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próprios dela”. Discurso eurocentrista que condenava os africanos e seu filhos à condição de objetos, e não sujeitos da história.
Tais distorções ajudaram a fixar noções desgastadas da identidade “negra”, relacionadas a “aptidões naturais”, como lúdico, esporte, música e dança, mas nunca referidas a atividades relacionadas à atividade intelectual, científica,econômica ou técnica. Desse modo, a criança negra, afro-descendente, tende a não identificar nessas áreas possibilidade de atuação profissional, reproduzindo a imagem excludente que recebe na versão da história que obtém na escola. Nessa visão simplista, o desenvolvimento político, social e econômico do continente nunca é apresentado. As tecnologias de mineração e metalurgia, a domesticação dos animais e a agricultura – conquistas milenares da África – nunca são citadas, menos ainda os conhecimentos de medicina, matemática, astronomia e engenharia.
No livro Sankofa: significado e intenção (Eduerj, 1996), a pesquisadora Elisa Nascimento mostra a ilustração de uma cesariana descrita por um médico inglês que esteve na África em 1879 e publicou artigo sobre o assunto. Isso demonstra que a população da região tinha, sim, conhecimentos, conceitos e técnicas que envolvem cirurgias, anestesia e cauterização, entre outras.
Ainda nessa área, podemos acrescentar que, no antigo Egito e no Mali, era conhecida a técnica de remoção de catarata ocular através de cirurgia. Há referências a um clínico egípcio, Imhotep, que, 3 mil anos antes de Cristo, praticava grande parte das técnicas básicas de medicina, conhecendo mesmo a vacinação e a farmacologia.
Outra área do saber que se pode citar é o da astronomia. Em 1978, uma equipe da Universidade Estadual de Michigan, Estados Unidos, encontrou no Quênia, perto do Lago Turkana, ruínas de um observatório astronômico. No primeiro milênio antes de Cristo, na África Oriental, foi desenvolvido um sistema de calendário complexo e preciso, apoiado em cálculos astronômicos.
Mondlane pregava que a educação deveria servir para esclarecer o povo sobre a exploração de Portugal, que controlava as riquezas do país e não satisfaziam às necessidades básicas dos verdadeiros donos da terra
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Bastante conhecido é o avanço dos dogon, do Mali, nessa área. Os dogon, vivendo perto de Timbuktu, antiga capital universitária do reino do Mali, conheciam o sistema solar, a Via Láctea com sua estrutura espiralada, as luas de Júpiter e até mesmo os anéis de Saturno. Está preservado hoje um desenho feito pelos dogon, mostrando a órbita de Sino B em torno de Sírio.
No que se refere á metalurgia, muitos são os exemplos. Os haya, habitantes de uma região da Tanzânia, perto do lago Vitória, há mais de 2 mil anos, produziam aço em fornos que atingiam temperaturas de 200 a 400 graus Celsius. Os fornos europeus só conseguiram tais temperaturas no século 19.
Na tecnologia ligada à engenharia, há as ruínas de Monomatapa, cidade-estado localizada no antigo reino de Zimbábue. A construção dessa capital pode ser considerada como verdadeira façanha de engenharia: o muro que circundava a cidade, de 10 mil habitantes, tinha 250 metros de extensão e 15 mil toneladas de granito, com dois metros de espessura. Cada metro continha 4.500 blocos de granito. A colocação das pedras, uma em cima da outra, sem cimento, é semelhante à técnica usada nos sítios históricos de Cuzco e Macchu Picchu, no Peru.
Na matemática, as referências são várias, como as pirâmides egípcias, cuja construção exigiu – 2.700 anos antes de Cristo – conhecimentos de matemática, geometria e engenharia capazes de projetar ângulos com 0,07º. São apenas alguns exemplos que demonstram o desenvolvimento alcançado pelos africanos em diferentes áreas do saber.
Muitos fatores contribuíram para a manutenção da imagem da África como um continente de bárbaros e selvagens. Entre eles, a destruição dos centros civilizatórios onde ocorria o desenvolvimento cultural e tecnológico, o roubo puro e simples dos bens culturais, os incêndios e saques – como os que destruíram a biblioteca de Alexandria, por exemplo – e o tipo perecível de material em que eram feitos os registros científicos, como o papiro.
Contudo, na concepção popular e no imaginário da nossa população, a visão distorcida, jocosa e preconceituosa ainda permanece bastante forte. Precisamos conhecer a historia africana antes, durante e depois das invasões européias.
Herói moçambicano – Para este artigo, destacamos Eduardo Chivambo Mondlane, símbolo do nacionalismo moçambicano. Ele nasceu em Khambani, no distrito de Gaza, Moçambique, em 20 de junho de 1920, e faleceu em 3 de fevereiro de 1969, quando foi assassinado por uma encomenda-bomba, provavelmente preparada pela polícia portuguesa. Nesse dia é comemorado o Dia dos Heróis Moçambicanos e, sem dúvida, Modlane é um deles, na medida em que foi um dos fundadores da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), por meio da qual lutou pelos fim dos laços coloniais entre Moçambique e Portugal.
Mondlane: a luta continua
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Mondlane era um homem chegado às letras. Gostava de escrever e, por isso, fez várias autobiografias, cada qual de acordo com o período que vivia e levando em consideração seus potenciais leitores do momento. Escreveu também vários panfletos, documentos e textos para a Frelimo. Interessou-se, ainda moço, em aprender a língua portuguesa porque, seguindo os conselhos de sua mãe, ao dominar esse instrumento poderia descobrir os mistérios do colonizador.
Estudou em diferentes escolas no seu país e no exterior, como na África do Sul e em Portugal – onde foi terrivelmente perseguido, do ponto de vista político, como os demais estudantes africanos que ali estavam nos anos 1950. Nos Estados Unidos, titulou-se doutor em Sociologia e Antropologia.
Foi também nas terras americanas que Eduardo Mondlane se casou e, nesse processo, pôde conhecer um pouco mais sobre as relações sociais e o preconceito, já que a família de sua esposa, Janet, foi contrária à união, por diferentes motivos.
Mondlane trabalhou para a Organização das Nações Unidas (ONU) de 1957 a 1961, no âmbito dos territórios que viviam sob a tutela dessa organização. Em seguida, assumiu o cargo de professor de Sociologia na Syracuse University, em Nova York.
Voltou para Moçambique para concluir uma profecia que sua mãe lhe comunicara quando era ainda criança. Essa mulher escreveu a história que hoje apresentamos ao leitor: a história de um homem que foi escolhido, pela sua ancestralidade, para ser fiel ao povo e conduzi-lo na luta pela liberdade, pois ele era um chitlango, filho do chefe.
Mondlane era filho de um chefe tradicional, Nwadjahane Mussengane Mondlane, e da sua terceira esposa, Nwamafohlo Nbembhele. Seus pais não sabiam ler nem escrever. Cultivavam a terra e criavam gado. Eram pessoas da velha África, crentes inabaláveis na religião tradicional do sul do continente. Teve 14 irmãos. O pai faleceu quando ele tinha dois anos e sua mãe, quando tinha 13 anos.
Estudou na missão presbiteriana suíça próxima de Manjacaze, onde nasceu, e finalizou os estudos secundários numa escola da mesma igreja no Transval, na África do Sul. Ainda em Moçambique, em 1936, com a ajuda do reverendo Charles Perrier, trabalhou como empregado doméstico, varrendo quintal e equipamentos do hospital da missão suíça em Maputo, à época ainda chamada de Lourenço Marques.
Passou rapidamente pela Universidade de Lisboa, já que sofria discriminação por ser negro, sem estatuto de “assimilado" – o africano que, por ter estudado e adquirido hábitos do europeu, recebe um documento de identidade em que se observa o status de assimilado pelo governo colonial, e por isso pode usufruir de alguns privilégios, ainda que mínimos. Com auxílio do governo suíço, fez seus estudos superiores nos Estados Unidos: a graduação, na Universidade de Oberlin, em Ohio, o mestrado, em Northwestern, e o doutorado em Sociologia e Antropologia, na Universidade de Harvard, onde pesquisou sobre as políticas de libertação nos países africanos.
Maputo, em Moçambique, onde fica a Universidade Eduardo Mondlane
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Ainda nos Estados Unidos, encontrou aquela que seria sua esposa: uma moça que freqüentava a mesma igreja que ele e que defendia a justiça entre as pessoas e os povos da perspectiva apolítica. Janet Mondlane tinha, na época, 22 anos e ele, 36 anos. Interessava-se pela África e, desde os 9 anos, conforme ela relata, o seu sonho era ir para esse continente e trabalhar como médica com os menos desfavorecidos.
Uma das diferenças entre o casal não aceitas pela família de Janet, é que ela era branca e pertencia à alta classe média americana. Seu pai era engenheiro mecânico. Eduardo Mondlane era negro e vinha de uma família polígama da zona rural de Moçambique. A família de Jane mobilizou todas as pessoas possíveis para que os dois desistissem da idéia de se unir: amigos e autoridades da igreja, colegas e professores de Mondlane, dentre outros. Porém, nada fez o casal mudar de rumo. Mondlane e Janet tiveram três filhos: Eduardo Chivambo Jr., Jannifer Chude e Nyeleti Brooke.
Depois de seis anos de casamento, o professor decidiu deixar seu trabalho na Universidade de Syracuse e retornar à África, para organizar a liberação de Moçambique, ao lado de Janet, que se envolveu profundamente nessa luta. Em 1961, visitou Moçambique e, por meio de diferentes contatos com nacionalistas, concluiu que as condições necessárias para a libertação de Portugal estavam postas. A hora havia chegado. Mondlane não viu seu país libertado dos portugueses, pois em 3 de fevereiro de 1969, com 48 anos, foi morto por uma bomba.
Acesso à escola – Durante o período colonial, na África, os brancos tinham acesso ao ensino. Os jovens e crianças negros, para estudar, tinham de ser assimilados. Ou seja, deveriam pertencer a famílias que comprovadamente tinham hábitos “civilizados”, sabiam a língua portuguesa e mostravam “bom comportamento” – algo em torno de 0,3% da população. Aos demais, 99,7%, estava vedado o acesso às escolas.
Nos países africanos de língua portuguesa, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Moçambique o combate ao analfabetismo teve início durante a luta armada de libertação nacional. Amílcar Cabral, líder da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, escreveu sobre o assunto: “A alfabetização, para nós, não é apenas o aprendizado da técnica de ler e escrever, mas sim um instrumento de tomada de consciência, pelo alfabetizando, da própria realidade em que vive e instrumento de mobilização para a busca coletiva de soluções para os problemas que essa mesma realidade apresenta” .
Nas zonas libertadas do colonialismo, teve início a tarefa educativa. Elas receberam apoio do educador Paulo Freire e do Instituto de Ação Cultural (Idac), criando os círculos de cultura, onde os alfabetizandos buscam, coletivamente, as soluções possíveis para a transformação dos problemas locais de saúde, água/esgoto e escoamento da produção, dentre outros. Essas ações educativas continuaram no período pós-independência e se estendem até hoje.
A mais importante universidade de Moçambique, em Maputo, leva o nome de Eduardo Mondlane, na medida em que Mondlane, por meio de diversos documentos – textos, panfletos e autobiografias – apresenta a sua concepção acerca da educação, intimamente ligada à idéia de transformação da sociedade e da formação dos homens e mulheres necessários para a construção desta.
A educação, para Mondlane, poderia contribuir para a difusão do quanto a colonização portuguesa tinha sido nefasta para Moçambique. Para ele, o povo de Moçambique tinha deixado de produzir para si próprio, tinha sido reduzido à escravidão e com sua força de trabalho enriquecia a burguesia portuguesa (ligada a outras burguesias). Moçambique teve suas riquezas naturais controladas e exploradas por invasores que não satisfaziam as necessidades dos verdadeiros donos da terra.
Além desse aspecto, Mondlane propunha, por meio do processo educativo, o resgate às raízes africanas, ou seja, a consciência de pertencer à família lingüística banto, caracterizada pela mesma forma gramatical, mesma origem das palavras, mesma estrutura de frases e períodos. Ou seja, para ele, as diferentes tribos ou grupos étnicos que lutavam entre si, na verdade, tinham aspectos culturais semelhantes, tais como a importância atribuída às redes de parentesco, locais e sociais, baseadas na reciprocidade, e as trocas econômicas baseadas e sustentadas na responsabilidade social, dentro de uma comunidade claramente definida, fundamentadas na justiça e na eqüidade. Dito de outro modo, a educação contribuiria para a criação da base para a moçambicanidade. Modlane defendia a necessidade da luta armada, na medida em que, tendo em vista a agressividade do invasor, a guerra pela libertação era a única alternativa.
Apesar destes fundamentos, Mondlane não poderia dizer que, hoje, a educação em Moçambique é exercida como prática da liberdade. Há diferenças brutais entre as diversas regiões de Moçambique em termos educacionais e, assim, diferentes oportunidades de estudo.
O atual sistema de educação em Moçambique está organizado em três níveis principais: primário, secundário e universitário. A taxa de analfabetismo, entre os anos 70 e 90, era de 93%. Em 1975, diminuiu para 72% e, em 1980, para 62%, de acordo com o governo moçambicano. De 100 alunos que iniciam a 1ª série, apenas 37 chegam até a 5ª série. Nos níveis mais elevados, a situação é ainda pior. Em relação à distorção idade-série, a proporção de crianças que começam a estudar na idade correta, de 6 anos, é de 43% para os homens e de 35% para as mulheres. Esses dados revelam que o país se encontra em desvantagem relativamente à média regional, e mostram que, apesar de a oportunidade de ingressar no sistema educacional ter aumentado significativamente nos últimos anos, a progressão e permanência escolar ainda é muito baixa, o que, por sua vez, compromete a obtenção dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM).
Há que se ressaltar ainda que, em Moçambique, em 1997, cerca de 15% dos homens e 28% das mulheres de 10 a 14 anos não tinham nenhum grau de escolaridade. E, por força da guerrra civil, da Aids e das minas terrestres, dentre outros fatores, os órfãos de ambos os pais apresentavam taxas de matrícula menores que os não-órfãos. Destaque-se ainda que, sobretudo nas famílias mais pobres, as crianças deixam de freqüentar a escola para complementar o parco orçamento doméstico.
Finalmente, outro aspecto que termina por dificultar a realização da proposta desenhada por Mondlane nos anos 60 é a língua materna da mãe. Em Moçambique, 40% da população fala a língua portuguesa, mas apenas 6,5% a têm como língua materna. Acredita-se que a adoção do português no ensino tem sido desvantajosa para o sistema educacional e é reprodutora da desigualdade social.
Nas primeiras séries do sistema escolar, a língua tem sido um dos fatores que inviabilizam a progressão escolar, porque a maioria das crianças que ingressam na escola pela primeira vez não sabem falar a língua oficial de ensino – no caso, a língua portuguesa –, afirma A. Ngunga (“Línguas nacionais no ensino oficial”, Relatório Nacional de Desenvolvimento Humano de Moçambique, ONU, 2000). O elevado índice de analfabetismo e a baixa freqüência escolar, em parte, são também apontados como conseqüências do fator língua, porque, nas áreas onde a maioria da população não fala português, a escola é percebida como algo fora do ambiente, como uma instituição que veicula valores e conhecimentos em uma língua “estrangeira” e estranho ao meio familiar e comunitário, de acordo com o Ministério da Educação de Moçambique.
Contudo, é importante destacar que existe um discurso contrário à introdução das línguas maternas no sistema de ensino. A justificativa desse discurso se apóia no fato de existirem 19 línguas nacionais no país, de modo que seria difícil incorporá-las ao sistema educacional. Além disso, argumenta-se que, devido a esse elevado número de línguas, a produção de livros e manuais acarretaria elevados custos ao estado.
Muitos estudos sobre a educação em Moçambique revelam que o não- reconhecimento da complexidade cultural e da pluralidade lingüística foi (e ainda é) um equívoco do sistema educacional moçambicano e um dos determinantes dos baixos resultados educacionais. Tal desconhecimento promove um cenário de exclusão da maior parte do povo moçambicano. Situação muito distante daquela idealizada por Mondlane. Desse modo, não saber falar a língua portuguesa é motivo de fracasso escolar quase que automático.
Nesse contexto, o próprio conceito de analfabetismo precisa ser repensado. Na maior parte das vezes, chama-se de analfabeto aquele que não lê e escreve em sua própria língua, a materna. Porém, não se pode falar que alguém é analfabeto em língua cujo oralidade não é dominada pelo mesmo. Nesse caso, a situação educacional moçambicana poderia ser repensada à luz das bases do pensamento de Mondlane: o que ensinar para que a pobreza, a submissão e a (neo)colonização possam ser evitadas? E como ensinar em Moçambique tendo em vista a característica oral da sociedade? Até quando o fracasso escolar será “privilégio” daqueles que não têm como língua materna o português? Em suma, como fazer valer as considerações lingüísticas apontadas por Mondlane acerca do banto em relação à opção feita pela língua portuguesa como língua oficial no século 21?
Em nossa opinião, não seria o caso de difundir amplamente a língua portuguesa em sua oralidade, para que depois possamos pensar acerca da escrita da mesma? Como dizia Mondlane: a luta continua!
Dilma de Melo da Silva é professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, autora de Por entre as dórcades encantadas – Os bijagó da Guiné Bissau (Terceira Margem) e integrante do convênio entre a ECA e a Universidade Eduardo Mondlane, de Moçambique.
Nilce da Silva é professora da Faculdade de Educação da USP, coordenadora do Projeto Acolhendo (www.projetoacolhendo.org) e editora responsável pelo periódico eletrônico Acolhendo a Alfabetização nos Países de Língua Portuguesa (www.mocambras.org ou www.acoalfaplp.org).
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