De peruca escorrida, preta como a face, que destaca o branco dos olhos e a boca muito vermelha, Edina atravessa todo o interior e frente do Espaço dos Fofos, espreitando os presentes com o olhar. Assim que sai de cena aparece Juca: o mulato conversador surge alisando a camisa e não demora a conduzir os convivas ao auditório, onde tem início o aguardado espetáculo. Edina posta-se à esquerda do palco

Foto crédito: Guto Muniz

e, abrindo pela primeira vez os lábios rúbeos, desata um palavrear sonoro que serve de prelúdio à A Mulher do Trem , premiada peça que volta a ser encenada no próprio teatro da companhia. As curiosas figuras são interpretadas, respectivamente, por Carlos Ataíde e Marcelo Andrade, integrantes da companhia Os Fofos Encenam. Inspirada na comédia homônima de Maurice Hennequin e George Mitchell, foi escrita na França, no século 19, e teve sua primeira apresentação no Brasil em 1920, no Circo Colombo, mantido pelo bisavô do atual diretor, Fernando Neves.

Personagens-tipo arrancam risadas da platéia

Adaptada para a classe média carioca do começo do século 20, tem todas as características do vaudeville francês: uma seqüência de intrigas que se desenvolve rapidamente, criando notável estrutura dramática.

Neves descende de uma família de circo chegada ao Brasil em 1889 com a qual trabalhou até os dez anos de idade. Na época, interpretava pequenos papéis, porque “no circo, criança tem que participar”, diz ele. Dedica sua atual pesquisa ao circo-teatro, “manifestação artística genuinamente brasileira que teve seu auge nas décadas de 30 e 40, revelando atores como Oscarito, Grande Otelo, Dercy Golçalves, Procópio Ferreira...”. Segundo o diretor, no momento em que sustentar as feras tornou-se demasiadamente dispendioso, o circo, inicialmente um espetáculo de variedades, dividiu-se em duas partes: estas e as montagens teatrais. Caracterizado por uma “arquitetura perfeita de texto”, marcado por uma comicidade rápida e pelo qüiproquó, o circo-teatro é composto por personagens-tipo, caricatos, de comportamento afetado e maquiagem singular (tipicamente circense), de modo que assim que pisam no palco se compreende seus papéis. No caso de A Mulher do Trem, temos a sogra controladora, com sobrancelhas arqueadas e risada diabólica; o sogro, bonachão e submisso à mulher; a noiva, arquétipo da ingenuidade; e o noivo, muito mais velho que a prometida e galanteador, entre outros.

No enredo, que se passa no dia do casamento, o noivo, malogrado pela sogra, trama com seu sogro um modo de retirá-la do comando da família. Ele também conta a aventura que tivera 17 anos atrás com uma desconhecida durante uma viagem de trem que fazia o percurso Rio-São Paulo. Escutando tudo, a sogra, ultrajada, planeja uma desforra: após a cerimônia segreda ao genro ser ela a mulher do trem e, não bastasse isso, sua filha é fruto daquele encontro. Está criado o conflito. O resultado é uma comédia digna da tradição circense. Neves explica que o circo sempre prestou serviço para uma sociedade conservadora, por isso a peça possui certa função moralizante e procura ser discreta ao romper os limites da decência. Ao mesmo tempo, o picadeiro comporta públicos de todas as classes, por isso o espetáculo deve ser eclético. Em suas próprias palavras, “o circo é uma geléia geral”, é “despudorado”, o que o torna “muito brasileiro”.

Durante sua pesquisa, o diretor descobriu que o ator circense trabalha com temperamentos, ou seja, o gênio do artista o coloca mais próximo de determinada máscara. Isso assegura maior espontaneidade no momento da interpretação. Em A Mulher do Trem a dinâmica dos movimentos é dada por um piano tocado ao vivo, no mesmo plano do palco, muitas vezes havendo diálogo entre músico e atores. No jargão do circo, diz-se que é uma peça que “levanta a praça”, em outras palavras, tem sucesso garantido.

A Mulher do Trem fica em cartaz até 9 de março, sextas, às 21h30, sábados, às 21h, e domingos às 19h, no Espaço dos Fofos Encenam, que fica na r. Adoniran Barbosa, 151, Bela Vista. Todas as noites é oferecido um jantar após a sessão, do qual participam diretor e atores, aberto ao público. Os ingressos e o jantar devem ser reservados antecipadamente pelo tel. 3101- 6640 a R$ 20,00 e R$ 12,00, respectivamente (de segunda à sexta, das 14h às 18h).

 
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