Basta caminhar por São Paulo para perceber que a história da cidade, literalmente, está derretendo. As placas de bronze com as informações sobre os monumentos e os baixos-relevos que adornam as bases das estátuas vêm desaparecendo. Nos últimos cinco anos, várias obras foram roubadas ou danificados, como as placas dos monumentos

Foto crédito: Cecília Bastos

que homenageiam Carlos Gomes, de Luigi Brizzolara, na Praça Ramos de Azevedo, Alfredo Maia, de Amadeo Zani, na praça Júlio Prestes, e Bartolomeu Bueno, também de Luigi Brizzolara, no Parque Trianon. Também as lagostas de bronze da fonte da praça Júlio Mesquita foram arrancadas. E até o ídolo Ayrton Senna não conseguiu ficar impune. A bandeira do seu monumento, que reproduz um carro de Fórmula 1 estilizado, criado pela artista Melinda Garcia, foi roubada. Há ainda a famosa espada de D. Pedro, no Parque da Independência, que desapareceu. Enfim, trechos da história da cidade são vendidos nos ferros-velhos, que pagam entre R$ 5,00 e R$ 6,00 o quilo do bronze. Ou, então, vão para colecionadores particulares, que devem pagar, igualmente, um preço irrisório.

Como proteger do vandalismo os bens culturais da cidade e do estado é o desafio dos historiadores, arquitetos, educadores e pesquisadores. Nos últimos anos, o Museu Paulista da USP (o conhecido Museu do Ipiranga), o Museu de Arte Contemporânea (MAC), a Pinacoteca do Estado e o Museu da Imigração, entre outros espaços, vêm desenvolvendo várias ações para divulgar a arte e a história da cidade nas escolas e

Monumentos de São Paulo: nos últimos anos, várias iniciativas, desde ações promovidas por museus até um documentário veiculado pela TV Cultura, buscam conscientizar a sociedade sobre a necessidade de preservar a memória cultural

entre a população em geral.

Desde fevereiro, a TV Cultura também lançou uma campanha especial em prol dos bens culturais. Está exibindo, entre os intervalos de sua programação, spots de um minuto de duração do documentário Monumentos de São Paulo, dirigido por José Antonio Barros Freire. Projeto contemplado pelo Programa de Ação Cultural (PAC) da Secretaria Estadual da Cultura, ele revela a história do desenvolvimento de São Paulo através dos monumentos e museus.

Também o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) lançou campanha para resgatar mais de 900 peças históricas desaparecidas, a maioria de igrejas de todo o país. “Essa campanha faz parte de um conjunto de ações desenvolvidas para recuperar e devolver essas obras aos locais de origem. São peças que foram extraviadas, furtadas ou roubadas”, explica Luiz Fernando de Almeida, presidente do Iphan. Cerca de 96% dessas obras são religiosas e 533 se encontravam em igrejas do Rio de Janeiro. “Essas imagens têm valor no mercado, que não supera o valor patrimonial. Mais do que o roubo do objeto, é o roubo da alma histórica do país.”

Ação nas escolas – Ensinar as crianças a se apaixonar pela cidade, observando a sua paisagem e conhecendo a sua história. Com essa expectativa, o documentarista Barros Freire pretende, a partir deste mês, iniciar a divulgação do filme Monumentos de São Paulo em todas as escolas públicas e privadas. Pretende, ainda, dispor o filme no You Tube, o popular site de vídeos da internet. “Desse jeito, fica mais fácil para as pessoas copiarem”, diz. “A meta é que esse filme possa ser utilizado como ferramenta na educação patrimonial e consciência da cidadania.”

Foto crédito: Bruno GiovannettiBarros Freire fez uma seleção cuidadosa dos monumentos tombados pelo Condephaat. Escolheu exatamente aqueles que despertam o encanto do público pela arquitetura e história. “Eu procuro motivar a população a visitar os museus, valorizando a auto-estima através do conhecimento e atuação dos nossos antepassados na construção de São Paulo e do país.”

O projeto foi patrocinado pelas lojas Cem. “É através da existência permanente do patrimônio cultural e da relação com a comunidade que estabelecemos valores e a preservação da identidade cultural da população”, observa o documentarista. “Os monumentos que apresentamos mostram a diversidade cultural presente na formação e desenvolvimento da região sudeste.”

As primeiras cenas apresentam uma vista aérea da cidade. Depois, o filme foca os monumentos iluminados. Com a sonorização de Luciano Wind e edição de imagens de Ciro Bueno, o espectador entra na cidade por um respeitoso portal: a Hospedaria dos Imigrantes (atual Memorial do Imigrante), um marco na história de São Paulo. “A Hospedaria dos Imigrantes foi fundada em 1886. Foi criada para abrigar os imigrantes que desembarcavam no porto de Santos”, conta a diretora Ana Maria da Costa Leitão Vieira. “Eles chegavam de trem na estação que ficava ao lado da hospedaria. Passaram por aqui, até 1978, cerca de 70 nacionalidades e etnias, e os imigrantes foram todos registrados em livros e listagens.”

Ana Maria lembra que não é possível construir uma identidade sem história. “Através do Memorial do Imigrante é possível observar o papel do imigrante na construção da sociedade moderna.”

Entre os registros dos japoneses que desembarcaram no navio Santos Maru, no dia 28 de dezembro de 1936, está o nome de Kokei Uehara, que nasceu em Naha. “Quando eu subi no navio, íamos a Kobe, onde todos os imigrantes iriam se reunir. Fiquei desesperado. Vi meus pais lá embaixo, quis descer, mas me impediram. Vi meus pais correndo pelo cais até nos perder de vista. Essa foi a última vez que vi meu pai. Aí veio a guerra e ele morreu em Okinawa.”

Foto crédito: Bruno GiovannettiA passagem pelas lavouras de café está no memorial desse imigrante que hoje é Professor Emérito da Escola Politécnica da USP. Uma história que foi registrada no documentário. “É muito importante que as pessoas conheçam a história da cidade na voz dos imigrantes. Eles construíram a cidade com os seus sonhos e esperança.”

Sonhos e esperança – Com essas histórias, o cineasta pretende sensibilizar o público, especialmente as crianças. O filme, no entanto, alia a história à dinâmica dos monumentos que interagem na cidade, fazendo parte do cotidiano da população. Apresenta a Pinacoteca do Estado, o mais antigo museu de arte do Brasil. “Este prédio, assinado por Ramos de Azevedo, está no coração e na mente dos paulistanos”, diz o diretor Marcelo Araújo. “Temos desenvolvido uma programação voltada para a inclusão e a reafirmação da cidadania. É um trabalho que inclui as escolas e o público em geral.” O acervo tem cerca de 4 mil peças e entre os artistas estão Almeida Júnior, Pedro Alexandrino, Oscar Pereira da Silva, Victor Brecheret, Cândido Portinari, Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti.

Interessante também é o destaque para a Estação Pinacoteca, ao lado da Estação Júlio Prestes. O prédio, inaugurado em 1914, foi ocupado pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), durante a ditadura militar. Hoje, o espaço apresenta exposições temporárias e abriga um importante acervo da Fundação José e Paulina Nemirovsky, que reúne obras dos mestres do Modernismo. No subsolo há quatro celas remanescentes que documentam um período sombrio da nossa história.

O documentário apresenta ainda a Estação Júlio Prestes com a Sala São Paulo, o Museu do Café, no porto de Santos, o Museu da Língua Portuguesa, o Museu Paulista e a Igreja São Francisco. Um roteiro com imagens que detalham a arquitetura e o acervo.


O documentarista Barros Freire: "É através da existência permanente do patrimônio cultural e da relação com a comunidade que estabelecemos valores e a preservação da identidade cultural da população

Nessa seleção de monumentos, Barros Freire traz o Parque Rocha Moutonnée, com 43 mil metros quadrados de área, o primeiro parque ecológico e geo-histórico do continente. A construção desse parque e o seu tombamento pelo Condephaat, em 1990, têm a participação de Antonio Carlos Rocha Campos, professor do Instituto de Geociências da USP. “Vi esse monumento geológico pela primeira vez quando ainda era estudante, em 1957”, conta. “Como diz Mário de Andrade, entrou um trapézio na minha cabeça. A rocha Moutonnée, em Salto, é um granito róseo que comprova a glaciação na era paleozóica. Tem cerca de 500 milhões de anos. Na época, já estava sendo depredada, daí iniciamos um trabalho para que pudesse ser protegida com a criação de um parque. Dei uma entrevista para o jornalista Geraldo Garcia sobre a importância dessa rocha. Anos depois, esse jornalista se tornou secretário municipal da Cultura e começamos a trabalhar para a fundação do parque. Hoje, ele é o prefeito de Salto.”

 

Uma luta de todos

“Um patrimônio caracteriza a nossa história, a nossa cultura e também a nossa identidade”, observa o historiador Benedito Lima de Toledo, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, justificando a necessidade de preservar o patrimônio histórico e cultural de São Paulo. “Quando derrubamos as referências da nossa história, a grande perda não está nos valores materiais, mas nos valores humanos. Perdemos a nossa identidade.”

O historiador explica que a identidade está nas coisas simples do cotidiano, como voltar para casa, observar a rua ou desfrutar da praça do seu bairro. “A melhor forma de preservar é o apreço. Só que será que o sujeito que constrói um prédio tem a consciência de que pode tirar o sol da casa, da praça, congestionar o trânsito?”

Para Toledo, a preservação passa pelo uso do solo. “A prefeitura não considera esse uso do solo como cultura. O zoneamento é muito permissivo. Os especuladores constroem, ficam com o lucro e a população arca com o prejuízo.” Na avaliação do historiador, a cidadania que garante a preservação dos monumentos e da história da cidade tem que estar na consciência de quem planeja e constrói. “É importante que o especulador tenha responsabilidade com a preservação das praças, dos monumentos, do entorno.”

Maria Lucia Bressan Pinheiro, coordenadora do Centro de Preservação Cultural (CPC) da USP, lembra que a falta de consciência com o patrimônio público é uma questão cultural. “Esse descaso talvez se deva à própria origem. Há 508 anos, o Brasil era um país para ser construído. Até o século 19, São Paulo era muito pequena e em 200 anos a sua transformação foi muito acelerada. A prioridade não foi preservar, foi construir. Essa conscientização diante da importância histórica dos nossos bens culturais é muito recente. O Condephaat foi criado em 1967 e só em meados de 1980 a mídia e a sociedade começaram a se empenhar pela preservação dos bens culturais.”

O próprio CPC tem uma história recente. Foi criado em outubro de 2002 e as suas ações são fundamentadas em estudos que, por meio do estabelecimento de critérios para conservação, restauração e uso, buscam propiciar reflexões sobre as temáticas do patrimônio cultural. “Temos na USP vários edifícios tombados, como o da FAU Maranhão, as faculdades de Medicina de Ribeirão Preto e de São Paulo e os campi de Piracicaba e de Pirassununga, além da Casa de Dona Yayá, sede do CPC.”

Para Bruno Padovano, coordenador científico do Núcleo de Pesquisa em Tecnologia da Arquitetura e Urbanismo (Nutal) da USP, a preservação dos bens culturais é uma questão de todos. “Diante dos problemas que a cidade enfrenta, como transporte, moradia e saneamento básico, a preservação dos bens culturais acaba ficando em segundo plano. Daí ser muito importante estabelecer uma parceria com a iniciativa privada de forma que o patrimônio histórico possa ser preservado através de novos usos que possam lhe garantir sustentabilidade. Um exemplo disso é a Casa das Rosas, preservada pela iniciativa privada.”

 
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