Imagine um menino com dois sorrisos, um deitado e outro em pé. Pode parecer estranho, mas essa foi a metáfora utilizada pelas fonoaudiólogas Cláudia Cotes e Midori Hanayama para tratar de forma lúdica o universo das crianças com fissura labiopalatinas. As duas profissionais são autoras do livro infantil Menino-sorrisos, publicado no final de 2007. O pré-lançamento foi realizado no Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da USP, o popular Centrinho, em Bauru.

Foto crédito: Sercom HRAC/USP

O local não poderia ser mais adequado. Em seus quarenta anos de atuação, o Centrinho da USP – pioneiro no tratamento de fissuras labiopalatinas – já atendeu mais 45 mil pacientes de todos os Estados brasileiros. Dentre essas milhares de histórias, uma chamou a atenção das autoras. Gustavo, personagem principal do livro, foi inspirado no jornalista paulistano Gustavo Prudente, 25 anos, paciente do hospital desde 1986.

O jornalista é autor de Sopa de pizza – Histórias de gente diferente, que contém depoimentos colhidos no Centrinho e em

Pequenos leitores são o alvo das fonoaudiólogas Midori (acima) e Cláudia (abaixo): objetivo é diminuir o preconceito e ajudar pais, crianças e professores a lidar melhor com a realidade dos pacientes

outras cidades e instituições. A obra, finalizada em 2004, foi aprovada com nota máxima como trabalho de conclusão do curso de Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da USP e hoje aguarda a oportunidade de publicação.

“Na pesquisa pude compartilhar não só as minhas experiências, mas também as de profissionais e pacientes”, conta. “Durante esse período de entrevistas, revisitei muitos prazeres e dores e vi que, no fim das contas, para dentro daquelas portas pelas quais eu entrava, o mundo não era tão diferente. Descobri que me considerar um sofredor não significava que eu não tivesse muitas falhas, e isso me ajudou a me reconciliar com o mundo”, completa o jornalista.

De paciente a personagem – Após entrevistar a fonoaudióloga Cláudia por telefone para uma matéria sobre inclusão de deficientes, publicada no jornal Folha de S. Paulo, Prudente contou sobre sua vida. “Achei a história muito interessante e fiquei com aquilo na cabeça”, diz Cláudia. A idéia do livro veio mais tarde, quando uma pesquisa realizada por ela detectou que eram raras obras infantis voltadas às crianças com fissuras labiopalatinas. “Não existem no Brasil livros que contem de forma clara a história dessas crianças. Aliás, no mundo inteiro são poucas as iniciativas”, revela.

Foto crédito: Sercom HRAC/USPA trajetória do jornalista, portanto, foi o ponto de partida para uma obra sem similar no País. No livro, depois de passar pelas cirurgias, Gustavo – o personagem – leva uma vida absolutamente normal, freqüentando a escola e brincando com os amigos, até crescer e se tornar artista de televisão.

De forma lúdica, Cláudia e Midori tentam retratar o universo das crianças que nascem com fissura labiopalatina. No Brasil, há referência de que uma em cada 650 crianças nascidas apresenta esse tipo de anomalia craniofacial. As autoras se conheceram durante uma aula do doutorado em Lingüística na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Já atuando como escritora infantil, Cláudia não hesitou em convidar a colega de pós-graduação para integrar o projeto.

Formada em Fonoaudiologia pela USP, Midori tem duas décadas de experiência na área de fissura labiopalatina. Cursou especialização na Universidade de Kyoto, no Japão, e atualmente desenvolve pesquisas no grupo de Cirurgia Plástica Craniofacial do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. “O objetivo do livro é diminuir o preconceito e fazer com que pais, crianças e professores conheçam as dificuldades e saibam lidar melhor com a questão”, ressalta. Midori foi responsável por redigir a parte final do livro, com dicas aos pais e professores sobre a fissura, seus tratamentos e os locais no Brasil e no exterior em que esses serviços podem ser encontrados. As autoras doaram cinqüenta exemplares para o Centrinho.

Foto crédito: Sercom HRAC/USPVoz da diversidade – Idealizadora de Menino-sorrisos, Cláudia Cotes tem uma ligação de longa data com a escrita e com temas relacionados à diversidade. Antes de se formar em Fonoaudiologia, cursou Letras. “Desde os 17 anos amo escrever”, conta. O contato com portadores de deficiência ocorreu desde a infância: seu irmão mais novo, Paulo, nasceu com síndrome de Down e levou para dentro de casa as discussões sobre a diversidade. “Ele sempre foi um exemplo para a família. Coincidentemente, faleceu no Dia Internacional da Pessoa com Deficiência”, recorda. Era o dia 3 de dezembro de 2004, e Paulo tinha 34 anos.

Apesar do contato com a escrita e com a diversidade ter tangenciado toda a vida de Cláudia, sua relação com o público infantil ocorreu mais tarde e por um motivo bem específico: sua filha Carolina, hoje com 9 anos. Um amigo da família – pai de uma menina com deficiência auditiva – convidou Carolina para passar um dia brincando em sua casa. A fonoaudióloga deparou pela primeira vez com a tarefa que lhe “perseguiria” desde então: a tradução para a linguagem lúdica de temas ligados à inclusão de pessoas com deficiência.

“Na época, Carolina tinha sete anos. Eu queria contar para ela que a amiguinha era surda, mas não queria reforçar o preconceito”, diz. “Foi quando resolvi escrever uma história para explicar a situação para minha filha.” Feita “sob encomenda” para uma só leitora, a história não tardou a ficar conhecida, cativando familiares e profissionais que convivem com deficientes auditivos. Logo ganhou um título – O som do silêncio – e, com ajuda de profissionais de televisão, virou curta-metragem, hoje já traduzido para três idiomas.

“Desde então o trabalho com a inclusão de deficientes passou a fazer parte de minha vida e não mais parei de escrever e ter iniciativas”, declara. Hoje, Cláudia preside a ONG Vez da Voz, especializada na produção de materiais lúdicos e didáticos para crianças. Idealizada por ela e pela irmã Paloma Cotes, a organização reúne mais de 30 profissionais, voluntários de diversas áreas, que trabalham para promover a interação das pessoas com deficiência. “Nosso objetivo é mostrar que é possível dar voz a quem não tem vez”, finaliza.

O livro Menino-sorrisos (Editora Thot, 24 páginas, R$ 15,00) pode ser adquirido pelo site www.thot.com.br. Outras informações estão no site www.vezdavoz.com.br.

 
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