O que seria de um jornal, de uma  fábrica, de um comércio ou de uma família se, de um dia para o outro, perdesse um terço da sua receita? Mal comparando, é o que aconteceu com o Sistema Único de Saúde (SUS), após perder uma de suas principais fontes de financiamento, a CPMF. Desde sua criação, em 1988, o SUS enfrenta a difícil situação de ser

responsável pela saúde de 190 milhões de brasileiros e não dispor de fontes regulares de financiamento. Argumenta-se que recursos existem e que o governo gasta mal. Bastaria gastar melhor e remanejar recursos orçamentários.

Com efeito, é importante desenvolver a administração pública e aplicar melhor cada centavo. Mas alterar orçamentos não é tarefa fácil, sobretudo na magnitude requerida pelo fim da CPMF – algo próximo de R$ 25 bilhões . Nem se pode fazer isso em curto prazo sem criar dificuldades para setores que perderão recursos.

O SUS conta com um esquema de financiamento frágil e que não se ampara em lei. Algumas fontes, mesmo regulares, podem ter alíquotas diminuídas e, no limite, suprimidas. Governantes, de todas as esferas, fazem o que querem com os recursos do setor. A CPMF foi um esforço para conferir alguma consistência a esse esquema. O que era precário, fato por si gravíssimo, foi desestabilizado de modo fatal com a decisão do Senado.

Ao tomar posse, o ministro Temporão ouviu

de Lula que estava assumindo o “pepino da Saúde”. Recebeu também o “abacaxi” do financiamento.

Borges, Márquez e Cortázar não chegaram a tanto. É cena de realismo mágico: em meio a mortes por febre amarela na capital federal, e na maior cidade do país, e filas imensas em postos de saúde em busca de vacinas, autoridades sanitárias pedem calma à população, enquanto o presidente da República se debate entre acusações da oposição (“o pacto foi rompido!”), ao tentar recompor o orçamento federal, e pressões de setores do governo que não querem perder suas verbas.

São imensos os problemas que os serviços do SUS enfrentam diariamente, seja em decorrência das péssimas condições de vida da maioria da população – que produzem enfermidades e mortes aos milhões –, seja em conseqüência das dificuldades gerenciais que marcam a administração pública.

Já é hora de pôr um ponto final nessa longa novela do financiamento do SUS. Basta de amadorismo e improvisação. Realismo mágico é muito bom em literatura, mas não combina com vacinação em massa, ambulatórios, cirurgias, transplantes, ações de vigilância sanitária. Sanitaristas vêm alertando sobre o forte subfinanciamento do SUS, implicando baixos salários e precariedade nas relações e condições de trabalho. Q uando a CPMF foi extinta, a previsão de investimentos no SUS era de R$ 8 bilhões a mais neste ano, R$ 12 bilhões em 2009 e aproximadamente R$ 16 bilhões em 2010 . Contudo, especialistas consideram necessários no mínimo R$ 20 bilhões por ano para manter o desempenho do sistema.

É positivo que os líderes da base do governo no Congresso tenham anunciado sua disposição de discutir uma reforma tributária que inclua uma fonte permanente de financiamento da saúde. Seria muito bem-vinda uma contribuição permanente para o financiamento do SUS, vinculada às movimentações financeiras, totalmente destinada à saúde, e não atingida pela DRU, pois daria maior visibilidade às receitas e despesas do SUS. Ao onerar a todos teria, por analogia, respaldo constitucional no princípio da universalidade da atenção à saúde. Seu caráter progressivo, onerando mais quem movimentar mais recursos, vai ao encontro de outro princípio constitucional do SUS: o da eqüidade (mais a quem precisa de mais). A noção de saúde como direito de cidadania ganharia também no plano simbólico, com os princípios da universalidade e da eqüidade aplicados ao próprio financiamento do sistema.

Críticos do SUS não devem se iludir: se é inegável que o sistema tem problemas, sem o SUS, cujo custo per capita é comparativamente baixo (cerca de R$ 1/dia), este país tropical seria um inferno sanitário inimaginável. Nos Estados Unidos, esse gasto atingiu R$ 34,5 em 2006 The New York Times, 8/1/08).

Sem repor os recursos perdidos, o que será do SUS? Se, com o desempenho atual, não obstante realizações importantes – como eliminar a poliomielite e controlar o sarampo, realizar mais de 2 milhões de partos e 12 mil transplantes etc. –, o SUS não consegue evitar casos de febre amarela em grandes cidades, o que esperar de um sistema que tenha seu desempenho comprometido por problemas de financiamento? Com saúde não se brinca, nem se deve utilizá-la para joguinhos políticos. Governo e oposição têm de agir rápido. Este janeiro de febre amarela acendeu também um sinal amarelo na saúde. É preciso atenção.

PAULO CAPEL NARVAI é professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, coordenador do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da USP e representante da universidade pública no Conselho Municipal de Saúde de São Paulo

 
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