Às vésperas de completar 20 anos de criação – foi concebido pela Constituição Federal de 1988 –, o Sistema Único de Saúde (SUS) contabiliza conquistas importantes, mas ainda possui deficiências que não lhe permitem alcançar a universalidade e a integralidade sonhadas em seu nascimento. “O SUS é um sistema vitorioso. Num país

Foto crédito: Cecília Bastos

patrimonialista, conservador e reacionário, ele foi aprovado na contramão da história e é a maior vitória recente do povo brasileiro”, avalia Francisco Batista Júnior, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Batista Júnior fez um balanço dos méritos, problemas e desafios do sistema a professores e alunos da USP na aula inaugural do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Saúde Pública (FSP), no dia 10.

“Temos que frisar que o SUS é uma construção importante no país hoje, porque

as forças contrárias a ele são muito grandes”, salienta o diretor da FSP, professor Chester Luiz Galvão Cesar. Embora reconheça que o sistema possui defeitos e problemas que precisam ser sanados, o professor não tem dúvidas em dizer que “seguramente o SUS é um dos instrumentos de diminuição de desigualdades no país”. “Hoje já acumulamos trabalhos que mostram isso. A população extremamente carente consegue, em alguns setores, ter um acesso à saúde que não teria de outra forma”, afirma.

Os números apresentados por Batista Júnior – farmacêutico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, com pós-graduação na Universidade Federal de Pernambuco e que atualmente trabalha num hospital de referência em doenças infecto-contagiosas ligado à Secretaria Estadual da Saúde em Natal – são retratos de um país maltratado por desigualdades e contrastes políticos, econômicos e sociais. O Brasil tem, por exemplo, excelentes políticas de atendimento para doentes de HIV/aids e conseguiu erradicar diversas doenças com as campanhas de vacinação em massa. Ostenta uma média anual de consultas per capita de 2,4, de acordo com dados de 2003 do IBGE, e realizou, naquele mesmo ano, 12,3 milhões de internações. “Não é pouca coisa”, diz o presidente do CNS, ressaltando que 67,6% delas foram totalmente financiadas pelo SUS, contra apenas 24,3% custeadas total ou parcialmente por planos de saúde.

Ao mesmo tempo, estima-se que surjam anualmente cerca de 100 mil novos casos de tuberculose e outros 40 mil de hanseníase – número que deve ser ainda maior, devido a subnotificações e erros no diagnóstico –, enquanto ano a ano cresce a quantidade de pessoas atingidas por moléstias como malária e dengue. “Somos um país que tem casos de tratamento de ponta iguais ou mesmo sem paralelo no mundo, mas ainda sofremos com esses problemas”, aponta Batista Júnior. De acordo com o farmacêutico, para acabar com doenças como a dengue é preciso somar várias ações, que vão da melhoria das condições sanitárias da população – investimento em saneamento público, por exemplo, que atinge não mais do que 77,3% da população urbana e somente 18,2% da rural (dados de 2005) – até educação e combate a anemias por meio de programas como o Saúde da Família.

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“O SUS é a maior vitória recente do povo brasileiro”, definiu o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Francisco Batista Júnior, em palestra na Faculdade de Saúde Pública (acima). “A população extremamente carente consegue, em alguns setores, ter um acesso à saúde que não teria de outra forma”, concorda o diretor da FSP, professor Chester Luiz Galvão Cesar

Debate ideológico – É aí que está um dos cernes do pensamento do presidente do CNS, cuja experiência inclui a militância nos órgãos sindicais dos trabalhadores do setor. Esses contrastes, para Batista Júnior, não se devem a forças imutáveis da natureza, mas têm origem exatamente nas desigualdades sociais, políticas e econômicas do Brasil. A lei 8.080, de 1990 – que regulamentou o SUS –, reconhece essas inter-relações ao determinar que “o dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”.

Batista Júnior faz questão de realçar o que diz o artigo 3º do texto: “A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do país”. O parágrafo único complementa: “Dizem respeito também à saúde as ações que, por forma do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social”.

“Saúde é ideologia, sim. Temos que enfrentar o debate conceitual e ideológico e assumir que o SUS precisa ser abrangente em relação a essas definições”, defende. Durante a realização das etapas municipais e estaduais que prepararam a 13ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em novembro do ano passado, o presidente do CNS diz que foi surpreendido com a qualidade dos debates que apontavam questões como o desenvolvimento sustentável ou o desmatamento como elementos fundamentais para a saúde. Em Cuiabá, por exemplo, a fumaça das queimadas no entorno invade a cidade e causa sérios problemas respiratórios. “As pessoas apontaram a relação direta entre poluição e saúde. Ou seja, nossa população sabe muito bem o que quer para a saúde pública”, considera.

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Segundo o IBGE, em 2003 o Brasil teve 12,3 milhões de internações, 67% delas financiadas pelo SUS: melhoria das condições sanitárias da população e fortalecimento das ações preventivas estão entre os desafios do sistema para os próximos anos

Prevenção – Para Batista Júnior, há um grande trabalho de “setores importantes” nas áreas política e econômica que buscam desqualificar o SUS, inclusive com repercussão praticamente diária na mídia. Entretanto, as pesquisas demonstram que a população tem um grau de satisfação bastante razoável em relação ao atendimento e aos serviços, mas também registram insatisfação em algumas áreas. “Não cometemos o equívoco de afirmar que não há problemas graves de gestão e financiamento”, diz. “Com esse subfinanciamento, o sistema esgotou sua capacidade de atender. É preciso mais dinheiro para reverter os gargalos que temos em decorrência de todo um processo histórico.” A verba federal para a saúde aprovada na votação do orçamento de 2008 ficou em R$ 48,42 bilhões (em 2007, foi de R$ 40,63 bilhões). Em 2006, o gasto total com saúde – somando o setor público (União, estados e municípios) e privado – chegou a R$ 166,45 bilhões.

Um dos grandes problemas do sistema brasileiro, aponta o presidente do CNS, é privilegiar um modelo que está muito mais centrado no atendimento à doença do que na promoção da saúde. Ainda de acordo com números de 2003 do IBGE, 51,9% das pessoas que procuraram os serviços o fizeram por causa de doenças, contra 28,6% para vacinações e atividades preventivas. Batista Júnior cita a falta de cultura de prevenção – por exemplo, para portadores de hipertensão e diabetes –, o que se reflete em outro índice: 43% das pessoas que procuram os serviços de saúde já estão com problemas crônicos, mais caros e difíceis de ser tratados. “Por que não há programas de prevenção, acompanhamento e controle de hipertensão e diabetes para evitar que se tornem crônicos? A quem interessa permitir essa situação?”, pergunta. Para o farmacêutico, essa realidade de “incremento e culto à lógica curativista, hospitalocêntrica, de especialização e de alto custo” aponta para outros problemas graves do sistema: a crescente privatização e terceirização dos serviços, além da precarização das relações de trabalho dos profissionais da saúde.

Foto crédito: Cecília BastosAtenção básica – De acordo com o presidente do CNS, um dos “antídotos” para esses problemas é mudar o modelo de atuação, investindo cada vez mais em prevenção e atenção básica – o que descongestionaria os hospitais, que devem ficar com os procedimentos especializados e de alto custo. Um dos caminhos é aumentar a atuação das equipes de programas como o Saúde da Família, que em 2000 eram 8.600 e subiram para 26 mil em 2006, cobrindo uma população aproximada de 84 milhões de pessoas. Em 2003, o programa realizou 72,8 milhões de consultas, contra 6,9 milhões em 1998. Batista Júnior defende o fortalecimento do setor público estatal, com participação complementar do sistema privado. É preciso reformular a gestão e a gerência dos serviços, sem terceirizar ou privatizar. “Imaginem a gestão da USP terceirizada”, brincou. “Se vocês derem sopa, vai chegar nisso.”

Para o farmacêutico, a experiência dos conselhos de saúde no Brasil – que têm participação dos usuários do sistema – é única no mundo e precisa ser fortalecida, contrapondo-se à visão autoritária e de concentração de poder, na qual o gestor tem dificuldade de aceitar que precisa compartilhar as decisões e prestar contas delas aos maiores interessados. Batista Júnior defende ainda a reestruturação das grades curriculares dos cursos da área da saúde, com a criação de um serviço civil no sistema para os alunos formados nas universidades públicas (veja o texto abaixo) – “para que eles conheçam a realidade do SUS, de repente se apaixonem por ele e fiquem na área pública”, diz.

Outra bandeira é a regulamentação da Emenda Constitucional 29, que tramita no Congresso e estabelece o direcionamento para a saúde de 10% da receita corrente bruta da União, 12% dos estados e 15% dos municípios. “Nosso desafio é a politização do tema da saúde enquanto dever do estado e direito do cidadão, bem como a abrangência do seu conceito e de sua característica intersetorial, em contraposição à lógica do mercado”, afirma Batista Júnior. “Saúde não é comércio, não é mercado.”

 

“Não dá para construir de novo o estado”, diz professor

Para o diretor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, Chester Luiz Galvão Cesar, a Universidade já está olhando para o sistema público de forma diferenciada. “Estão ocorrendo na área de saúde reformas de currículo, adaptando a formação dos profissionais para o SUS. A área médica e a enfermagem já o fizeram, e neste ano a FSP, com a graduação em nutrição, está olhando essa atualização e essa mudança curricular para adaptar o profissional para a rede básica de saúde”, diz. O diretor ressalta também que o SUS foi uma construção coletiva da área da saúde e que a luta política para a criação do sistema “teve uma base muito importante nas universidades”.

O professor Arlindo Philippi Júnior, presidente da Comissão de Pós-Graduação da FSP, afirma que a faculdade “tem trazido uma contribuição significativa para o maior e melhor entendimento das relações epidemiológicas que se estabelecem entre o cidadão, os aspectos ambientais, as doenças e naturalmente a procura por uma melhor condição de saúde”. Para ele, o fato de os programas de pós serem por excelência multidisciplinares e com articulações interdisciplinares, recebendo profissionais das mais diversas origens e de diversas regiões do país, “permite que a discussão mais ampla sobre a saúde seja internalizada nas pesquisas aqui desenvolvidas”. Esse trabalho, salienta, “produz conhecimentos que enfrentam os problemas concretos e trazem soluções que podem ser inovadoras”.

Philippi Júnior concorda que a idéia de participação social nos conselhos de saúde “modifica radicalmente o processo e logicamente cria resistências”. Porém, defende, “seguramente os espaços de participação social têm que ser ampliados e aumentados”.

Com a experiência de quem foi secretário adjunto de Saúde do estado de São Paulo entre 2003 e 2005, o professor Oswaldo Yoshimi Tanaka, livre docente da FSP, aponta algumas divergências em relação ao pensamento de Francisco Batista Júnior. “Acredito no SUS, é um grande avanço, mas está na hora de rever algumas estratégias para tentar realmente sermos mais efetivos, mais equânimes e mais democráticos do que estamos sendo”, diz. Para o professor, o SUS ainda está em processo de construção, e é hora de “enfrentar as contradições geradas pelo sistema”.

A raiz delas, segundo Tanaka, está nas desigualdades do país, o que tem reflexo em serviços como acesso aos medicamentos e transplantes. “Na década de 80, quando entramos num processo mais democrático, estávamos todos na mesma trincheira, falando a mesma língua, e veio a conquista da Constituição. Na hora em que se vai para um processo mais amplo, com real participação, as contradições trazidas por nossas desigualdades sociais aumentam muito.”

Participação – O CNS foi criado em 1937 e reformulado em 1990, com base nas diretrizes do SUS. Os conselhos nacional, estaduais e municipais são definidos como instrumentos do controle social, através dos quais deve se dar a participação dos diversos segmentos da sociedade, ao lado do governo, no acompanhamento e implantação das políticas públicas de saúde. Eles também podem fiscalizar a execução orçamentária e deliberar sobre medidas a serem adotadas pelo poder público. O CNS tem 48 membros titulares e 96 suplentes. Metade dos componentes deve ser de representantes dos usuários. Já a Conferência Nacional de Saúde ocorre a cada quatro anos, antecedida pelas etapas municipais e estaduais.

Para o professor Oswaldo Tanaka, a participação social nos conselhos é um grande avanço no processo democrático, porém é preciso refletir continuamente sobre o seu papel. “O CNS ainda está muito focado na função de fiscalizar o Executivo, e para mim isso não significa formular políticas. Temos que construir as formulações de políticas”, defende. Tanaka diz que a academia pode ser um espaço para isso, uma vez que os conselhos hoje “estão muito partidarizados, e a participação vem sendo muito mais espaço de luta partidária do que de representação social efetiva”.

O professor também lembra que a privatização do sistema já é antiga – “começou na década de 1930, com a criação, por Getúlio Vargas, dos Institutos de Aposentadoria e Pensões”. “Temos um sistema misto e não seremos capazes de fazê-lo estatal. Temos que reconhecer que ambos têm deficiências, mas essa construção de dependência do privado é histórica e faz parte da estrutura do sistema de atenção. Não dá para construir de novo o estado quando ele foi construído dessa maneira”, diz.

Tanaka afirma que o setor público “tem uma legislação de recursos humanos conservadora, paternalista e protecionista do funcionário”, e não acredita que apenas a área pública consiga responder às demandas dos cidadãos “com a eficiência e a responsabilidade necessária para o sistema”.

“Temos que descobrir como melhorar isso para criar uma forma de que os serviços disponíveis sejam cada vez mais efetivos para responder as necessidades da população, com um uso cada vez melhor da verba pública, para que o sistema possa de alguma maneira diminuir as diferenças dadas por uma estrutura social muito desigual no nosso país”, finaliza.

 
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