É a história da mão determinada e irrequieta de um sonhador que a mostra “Coleção Niemeyer”, organizada no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP por Rodrigo Queiroz, revela. Entre os 47 desenhos originais do acervo da biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), o público pode apreciar o traço de Oscar Niemeyer em diferentes momentos de sua trajetória, desde o seu primeiro

Foto crédito: Atílio Avancini

trabalho: a capela de São Francisco de Assis, que integra o conjunto arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte. O arquiteto fez questão de cobrir a igreja de curvas e, nessas linhas, descobriu a essência do seu trabalho: trazer para a arquitetura as curvas que caracterizam a paisagem brasileira.

“Não é o ângulo reto que me atrai”, justifica Niemeyer. “Nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual. A curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso

Igreja da Pampulha e suas curvas: ângulo reto não me atrai, diz Niemeyer

dos seus rios, nas ondas do mar, nas nuvens do céu, no corpo da mulher preferida. De curvas é feito todo o universo. O universo curvo de Einstein.”

Através desta mostra, a FAU homenageia os cem anos de Niemeyer, destacando a mão que desenha com leveza e fluência. “É o gesto contínuo da caneta hidrográfica que percorre o papel em um movimento sem interrupção, no qual a ponta porosa da caneta adere à superfície delicadamente áspera do papel manteiga, sem desgrudar-se”, explica Rodrigo Queiroz. “A linha desenha a forma arquitetônica em sua integridade. A espessura do traço atesta o desejo pela esbeltez da matéria, cujo perfil curvilíneo registra o domínio da técnica e da ductilidade do concreto.”

ReproduçãoAulas inesquecíveis – Os desenhos foram realizados em quatro momentos diferentes. O primeiro foi em 1963, quando Niemeyer visitou a FAU e apresentou quatro desenhos que mostram a sua preocupação com a pré-fabricação dos edifícios da Universidade de Brasília, como o Instituto de Teologia e o conjunto de habitação estudantil. “Nesses desenhos podemos perceber que, para o arquiteto, o advento da pré-fabricação não é obstáculo para a liberdade criativa”, observa Queiroz.

A segunda série traz um conjunto de edifícios de apartamentos em Salvador, desenhos doados pelo professor Júlio Roberto Katinsky. “Diferente dos demais, esse conjunto não representa o registro gráfico dos depoimentos de Niemeyer. Trata-se de uma apresentação de projeto, no qual as plantas e elevações das unidades são entremeadas por belíssimas perspectivas que não registram apenas a ambiência dos espaços projetados, mas propõem um novo modo de viver.”

O curador chama a atenção para as cenas de convivência no cotidiano. “Quase como uma crônica ambientada em um espaço que assimila as generosidades do gesto e da paisagem: mulheres à beira da piscina; crianças brincando; pessoas estiradas em um estar cuja amplidão anula o limite entre o interior e o exterior.”

A terceira série resgata a palestra de Niemeyer no dia 25 de outubro de 1995 para os alunos da FAU. Lembra o arquiteto com seu bloco de papel apoiado sobre o cavalete, desenhando as principais obras de sua trajetória. “Empunha a caneta como quem segura uma batuta: a caneta na posição vertical, apoiada na palma da mão direita e aprumada entre o polegar e o indicador, percorre o papel em movimento contínuo”, observa Queiroz. “Esses desenhos representam o registro gráfico do movimento, como a impressão de um gesto compassado pela fala. Ao terminar sua precisa explicação, o desenho está pronto.”

Reprodução
Mostra reúne desenhos de diversas épocas de uma vida centenária

A quarta série de desenhos foi criada durante a participação de Niemeyer no programa “Roda Viva”, da TV Cultura, em 12 de julho de 1997. Sentado na cadeira giratória, apoiando sobre as pernas o bloco de papel manteiga A3, o arquiteto desenhou o Museu de Arte Contemporânea e o Caminho Niemeyer, ambos de Niterói. “Curiosamente, Niemeyer preserva, eclipsando de sua auto-historiografia, os desenhos a ilustrarem seu processo cotidiano de trabalho sobre a prancheta. Ao resguardar os esboços que registram seu real procedimento de projeto, ele constrói seu próprio mito, dando a entender que as formas nascem no papel como frutos de uma criação divina, só possível quando saída das mãos de um gênio.”

A exposição “Coleção Niemeyer” pode ser visitada de terça a sexta, das 10h às 18h, sábados e domingos das 10h às 16h. Local: MAC/USP, rua da Reitoria, 160, Cidade Universitária. A entrada é franca e as visitas orientadas, também gratuitas, podem ser agendadas no telefone 3091-3328.

 

O ato humano da criação

“Toda a criação humana é um ato de vontade. A vontade é um sentimento associado a uma consciência (humana)”. Com essa observação, Júlio Katinsky, professor da FAU, introduz o visitante da exposição “Coleção Niemeyer” no “universo de encantamento e inspiração de nossa cultura ocidental e ecumênica”.


Obras de Brasília marcaram nova etapa para o arquiteto

Para Katinsky, criar, em termos humanos, consiste em romper com a ordem estabelecida de atos rotineiros e conhecidos. “E como podemos comprovar em nossa experiência de vida cotidiana, está ao alcance de todos os homens. Isso porque a criação humana não parte do nada, mas do arranjo, aproximação de pelo menos duas situações, atos, ou imagens já existentes...”

A explicação do professor, que tem acompanhado de perto a trajetória de Niemeyer, justifica o ato de criação do arquiteto. No texto que integra o catálogo da exposição, ele destaca a trajetória do desenho no Brasil como atividade técnica e artística até chegar nas linhas curvas livres e sensuais do arquiteto. “Ele não desenha uma parábola matemática, mas constrói suas abóbadas com duas retas inclinadas, com uma curva como concordância, algo muito próximo à parábola, mas com suficiente definição, para não se confundir com ela.”

O arquiteto e professor Marco do Valle também participa do catálogo com um estudo sobre os primeiros desenhos de Niemeyer. “De toda a equipe brasileira chefiada por Lucio Costa, Niemeyer foi o mais marcado pelas influências corbusianas durante a sua vinda para a realização dos projetos do Ministério da Educação e Saúde Pública, a pedido do governo brasileiro”, afirma. “Podemos observar essa influência não apenas no sentido didático da palavra, mas na maneira pela qual ele utilizava o desenho: na construção de um raciocínio urbanístico ou de um projeto arquitetônico, na concepção e elaboração da forma, ou ainda na explicitação da modernidade em sua arquitetura e na demonstração da maneira moderna de viver.”

Valle lembra que Niemeyer iniciou seus trabalhos com soluções técnicas construtivas simples como as presentes na arquitetura corbusiana. “Inicialmente foi recriando e redesenhando sua forma e, com isso, criou, passo a passo, uma autonomia.” Segundo o professor, quando Niemeyer iniciou a construção de Brasília, já havia feito uma autocrítica de sua arquitetura. Na época, o arquiteto declarou: “As obras de Brasília marcam, juntamente com o projeto para o Museu de Caracas, uma nova etapa do meu trabalho profissional. Etapa que se caracteriza por uma procura constante de concisão e pureza, e de maior atenção para com os problemas fundamentais da arquitetura”.

 

A luz de Niemeyer e Portinari

O céu de São Francisco de Assis no azul de Portinari e nas curvas de Niemeyer: quem visita a igreja da Pampulha, em Belo Horizonte , percebe na arte dos dois mestres a vida sob a luz. Niemeyer, que se diz ateu, traduziu na forma essencial da capela a mensagem do santo. E Portinari mergulhou nas curvas criadas pelo arquiteto para compor a simplicidade da natureza. No desenho de um e de outro está São Francisco, na crença do ser entre pássaros e peixes.

Foto crédito: Atílio AvanciniConstruído nos primeiros anos da década de 1940, o conjunto arquitetônico da Pampulha foi encomendado para Niemeyer pelo então prefeito Juscelino Kubitschek. Para desenvolver a capela, o arquiteto pesquisou as prescrições canônicas e as recriou em uma arquitetura inovadora. Logo na entrada, se vêem o batistério e o confessionário e, a seguir, o púlpito. Ladeando o presbitério, está, à esquerda, a capela do Santíssimo Sacramento e, à direita, a sacristia, hoje transformada em Centro de Informações Turísticas. Sobre a entrada, Niemeyer posicionou o coro – que, como a torre sineira e o cruzeiro, separados do corpo da igreja, parecem inspirados nas edificações religiosas mineiras setecentistas.

Niemeyer utilizou o concreto armado e o vidro, criando um prédio assimétrico, com as curvas inspiradas na movimentação barroca das antigas igrejas mineiras. No interior da capela, o visitante pode contemplar o céu e as palmeiras e sentir o sol que inunda o espaço pelo enorme vão envidraçado. Do lado de fora, a igreja é refletida na lagoa da Pampulha, integrando os jardins criados por Burle Marx.

Em dois grandes painéis, um externo, na fachada, e outro interno, na parede do fundo do presbitério, Portinari retratou as passagens da vida de São Francisco de Assis. Nas paredes da igreja, os catorze passos da via-sacra são pontuados em pintura a têmpera sobre madeira. Completam a ornamentação os baixos relevos em bronze do batistério, de autoria do escultor mineiro Alfredo Ceschiatti, e os painéis abstrato-geométricos do carioca Paulo Cabral da Rocha.

 
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