São 9h45 de uma sexta-feira comum na rua João Passaláqua e o Corpo do Balé da Cidade de São Paulo já está na metade de sua primeira sessão de treino (são mais de seis horas diárias). Frente a um enorme espelho coberto por lençóis pretos, Lourenço Homem lidera cerca de 30 bailarinos em uma aula técnica, um misto de clássico com contemporâneo.

Foto crédito: Silvia Machado

Ao som de Jack sou brasileiro, de Lenine, e outras músicas brasileiras, o professor guia movimentos livres e flexíveis, enfatizando o uso do torso. Homem não é o único a cobrir os espelhos, explica Lilia Shaw, integrante da Cia 2. O ato visa a sanar a “espelhosite”, espécie de “doença” que aflige grande parte dos dançarinos que, ao se fixar em seus reflexos, passam a se perceber através do espelho e não de seus corpos, da “propriocepção”.

Os treinos devem se intensificar este ano,

uma vez que a companhia comemora 40 anos de história e tem uma longa agenda para cumprir. História difícil de condensar em poucas linhas, dado o grande número de acontecimentos. Fundada em 1968 como companhia de balé clássico, o então Corpo de Baile Municipal existia para atender às necessidades das óperas encenadas no Teatro Municipal. Mônica Mion, bailarina de carreira e atual diretora do Balé da Cidade de São Paulo, conta que, na época, as coreografias possuíam “técnica clássica, ainda nos moldes europeus”, e a Cia. “não tinha muita expressão”.

Quando Sábato Magaldi assumiu a Secretaria da Cultura, querendo “libertar” o Corpo de Baile da influência européia, a história tomou rumo diferente. Em 1974 foi contratado Antônio Carlos Cardoso, jovem coreógrafo e bailarino que deu início às transformações. “São Paulo precisava de uma companhia mais de acordo com a cidade, que representasse melhor a cidade dentro da nossa cultura”, diz Mônica. A técnica clássica continuou e continua sendo utilizada até hoje. “O clássico é uma base excelente”, explica a diretora. “É uma técnica universal em códigos, que está mais fundamentada.” A diferença foi a adesão a novos métodos e a mudança radical do perfil da companhia, que se tornou contemporânea.

Foto crédito: Silvia MachadoNa época, muitos deixaram o balé. “Foi uma ruptura mesmo. Causou muito desconforto em muita gente, que não aceitava absolutamente a dança moderna. Muita gente foi embora”, lembra Mônica. A substituição dos tutus rendados por calças e roupas casuais e a metamorfose do repertório foram um choque para metade do grupo: dos 20 integrantes da Cia., apenas dez permaneceram.

A partir de então, “a característica principal da companhia são as personalidades”, afirma a diretora. “Nós não temos um corpo de baile e não é uma companhia clássica, então não precisamos de bailarinos iguais, todos da mesma altura. É isso o que enriquece nosso elenco.” Em 1981, quando passou a se chamar Balé da Cidade de São Paulo, se investiu da missão de representar sua cidade, nas palavras de Antonio Carlos Cardoso, “uma cidade linear, sem rococó”. Mônica, paulistana convicta, reforça esse objetivo de dançar a São Paulo caótica, cheia de arranha-céus, de pessoas, de vida, “essa mistura de culturas, de gente do Brasil e do mundo inteiro”. Uma cidade “vibrante”.

Para celebrar os 40 anos de existência, a companhia desenvolveu o projeto Circulação, que procura levar a dança a bairros afastados e regiões onde “as pessoas não têm acesso nenhum à dança, não vão ao teatro”. Trata-se de uma parceria com o Departamento de Extensão Cultural (DEC) da Secretaria Municipal de Cultura, via projeto Quebrada Cultural. Dando seqüência ao primeiro espetáculo, apresentado na comunidade São Remo, Divinéia, de Jorge Garcia, e Axioma 7, de Ohad Naharin, serão exibidos em Guaianazes, Sete Campos e na Virada Cultural. Todas as coreografias serão realizadas em espaços públicos e terão entrada franca. “A companhia deve isso a São Paulo.”

O Balé da Cidade também pretende higienizar, digitalizar e catalogar seu acervo, composto por registros em vídeo, processos criativos, workshops, oficinas com a comunidade e artistas, e material lançado pela mídia televisiva para divulgação de espetáculos e projetos. Segundo Mônica, há “um acervo enorme de programas, fitas de vídeo, fotografias, críticas, toda essa documentação que nunca conseguimos fazer da maneira correta”. Um levantamento realizado pela companhia revela que vários vídeos da década de 90 “já estão em branco e preto ou embolorados”. Após a organização dos documentos, a companhia pretende criar um espaço aberto ao público para disponibilizá-lo.

Os coreógrafos convidados deste ano são Cayetano Soto, do Liceu de Barcelona, e Sandro Borelli, da Cia. Borelli de Dança. O catalão Soto entrou em contato com o Balé da Cidade pela primeira vez na Alemanha e desde então deseja criar uma nova coreografia para a companhia. “O mais importante para mim foi a energia que eu vi se desprender de todos os bailarinos”, diz. Desenvolveu o espetáculo Canela Fina, que se refere a uma antiga expressão espanhola usada para alguém muito sensual e desejável. Borelli adaptou o clássico O lago dos cisnes, de Tchaikovsky, para uma versão moderna e provocadora. Para a diretora, o coreógrafo é um dos que melhor representam São Paulo.

Segunda Mônica, a dança “é uma forma menos direta de expressão, mas, pela nossa experiência, chega muito rápido ao público. É a performance ali, na hora, coisa que traz emoção e sentimento por si”. Para ela, “o corpo expressa tudo”. Aqueles que não estão acostumados com essa arte precisam apenas de hábito. “A primeira vez impressiona porque é bonito”, conta a diretora, mas “à medida que a pessoa vai assistindo mais, ela percebe outros aspectos”. A percepção, segundo ela, se torna mais sofisticada com o tempo.

Para começar, o Balé da Cidade reestréia nesta terça e quarta, às 21h, Meta-Sensoriais, no Teatro Municipal. O trabalho, criado e apresentado pela Cia. 2, caracterizada por pensar a dança, se baseia nas investigações das habilidades sensoriais de sete artistas do grupo, que afirmam se experimentar e reinventar durante as apresentações, “em uma dinâmica que justifica suas transposições metafóricas”.

Em seus ensaios diários, os bailarinos da companhia praticam técnicas seculares, ainda que o Balé da Cidade esteja completando apenas 40 anos. “Tudo começou quando um homem matou um animal, comeu a carne, cobriu seu corpo com a pele do inimigo. Exultou, saltou, contorceu o corpo em volta do animal, soltou urros de prazer. Na floresta seminal o homem vitorioso descobriu passos, ritmo, contorção. A coreografia nasceu natural e espontânea ao som de tambores ou assovios substituídos pela flauta. E fez-se a dança”, conforme relata o livro Balé da Cidade de São Paulo (Formarte Editora). Essa companhia, sempre jovem, inovadora e engajada no movimento da cidade, dança com mais véus que Salomé. Com apenas 40 anos, poderia pedir, em uma bandeja de prata, a cabeça de João Batista.

O Balé da Cidade de São Paulo se apresenta no Teatro Municipal, que fica na Praça Ramos de Azevedo. A programação completa dos espetáculos pode ser encontrada no site www.baledacidade.com.br. Mais informações pelo tel. 3241.3883.

 
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