da maioria das crianças brasileiras a produtos culturais com a mediação de educadores, há fortes evidências de que a apropriação da leitura e da escrita ocorrerá de forma mais eficaz. É, portanto, premente que o foco das políticas públicas esteja

Foto crédito: Francisco Emolo

voltado para uma educação infantil de qualidade e para as séries iniciais do ensino fundamental. Nesse sentido, pode-se demonstrar que faltam investimentos básicos na educação de crianças e que será muito mais produtiva essa implementação do que aplicar vultosas verbas na avaliação da capacidade de escrever de alunos de 1ª e 2ª séries do ensino fundamental.

Visando a contribuir para os debates, discutiremos os prováveis resultados de “provinhas/exames de alfabetização”, a partir de uma concepção sociointeracional da linguagem e de aportes da neurociência cognitiva. Faremos essa análise sob a ótica dos estudos que temos empreendido, resultantes de visitas a escolas na França e em Portugal, mas também com o respaldo de investigações ancoradas na supervisão de estágios inerentes à licenciatura, realizados a cada ano por futuros professores de língua

materna (LM) em aproximadamente cem escolas públicas na cidade de São Paulo.

Conjunto de fatores – Inicialmente, uma questão se faz necessária. Por que os resultados de avaliações internacionais e nacionais que explicitam os restritos graus de letramento apresentados por jovens brasileiros de 15 anos, após oito anos de escolarização, continuam provocando comoção nacional? Como a LM tem papel decisivo na construção do conhecimento em uma sociedade grafocêntrica, houve a conscientização de que são limitadas as condições de pelo menos 75% dos jovens para conquistar autonomia e exercer seus direitos de cidadão, assim como serão limitadas também suas contribuições para o desenvolvimento do País.

Na busca de soluções, há que se refletir, entretanto, sobre um conjunto de fatores de âmbito cultural, cognitivo-afetivo, lingüístico-discursivo, socioeconômico, de políticas públicas e de práticas educativas. Dessa forma, a responsabilidade pelo desempenho educacional não deve ser atribuída prioritariamente a alunos e professores.

Foto crédito: Cecília BastosNo que tange às práticas educativas, há entraves resultantes de políticas públicas que interferem na motivação e dificultam uma boa atuação dos professores, a saber: o número excessivo de alunos em cada classe (o que favorece a indisciplina/violência, além de dificultar o desenvolvimento de projetos em grupo); a problemática da mediação nos espaços de leitura (bibliotecas escolares e/ou salas de leitura); a falta de brinquedos, jogos, livros com imagens e textos, materiais educacionais diversificados desde a educação infantil; os aviltantes salários dos professores; tempo e espaço insuficientes para a educação contínua e planejamento das aulas, uma vez que a maioria não tem jornada integral em uma única escola; enfim, um “arcabouço escolar” que interfere de modo contundente na implementação, pelos professores, de práticas educativas que poderiam tornar mais eficaz a aprendizagem do uso da LM ao ler e ao escrever.

Além desses entraves, enquanto não houver um aumento consistente do nível de renda dos pais, cuidados básicos com a saúde da criança e não for viável o acesso à educação infantil de qualidade, seguramente os resultados de “provinhas/exames” continuarão muito aquém daqueles das crianças de países desenvolvidos. Assim, se as mínimas condições necessárias ao sucesso escolar estão ausentes, pode-se dizer que grande parte das crianças não tem “dificuldades de aprendizagem”, mas sofre de “direitos não atendidos” que prejudicam a aprendizagem.

Tempo extra – Neste início do século 21, no Brasil, a maioria das crianças brasileiras não tem acesso à educação infantil e chega à escola somente aos 6 ou 7 anos. Para essas crianças que tiveram menor imersão no mundo letrado, há que se estabelecer um tempo extra significativo (ao menos um ano), anterior ao processo intencional de alfabetização, com a finalidade de viabilizar uma recuperação lúdica do processo de letramento emergente, que terá influência decisiva no processo de alfabetização. Essa é uma condição para que esses alunos avancem sem estigmas.

Nesse tempo extra, é essencial que as atividades estejam relacionadas prioritariamente à oralidade e à leitura e que a ludicidade esteja embutida no cerne de todas as propostas, tanto na dimensão discursiva quanto na dimensão alfabética. Por que as estratégias de ensino e aprendizagem devem focalizar inicialmente o ato de ler e não o ato de escrever? No passado, o foco esteve voltado para a “mão”, para o aspecto gráfico da escrita, para o professor que ensina, e as palavras-chave eram exercício/castigo/esforço. Se, no presente, admite-se que a criança aprende continuamente e em todos os espaços, o foco deve voltar-se para o sistema “mente-cérebro” e, portanto, para um investimento muito intenso em leitura, a fim de nutrir a “memória discursiva” com amplo e variado repertório textual. Nesse novo contexto, as palavras-chave passam a ser ludicidade/brincadeira/prazer. Para tanto, é fundamental a existência de recursos educacionais em um novo ambiente de aprendizagem na escola, ou, pelo menos, a existência de um “armário” que pudesse conter uma diversidade de materiais que as crianças provenientes de famílias ricas usufruem fartamente em diferentes espaços.

Foto crédito: Cecília BastosTrata-se de uma biblioteca-brinquedoteca (Bibrinq) no armário, em cada sala de aula de 1º ano do ensino fundamental, com 35 crianças (o ideal são 25). Sem perder de vista a diversidade de práticas sociais, segue uma possível relação de “materiais”:  200 diferentes livros de arte visual e literatura infantil, dicionários, enciclopédias, mapas, jornais, revistas, gibis, embalagens, 35 jogos de letras móveis, diversos jogos que envolvam palavras e números, máquina de datilografia, laptop, CDs, DVDs, inúmeros brinquedos, fantasias, sementes, instrumentos para aguçar a percepção (estetoscópio, microscópio etc.), lápis de cor, sucata etc. Para complementar: um gravador, uma máquina fotográfica digital e 35 pastas para portfólio, de modo que professores e crianças registrem as atividades e possam dialogar sobre elas. Certamente, esse ambiente de aprendizagem propiciará experiências significativas que mobilizarão o interesse e o envolvimento das crianças, alavancando a apropriação de práticas letradas.

Por que uma Bibrinq em cada sala de atividades? No 1º ano do ensino fundamental, que recebe as crianças de 6 anos, em 90% das atividades a serem realizadas, professores e alunos farão uso dos recursos mencionados e, somente em 10%, ocuparão lousa, giz, lápis e borracha. Se atendidas essas reivindicações a que alunos e professores têm direito, eles terão melhores condições de trabalho e a oportunidade de mostrar que são capazes, antes de serem avaliados.

Chegou o momento de transformarmos discursos em “objetos-concretos”: Bibrinq. Além do uso mais adequado das verbas equivalentes a diversas avaliações concebidas para a 1ª e 2ª séries, temos a convicção de que a mídia atuará abrindo espaços para manter os debates, os prefeitos participarão de forma significativa, muitas ONGs e fundações poderão colaborar e inúmeros empresários estarão dispostos a investir no desenvolvimento cultural das crianças, doando vários exemplares de Bibrinq para cada escola (doação e manutenção), por meio de diversos procedimentos, dentre eles, a Lei Rouanet de Incentivo à Cultura.

Idméa Semeghini Siqueira é professora da Faculdade de Educação da USP, autora de “Modos de ler textos informativos impressos/digitais e a questão da memória: estratégias para alavancar a construção do conhecimento”, em Linguagem e educação (Humanitas, 2006).

 
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