Moradores de rua, antes vistos pela sociedade como "vagabundos", são designados atualmente como "população em situação de rua". Segundo o antropólogo Daniel De Lucca, o estado não podia mais usar o argumento da vontade própria para caracterizar essa situação. "Foi um processo difícil, em que gente que vivia no silêncio e era

invisível, inumerável e inominável, passou a ganhar voz, visibilidade pública, número e nome próprio: 'população de rua'", descreve, lembrando que a partir de então "surge um desafio a ser enfrentado, um alvo de políticas que se configura como questão social legítima".
Em sua dissertação de mestrado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, De Lucca estudou a trajetória histórica da consolidação do

A série de políticas públicas em favor da população de rua fez de São Paulo a maior rede institucional de proteção e apoio a essa parcela da sociedade no Brasil, segundo pesquisa

termo “população de rua” e as ações governamentais de implementação de albergues na cidade de São Paulo. O trabalho tem orientação do professor Heitor Frúgoli Júnior.

De acordo com o pesquisador, os moradores das ruas dos centros urbanos foram nomeados como “população de rua” na época da redemocratização no Brasil, entre o fim da década de 1980 e começo da década de 1990. “Até então, eram basicamente considerados vagabundos, mendigos, que estavam na rua porque queriam”, afirma De Lucca. Com o apoio de setores da Igreja Católica e da esquerda, nas décadas de 1970 e 1980, o discurso sobre essas pessoas passa a ser articulado com as denominações “povo da rua” e “sofredores de rua”, as quais se desdobraram posteriormente em “população de rua”, de modo a ganhar aderência no cenário público. 

Entre a cruz e a espada – O estudo aborda qual era o tratamento dado pela sociedade paulistana aos moradores de rua antes da mudança de denominação e significação da problemática. Durante os anos 1970 e 1980 existia um contexto de forte envolvimento político de setores da Igreja Católica, como os teólogos da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Posteriormente, foi criada uma Pastoral específica para esse universo, a Pastoral da Rua.

O antropólogo cita o caso especial das oblatas, freiras da ordem de São Bento que até hoje se dedicam às obras com moradores de rua, ou seja, trabalham em exposição direta às condições precárias de sobrevivência da população de rua. “Elas catavam papelão, cozinhavam com os moradores e chegavam até a dormir na rua”, relata.
Em 1989, Luiza Erundina,  uma assistente social ligada à Igreja Católica, se tornou prefeita de São Paulo pelo Partido dos Trabalhadores (PT). De orientação política à esquerda, a administração incorporou as demandas e metodologias das Comunidades Eclesiais de Base. “O termo ‘população de rua', que tem origem no discurso político-religioso, foi posteriormente assimilado pelas políticas públicas municipais”, explica De Lucca.

Casas abandonadas passaram a ser utilizadas como moradias comunitárias no governo Erundina, que desenvolveu a primeira pesquisa sistemática sobre esse contingente populacional, chegando ao número de 4 mil moradores de rua. Nos governos Paulo Maluf (1993-1996) e Celso Pitta (1997-2000), a política pública teve muitas dificuldades para se estabelecer e, durante a década de 1990, foram feitos seis estudos estatísticos sobre populações de rua na cidade. Seguindo a preocupação e a pressão crescente da sociedade civil organizada, o primeiro ato da gestão Marta Suplicy (2001-2004) foi regulamentar uma lei municipal específica para a população de rua, a qual, de acordo com o pesquisador, os reconhece como “sujeitos sociais, sujeitos de direito”.

De questão a gestão social – Esse processo histórico acabou por fazer de São Paulo a cidade com a maior rede institucional de proteção e apoio à população em situação de rua no Brasil e na América Latina, além de ser a mais antiga e com o maior gasto público. De Lucca aponta problemas e peculiaridades na máquina burocrática que se instalou.

O estado, com pouca capacidade de lidar com essa rede, “terceirizou” a questão social por meio de parcerias com organizações não-governamentais (ONGs), para as quais repassa verbas a fim de cuidar dos albergues, casas de convivência e moradias provisórias, ligadas por um sistema altamente burocratizado de cadastramento eletrônico de usuários e funcionários.

Apesar de a maioria das ONGs parceiras ser religiosa, não há mais “aquele germe da transformação social presente nas décadas passadas”, de acordo com o antropólogo: “A presença do estado e a criação de um sistema albergal, que aumentou sua capacidade de 1.200 para mais de 7 mil usuários, dissipou o caráter político presente no atendimento aos moradores de rua que existia nas décadas passadas”.
O pesquisador dormiu em um albergue municipal sete noites não-consecutivas, num período de dois meses, e entrevistou funcionários e usuários. Ouviu reclamações sobre o escasso financiamento público e a ínfima proporção de assistentes sociais no corpo de funcionários (apenas uma assistente social para cerca de 80 a 100 usuários) e a caracterização do albergue como “campo de concentração semi-aberto”, já que há limite de permanência de seis meses e horário para entrar e sair do pernoite. Há diferenças de condições entre os albergues da cidade e a geração de um “ciclo vicioso” entre os usuários, que migram de albergue em albergue. O trabalho também apresenta uma etnografia, uma espécie de coleta de dados antropológica, de ocupações do espaço público e manifestações políticas dos moradores de rua.

 
PROCURAR POR
NESTA EDIÇÃO
O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[
EXPEDIENTE] [EMAIL]