Quem observar a cor da Assembléia Nacional Popular de Cuba, que aprovou, no dia 24 de fevereiro, a transferência do poder de Fidel Castro para o seu irmão Raúl, verá que não é uniformemente escura como um time cubano de vôlei ou de basquete, mas tem manchas brancas preenchidas por tipos europeus, além de alguns pontos bem negros. Verá também

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que entre os 614 membros há poucas mulheres, em clara demonstração de que o poder continua machista. Dois professores de Ciência Política da USP concordam que o Parlamento agora constituído não corresponde ao perfil do povo cubano, que é majoritariamente pardo.

Leonel Itaussu considera que não se trata de algo acidental, mas de errado, que precisa ser superado com uma série de reformas, a começar pela econômica. Alerta, no entanto, que nenhuma reforma que se faça em Cuba representará retorno ao regime capitalista anterior à revolução. Rafael Villa entende que se a revolução cubana garantiu ao povo um mínimo de renda, de saúde e de educação, não se preocupou em criar formas de incorporação de vários grupos ao sistema político, garantindo a sobrevivência de elites, que agora partilham da Assembléia Nacional.

Mudanças – Cuba não é o paraíso do socialismo, observa Itaussu, e 50 anos depois da revolução castrista continua imitando o que foi o socialismo soviético: regime de partido único, de economia estatizada, de controle da informação e dependente de lideranças carismáticas. Isso não impede, acredita o professor, que o país promova reformas e se apresente ao mundo

como pioneiro de um socialismo moderno e adequado ao século 21. Voltar à situação anterior a 1959, jamais; seria mais fácil caminhar em direção ao comunismo, hipótese para a qual o povo cubano não estaria preparado.

Itaussu não afasta a possibilidade de uma experiência comunista bem-sucedida no mundo, argumentando que as tentativas históricas de implantá-lo fracassaram, mas o comunismo não morreu. Lembra que o próprio Karl Marx acreditava que o regime começaria pela França, passando depois para a Alemanha e a Inglaterra, e só então para os demais países. Uma das condições para o êxito de uma nova tentativa comunista seria começar pela reforma econômica, sem misturá-la com a reforma política. Lição que a Rússia e a China atuais teriam aprendido, pois priorizam a solução dos problemas econômicos, aguardando que a solução política venha depois. Na China, haveria até a possibilidade de união com Taiwan e posterior adoção do bipartidarismo – os partidos Comunista e o Nacionalista.

Itaussu disse que conhece bem Cuba, onde esteve pela última vez no ano passado, não tendo visto nas ruas mendigos, alcoólatras ou marginais. Viu, sim, “alguns privilegiados: crianças e idosos”. Preservando as conquistas sociais, e se tiver acesso à tecnologia – para isso convém restabelecer relações com os Estados Unidos –, “Cuba, em vez de ser o último país socialista do século 20, será o primeiro país socialista renovado do século 21”. Para tanto, é necessária, além da reforma ampla, uma anistia geral, a fim de garantir a convivência entre a velha e a nova guarda e assimilar o possível retorno dos cubanos exilados na Flórida, sem que ponham em risco o regime. Mas será que eles constituem um problema para Cuba?

O professor Rafael Villa acha que não, considerando que a última coisa que os cubanos do exílio querem é voltar a Cuba. Querem é ficar na boa vida de Miami, torcendo para que seus patrícios continuem na ilha, sem lhes fazer concorrência nos Estados Unidos. O professor lembra que, no início, o governo norte-americano estimulou a fuga de Cuba, mas depois teve de barrar a entrada dos refugiados em seu território. Para Villa, a estabilidade do regime e a paz interna de Cuba dependem menos de fora, quer dos exilados, quer do bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos, do que da legitimidade interna, isto é, do apoio popular.

Eleições – Relativamente ao que poderá mudar nas relações entre Cuba e os Estados Unidos depois das eleições americanas deste ano, os dois professores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP têm opiniões levemente divergentes. Villa acha que os virtuais candidatos à Presidência da República, Barack Obama e Hillary Clinton (democratas) e John McCain (republicano) não apresentaram claramente seus programas para as Américas e muito menos para Cuba, por medo de perder votos. Daí porque será necessário esperar que o eleito tome posse no cargo e diga a que veio. Para Itaussu, não é bem assim. Entende que, se o republicano for eleito, manterá integralmente a política de George W. Bush, inclusive o bloqueio econômico, mas se Obama ou Hillary vencer a perspectiva é muito melhor. Obama já declarou estar disposto a dialogar incondicionalmente e Hillary representa uma tradição democrata aberta à negociação. De qualquer modo, Itaussu considera que na era Bush os Estados Unidos não são exemplo de boa democracia: aprovaram lei que legitima a tortura e mantém campos de concentração, um deles “logo em Cuba” (Guantánamo).

Ajuda para Cuba quem deveria prestar, na opinião de Itaussu, é o Brasil, que tem liderança política e moral na América Latina, vem praticando reformas com bons resultados sociais, tem domínio de tecnologia avançada e abriu linhas internacionais de crédito inclusive para Cuba.

Talvez se estranhe ouvir o professor da USP falar de reformas em Cuba, mas elas são possíveis e estão previstas no artigo 137 da Constituição. É certo que qualquer mudança, para ser aprovada, exige apoio de dois terços do Parlamento, seguido de referendo nacional. O socialismo não é incompatível com práticas só aparentemente exclusivas do capitalismo, a exemplo da posse de pequena e média propriedade. Nem a riqueza é vetada. Segundo Villa, o regime cubano permite e até estimula a entrada de dólares, sem desprezar os mandados pelos exilados a seus parentes na ilha. A única coisa que o governo cubano faz questão de saber é a origem do dinheiro. Quem ontem tinha uma bicicleta e hoje tem uma moto será chamado para explicar de onde tirou o dinheiro para melhorar seu meio de transporte.

 
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