A União Européia, respaldada por um relatório da Academia Real de Ciências do Reino Unido (Royal Society), anunciou no dia 14 de janeiro que poderá rever a meta de abastecer 10% de sua frota de automóveis com etanol até 2020. Concomitantemente ao incerto cenário que se desenha para os biocombustíveis no mercado internacional, uma nova polêmica surge no meio acadêmico em torno dos impactos ambientais dos chamados combustíveis “limpos”. Artigo

Foto crédito: Cecília Bastos

publicado na revista Science de 4 de janeiro divulga um estudo financiado pelo governo suíço que busca ser um “levantamento detalhado dos custos e benefícios ambientais para diferentes biocombustíveis usados para transporte”.

Em “How Green Are Biofuels?” (“O quanto os biocombustíveis são verdes?”), os autores destacam que a destruição de ecossistemas nativos para a produção de biocombustíveis é um fator-chave em se tratando da sua eficácia ambiental. O artigo da Science, assinado por William Laurance e Jörn

Scharlemann, do Smithsonian Tropical Research Institute, no Panamá, cita alguns autores para mostrar que as ricas florestas tropicais vêm sendo arrasadas para o cultivo da cana-de-açúcar. Mais adiante, Laurance e Scharlemann afirmam que os incentivos do governo norte-americano para o plantio do milho estão puxando para cima os preços da soja no mercado internacional – o que vem acarretando a destruição da Floresta Amazônica e de cerrados do Brasil para o cultivo de soja.

O estudo suíço citado pelos autores avalia que 21 de 26 tipos de biocombustíveis analisados têm o mérito de reduzir em mais de 30% as emissões de gases de efeito estufa (GEE) em relação à gasolina. Porém, quase a metade (12) tem maiores custos ambientais agregados do que os combustíveis fósseis, incluindo o etanol de milho dos Estados Unidos, além do etanol de cana e do diesel de soja do Brasil.

Foto crédito: Francisco Emolo
Moreira (abaixo) e Goldemberg: surpresa e contestação

O estudo chegou a essa conclusão graças a um método conhecido como Eco Indicador Europeu, que reuniu dados ambientais, sociais e econômicos da Suíça. Os autores do artigo fazem ressalvas sobre o método e alertam para os riscos de agregar num único indicador custos ambientais tão discrepantes.

Essa é uma das falhas apontadas também pelo professor José Roberto Moreira, presidente do Conselho Gerenciador do Centro Nacional de Referência em Biomassa (Cenbio) – iniciativa do Ministério de Ciência e Tecnologia cuja sede fica no Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE) da USP. “É complicado juntar variáveis diferentes. É como somar laranja com banana. Usar um indicador único para mostrar impactos sociais, econômicos e ambientais é discutível, e os que aceitam isso ainda são uma minoria na comunidade acadêmica”, diz o professor.

O estudo utilizou um método europeu com indicadores da Suíça e, portanto, traduz condições que têm significado para países desenvolvidos, mas jamais para países em desenvolvimento, ressalta Moreira. O professor lembra que não há muitos dados regionais na América Latina e Ásia, por exemplo, o que inviabiliza comparações.

“Além disso, não podemos desprezar a avaliação subjetiva do pesquisador ao construir indicadores, mesmo na Suíça. O pesquisador precisa dar pesos aos valores humanos e sociais e deve ponderar, por exemplo, o que é e qual a importância de uma sociedade democratizada, escolarizada, ou qualquer outro dado que ele queira avaliar”, considera.

Foto crédito: Francisco EmoloO professor Moreira mostrou-se surpreso ao constatar que os principais especialistas brasileiros sobre o tema não foram consultados como pareceristas para o artigo da Science , apesar do assunto estar diretamente ligado ao País. “Os autores, assim como grande parte do mundo, ignoram tudo o que pode ser feito a partir da cana”, diz.

Mar verde – O milho compete com a soja e de fato está provocando um aumento de preços nos mercados internacionais, diz o ex-secretário de Meio Ambiente do Estado de São Paulo e professor do IEE José Goldemberg. “Mas não é o caso do etanol brasileiro, pois a cana-de-açúcar usa apenas 5% da área dedicada à agricultura, e existem grandes áreas de pastagens onde ela pode se expandir deixando intacta a Amazônia”, afirma.

Um estudo finalizado recentemente pelo professor José Roberto Moreira sobre a produção de milho demonstra que os números da produção média global estão dentro da normalidade. O levantamento reúne dados desde 1961 e mostra que em determinados anos a variação da produção mundial chegou a ser de 15%. Em média, a variação anual fica em torno de 5%.

Os dados históricos levam à conclusão de que o programa de incentivo norte-americano à cultura do milho está produzindo um impacto que é da ordem da variação média anual – uma vez que esse número continua variando em torno de 5% ao ano. “Os Estados Unidos deslocaram para combustível o equivalente a 5% da produção mundial de milho. Ou seja, do total produzido no mundo para alimento, 5% estão sendo utilizados pelos EUA para combustível. Isso é uma normalidade técnica dentro da produção média mundial”, afirma o professor.


Para pesquisadores suíços, etanol de cana do Brasil tem custo ambiental agregado maior do que a gasolina

Segundo Moreira, a história e a experiência mostram que os aumentos da produção agrícola no mundo se dão muito mais pelo crescimento da produtividade (taxa entre 2% e 2,5% ao ano) do que por causa do incremento de terra (o que ocorre atualmente a uma taxa de 0,5% ao ano). De acordo com José Goldemberg, muitos cientistas afirmam que os biocombustíveis não são realmente “verdes”. “Porém, se esquecem de calcular os impactos e as condições de trabalho nas operações nos campos de extração de petróleo e gás natural e em minas de carvão”, aponta.

Emissões – José Roberto Moreira ressalta que os autores do artigo da Science mostram que as melhores soluções para a energia no mundo nunca foram implementadas. “Não consideram que se não foram feitas é porque não são factíveis ou porque custam muito caro. Para eles, todas as soluções são ruins. Isso é supor que toda a sociedade é estúpida”, diz.

Para Goldemberg, “os biocombustíveis são, até o momento, a única alternativa aos derivados de petróleo disponível comercialmente”. O professor ressalta que, de fato, “a produção de biocombustíveis pode causar impactos”. “Porém, cabe às autoridades garantir o cumprimento de legislações ambiental e trabalhista adequadas, como é o caso da queima da palha da cana antes da colheita, que no Estado de São Paulo está sendo eliminada graças a uma legislação que obriga à colheita mecanizada da cana crua”, diz.

O artigo da Science menciona ainda as emissões de GEE nas culturas voltadas a biocombustíveis e cita o óxido nitroso como um gás traço (gases em pequenas quantidades na atmosfera) liberado por solos onde há culturas que precisam de fertilizantes à base de nitrogênio, como milho e canola. Porém, é fato conhecido que a agricultura e também a pecuária contribuem para o efeito estufa. Considerados apenas o metano, o óxido nitroso e o gás carbônico, o relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) de 1996 estima que 20% do incremento anual do aquecimento global deriva do setor agrícola.

“A quantidade das emissões de óxido nitroso pelas culturas de biocombustíveis é insignificante para o efeito estufa”, afirma o professor Moreira. Já Goldemberg lembra que os biocombustíveis não têm impurezas de enxofre e particulados presentes no petróleo, os quais são responsáveis pela má qualidade do ar nas metrópoles.

 
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