Nos últimos anos, os grafiteiros vêm movimentando o cotidiano das cidades. Em São Paulo , o grafite já se integrou na paisagem. E os seus autores, até então anônimos, passaram a ser reconhecidos. E convidados a entrar nos espaços dos museus e galerias. É essa travessia do mundo marginal do grafite para o universo da arte que o Museu de Arte Contemporânea (MAC) pontua na exposição

Foto crédito: Ernani Coimbra

“Street Art – Do Grafite à Pintura – Itália/Brasil”, reunindo 60 obras de artistas italianos e brasileiros. Sob a curadoria do crítico Fábio Magalhães e do secretário de Cultura de Milão, Vittorio Sgarbi, a exposição reúne cenas que os grafiteiros pintaram nos muros das cidades, porém transpostas em telas.

O MAC – que em abril de 2003 cedeu a fachada da sua sede na Cidade Universitária para a arte do grafite – foi um dos pioneiros em discutir e reconhecer a relevância dessa linguagem. “Os grafiteiros estão no circuito da arte e o MAC foi o primeiro museu a acolher uma obra do gênero em sua coleção”, afirma a diretora da instituição, Lisbeth Rebollo. “Nós reconhecemos a importância do grafite como expressão artística e ingressamos no debate dessa

forma expressiva e, ao mesmo tempo, de escritura e ação, estudando a sua presença no meio urbano, o seu contexto social, comunicação e estética.”

Os italianos selecionados que integram a mostra são: Cano (Raffaelo Canu), Kayone (Marco Mantovani), Led (Alessandro Appolonio), Leo (Leonardo Mantovani), Filippo Minelli, PHO (Marco Grassi), Francesco Poliaghi, Rae Martini (Marino Martini), Verbo (Mitja Bombardieri) e Wany (Andrea Sergio). Esses artistas foram reunidos pelo curador Vittorio Sgarbi, que lembra que o grafite continua muito marginalizado na Itália, especialmente nas cidades históricas. “É preciso, no entanto, reconhecer que o grafite é um movimento internacional como aconteceu com os grandes movimentos dos cubistas, futuristas, dadaístas, surrealistas”, diz. “É onde os artistas estão encontrando uma linguagem comum através de um desenho enérgico, de cores fortes, com uma comunicação imediata como a dos quadrinhos.”

Os brasileiros foram escolhidos por Fábio Magalhães, que defende a importância dessa manifestação na arte contemporânea. “O grafite é uma válvula de saída, um desejo de comunicar”, observa. “A pintura é a referência para o grafite. Ao mesmo tempo, o grafite tem sido uma referência para a pintura. É uma estrada de duas mãos.” Os artistas do País são: Zezão, Cesar Profeta, Boleta, Tim Tchais, Highraff (Rafael Calazans Pierri), Bugre, Prozak, Celso Mazu, Ndrua (Frederico Jorge), Yá! e Smael.

Estilos diferentes – O público pode perceber, na mostra, que o grafite brasileiro tem características próprias. “Os brasileiros criaram suas regras no grafite”, compara o artista italiano Kayone. “Acho que o fato de pintarem com mais liberdade, de serem reconhecidos, resultou em imagens muito coloridas que se aproximam mais da pintura contemporânea. É um estilo mais individual, diferente dos grafiteiros italianos, que obedecem a regras e não podem pintar onde querem.”

Sgarbi conta que na Itália o grafite continua muito marginalizado. “O trabalho deles geralmente tem uma crítica contra o poder. Muitos desses jovens encontraram na pintura um modo de expressar a própria energia para mostrar que a arte é sempre uma forma de rebelião. Em Milão, ao contrário de São Paulo, que apóia os grafiteiros, há um conflito muito forte entre autoridades, polícia e artistas.”

Na posição de secretário de Cultura de Milão e crítico de arte conceituado, Sgarbi tem procurado apoiar os grafiteiros. “Eles encontraram em mim uma referência para mudar essa realidade. Ao invés de obrigá-los a apagar os desenhos dos muros, eu os levei, no início de 2007, para expor no Museu de Arte Contemporânea de Milão. Fizemos a mostra “ Street-Art, Sweet Art”, que foi vista por Fábio Magalhães. Daí a idéia de realizar essa exposição em conjunto com os artistas brasileiros”, conta.

Nascido na Etiópia e vivendo em Milão, Leo grafita há 18 anos. Quando percorreu São Paulo e viu a explosão dos grafites nos muros das principais avenidas, ficou impressionado. “Tive a sensação de que meu lugar era aqui”, comenta. “Percebi que há vários protestos contra o racismo, contra a política. Os artistas têm liberdade para se expressar, são reconhecidos. Acho isso muito estimulante.”

Uma liberdade que, segundo a brasileira Yá! (Yara Amaral Gurgel), também passa por dificuldades. “Nem todos reconhecem o nosso trabalho. Ainda passamos por situações difíceis. Outro dia fui grafitar no Túnel da Rebouças, que é considerado ponto turístico, e o policial queria saber se eu tinha ou não autorização. Disse que tinha e que morava muito longe para buscar, mas era mentira. Quando estava grávida do meu filho Téo, há dois anos, estava pintando e quase me levaram presa. Tive que parar e voltar depois.”

Yá! vê com orgulho o grafite ser reconhecido pela crítica como arte e entrar pela porta da frente nas galerias e museus. “Sinal de que o nosso trabalho é muito bom. Essa valorização é uma grande conquista”, diz. “Mas com essa institucionalização do grafite se perde o lado da contestação, da reivindicação social e do clima da marginalidade. No entanto, permite ao artista sobreviver do seu trabalho.”

Para Daniel Boleta, na atividade em São Paulo há 14 anos, o grafite só tem a ganhar. “Quando vamos para os museus, nosso trabalho tem uma outra dimensão. Passa a ser uma obra plástica que tem a referência no grafite”, acredita. Para os grafiteiros, ocupar as ruas, segundo Boleta, é a regra. “No último sábado, nós saímos com os italianos para grafitar os muros em Pinheiros e Vila Madalena”, conta. “Foi importante, porque mostramos essa fusão do estilo italiano e brasileiro.”

Um trabalho que, na opinião de Francesco Pogliaghi, vai ficar na história. “Aprendemos muito com os grafiteiros brasileiros. O jeito próprio como desenham mostra bem a diversidade cultural do País e especialmente de São Paulo, que reúne imigrantes de todo o mundo”, diz o italiano.

Street Art – do Grafite à Pintura, Itália/Brasil está no Museu de Arte Contemporânea, pavilhão Ciccillo Matarazzo, avenida Pedro Álvares Cabral, 3º piso, portão 3 do Parque Ibirapuera. De terça a domingo, das 10h às 19h. Entrada franca. Até 17 de fevereiro

 

Vitalidade e impacto

Há anos que as legislações municipais combatem, em todo o território nacional, a pichação e o grafite – contudo essa expressão de rua resistiu graças à sua origem transgressora e ao seu caráter clandestino e desafiador. Nos últimos anos as prefeituras das grandes metrópoles, como São Paulo e Rio de Janeiro, adotaram novas políticas públicas e abriram espaços simbólicos importantes, inclusive nas principais avenidas, para a intervenção de grafiteiros, como nas avenidas Paulista e 23 de Maio, ambas em São Paulo. Surgiu assim o grafite autorizado, consentido, que recebeu ampla aprovação por parte da população.

A adoção pelas prefeituras de uma nova postura em relação ao grafite possibilitou que algumas intervenções tivessem vida longa. Essa presença continuada no espaço público deu ao grafite estatura semelhante aos murais, como aqueles realizados por Portinari, Di Cavalcanti e Clovis Graciano, nos anos 1930, 40 e 50. A longa permanência de determinados painéis grafitados provoca também outros fatos urbanos – o seu impacto visual passa a exercer, em determinadas zonas, sobretudo nas mais deterioradas, uma função revitalizadora e, em muitos casos, dá identidade aos logradouros das cidades.

Na maioria das vezes, esses imensos painéis grafitados foram feitos por diversos artistas, produto do trabalho e do planejamento coletivos. É comum no grafite a realização do trabalho em grupo e, mesmo assim, é impressionante a harmonia que se estabelece entre as diferenças, resultado da coesão das imagens. Isso se dá, em grande parte, porque as variadas grafias falam sempre o mesmo idioma, ou de um mesmo tronco lingüístico. São Paulo é, certamente, a cidade mais grafitada do mundo, e até 2006 o grafite disputava com os outdoors e com a publicidade todos os centímetros de espaço urbano.

A cidade de São Paulo era a urbe de maior poluição visual do nosso planeta. Recentemente, por força da lei municipal Cidade Limpa, foram retirados todos os outdoors e toda a publicidade de grande formato e impacto visual. Com a ausência da publicidade restou apenas o grafite como expressão imagética, nas praças, nas ruas, nas empenas dos edifícios, nas pontes e viadutos. Este fato trouxe um novo protagonismo para o grafite e também novos desafios para a sua sobrevivência como arte pública.

O grafite surgiu e manteve-se na marginalidade, sempre foi combatido. Ultimamente passou a ser tolerado pelas autoridades municipais e hoje é admirado, pelo menos, pela parcela mais culta das elites. O que acontecerá com o grafite quando ingressar definitivamente no circuito das artes, quero dizer, no mercado das artes?

Esta exposição é testemunho do novo espaço que se estende ao grafite – ou seja, o espaço de maior prestígio do circuito das artes, que é o museu, abre suas salas para expor grafiteiros italianos e brasileiros.

A Pinacoteca do Estado de São Paulo foi o primeiro museu que acolheu uma exposição de grafite, ao realizar em 1980 a mostra individual de Alex Vallauri. Anos mais tarde, na gestão de Emanoel Araújo, a Pinacoteca expôs uma grande mostra de Jean-Michel Basquiat que obteve enorme êxito de crítica e de público. Mas o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo foi o primeiro museu no Brasil que incorporou ao seu acervo, em 1983, uma obra de grande formato do grafiteiro norte-americano Kenny Scharf e, a partir de então, o museu passou a ter permanente interesse pelas linguagens de rua. O MAC-USP realizou em 2004 a grande exposição “Olhares Impertinentes”, que incluiu artistas como Boleta, Highraff, Prozak, Tim Tchais, entre outros.

A Bienal de São Paulo também demonstrou interesse pelo grafite a partir de 1983, quando na sua 17ª edição apresentou grandes painéis de Keith Haring e Kenny Scharf. Na bienal seguinte, com a curadoria de Sheila Leirner, apresentou com destaque uma instalação que ocupou uma sala especial intitulada Festa na Casa da Rainha do Frango Assado, do grafiteiro Alex Vallauri. Outros dois mestres do grafite também estavam presentes na 18ª Bienal: Carlos Matuck e Waldemar Zaidler.

Hoje, diversas galerias de arte abriram suas portas ao grafite, como a Galeria Fortes Vilaça que trabalha com os grafiteiros Gêmeos. Recentemente  surgiram galerias especializadas em arte de rua, como Choque Cultural e Grafiteria, ambas de São Paulo. E já são muitos os colecionadores de arte que incorporaram obras dessa linguagem em suas coleções.

Vittorio Sgarbi, secretário de Cultura de Milão, motivado pelo sucesso da exposição de grafite italiano “Street-Art, Sweet-Art”, realizada em Milão no início de 2007, propôs a realização de uma mostra conjunta de artistas grafiteiros italianos e brasileiros que seria apresentada em São Paulo , no Rio de Janeiro e em alguns países da América Latina. Eu deveria escolher dez artistas brasileiros que se somariam ao mesmo número de artistas italianos.

Ao aceitar o desafio de assumir a curadoria da parte brasileira dessa mostra, encontrei-me diante de uma situação absolutamente nova. A atividade underground do grafite era praticamente desconhecida para mim. Eu estava razoavelmente informado sobre os movimentos de arte de rua desenvolvidos em Nova York e sobre a cultura hip hop , nos Estados Unidos. Havia percorrido o Muro de Berlim, antes da sua queda, e lembro-me do impacto que os grafites e as pichações me causaram. Faço parte da geração dos anos 60 e fomos influenciados pelos movimentos estudantis de 1968 em Paris. A famosa pichação – “É proibido proibir” – marcou nossa geração.

Contudo, essas experiências e conhecimentos com o grafite internacional não eram suficientes e não abririam as portas para o mundo particular e muitas vezes clandestino dos artistas de rua, que vivem e atuam nas nossas cidades.

Quem me introduziu no mundo do grafite foi o artista, pichador e grafiteiro Daniel Medeiros, o Boleta. Graças ao seu conhecimento e à sua vivência pude penetrar um pouco mais nesse universo fantástico e cheio de energia que é a arte de rua. Boleta dividiu comigo a curadoria dessa exposição. Juntos selecionamos dez artistas brasileiros.

Ao percorrer a cidade de São Paulo, com os olhos atentos às pichações e aos grafites, certifico-me da força expressiva dessas manifestações, da extraordinária guerra de alfabetos e da qualidade plástica das intervenções urbanas. É emocionante verificar que determinados painéis são capazes de transformar, muitas vezes de modo radical, os espaços da cidade. A vitalidade da arte de rua está presente nas grandes cidades brasileiras e é inegavelmente uma das linguagens visuais de maior impacto na nossa sociedade. (Fábio Magalhães, curador da mostra)

 
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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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