Verão de 1988.

– João Alexandre, gostaria de convidá-lo para ser o novo presidente da Edusp, a nossa editora – disse, sem rodeios, o então reitor José Goldemberg, um homem reconhecido tanto por suas pesquisas de ponta na área de física nuclear quanto por sua extrema franqueza.

Foto crédito: Cecília Bastos

– Co-editora, o senhor quer dizer. A USP não tem uma editora – respondeu João Alexandre, também sem muitos cuidados formais.

– Mas é exatamente isso que eu quero: transformá-la em uma editora. Quero que a Edusp se torne algo novo, ágil – devolveu Goldemberg.

– Bem, nesse caso, eu aceito o seu convite.

Foi essa conversa, lembrada em Edusp – Um projeto editorial (livro de Plinio Martins Filho e Marcello Rollemberg, publicado pela Ateliê e Imprensa Oficial), que abriu um novo tempo para a Editora da USP (Edusp). O reitor sabia muito bem que o pernambucano João Alexandre Barbosa, professor de Teoria Literária da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, era a pessoa certa. E que a sua paixão e respeito pelos livros (importante lembrar que foi orientando de Antonio Candido no final dos anos 60) transformariam o leitor em um editor capaz de compor um catálogo que, em

pouco tempo, seria uma referência para as editoras universitárias do país. Para esse desafio, João Alexandre contou com a parceria experiente de Plinio Martins Filho, professor de Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, que havia 18 anos trabalhava na Editora Perspectiva.

“A Edusp foi fundada em 1962 e, até aquela tarde de verão de 1988, tinha produzido apenas livros em co-edição”, conta Martins. “Quando o João Alexandre me chamou, ele foi logo avisando que nós tínhamos que transformar a Edusp numa editora universitária. Dar a ela uma face que não tinha. Lembro que olhei para as prateleiras, com 2 mil títulos, e pensei que a Edusp se autofinanciaria com a reedição das melhores obras. Mas, para a nossa surpresa, descobrimos que não tínhamos esse direito. Tivemos de começar o projeto editorial do zero.”

Desafios e perspectivas – O desafio foi o privilégio de Martins. “Uma das coisas mais gritantes é que a Edusp, até aquela época, não publicava teses e isso era muito contraditório. Daqueles 2 mil títulos não havia um só trabalho desenvolvido na Universidade. Eram todos indicações de fora. Se porventura se soubesse que um trabalho era resultado de uma tese, ou seja, uma produção da própria USP, não era aprovado para ser publicado em co-edição.

Foto crédito: Cinzia de AraujoA coerência intelectual de João Alexandre e o conhecimento e criatividade de Plinio Martins delinearam os novos rumos da Edusp. “Decidimos buscar o melhor da produção universitária, mas sempre a partir de uma seleção rigorosa, com pareceres e aprovação de uma comissão editorial”, lembra Martins. “Selecionamos obras, compramos direitos autorais de editoras estrangeiras, traduzimos e passamos a editar nossos próprios livros. Nossa meta era publicar livros que pudessem contribuir para a melhoria do ensino. Dessa forma, abrimos a editora para a comunidade acadêmica. Mudamos a mentalidade vigente, já que o último lugar que um professor procurava para publicar o seu livro era na Editora da USP, o que irritava muito o João Alexandre. A intenção era que a Edusp fosse a primeira a ser procurada quando um professor quisesse publicar o seu trabalho. E isso realmente começou a acontecer.”

A nova proposta editorial foi apresentada em um seminário internacional de editoras universitárias patrocinado pela Edusp. “Esse encontro incluiu a Unicamp, a Unesp e editores de Cambridge, Oxford e da Blackel, que era uma editora universitária particular. A realização desse seminário internacional serviu para mostrar o que era uma editora universitária de verdade. Foi a partir daí que começamos realmente a selecionar os títulos, a desenvolver coleções e a concretizar a proposta de João. Ou seja, uma editora universitária de fato.”

Editora de fato – Quem entra na sala de Plinio Martins, presidente da Edusp desde 1998, logo percebe os méritos de um desafio. A história dos mil livros está enfileirada na estante que ocupa toda a parede da direita. Uma história pontuada por inúmeros prêmios e homenagens de renome nacional e internacional, como os concedidos pela Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), Academia Paulista de História, Printing Industries of America (PIA) e o prêmio Ordem Mérito Cultural do Ministério da Cultura, entre outros. Destaca-se também o Prêmio Jabuti, considerado o mais importante prêmio literário do Brasil. Foi conquistado pela Edusp por 55 vezes, com livros das mais diversas categorias. Os troféus estão expostos na antesala do gabinete da reitora Suely Vilela. “Esses prêmios refletem não só o reconhecimento pela indiscutível qualidade dos livros da Edusp, mas o papel revolucionário que vem desempenhando junto às editoras universitárias brasileiras”, observa Martins.


Anúncios destacam a marca da Edusp: mil títulos em 20 anos de história

À história dos mil livros somam-se outras histórias luminosas, como a do professor João Alexandre Barbosa, presidente da Edusp entre 1988 e 1993, que saboreava a paixão pelos livros com o seu inseparável cachimbo. A sua trajetória está sendo homenageada pela Edusp no livro João Alexandre Barbosa – O leitor insone, organizado por Plinio Martins Filho e Waldecy Tenório.

Tem ainda histórias de autores que dedicaram a sua vida à pesquisa e ao ensino na Universidade, como a da professora Marta Rossetti. Durante 40 anos, Marta, arquiteta, historiadora e ex-diretora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), estudou e catalogou a obra de Anita Malfatti. O resultado desse trabalho foi publicado na edição especial Anita Malfatti – Biografia e estudo da obra. O trabalho foi homenageado no início do ano com o Prêmio Jabuti, na categoria biografia. Porém, foi concedido in memoriam. A professora morreu poucos meses depois do lançamento do livro.

Curiosa também é a história de José Mindlin, 93 anos, presidente da Comissão Editorial da Edusp. O seu “vício” pela leitura, como ele próprio define, está em Uma vida entre livros – Reencontros com o tempo, escrito em 1996, atendendo à sugestão do amigo Antonio Candido.

Preciosidades – Na mesa junto dos sofás, Plinio Martins expõe as preciosidades de suas coleções de arte, clássicos, acadêmica, didática. Observa orgulhoso: “Editar livros é um desafio permanente. Creio que nesses 20 anos quebramos muitos paradigmas do livro universitário. Primeiro, havia aquela idéia de que o livro universitário não vende. Provamos que, se você faz um livro bem feito, tendo qualidade de conteúdo, qualidade estética e qualidade de edição, ele compete de igual para igual com qualquer outro livro no mercado”.


Plinio Martins, José Mindlin e Ivan Teixeira: trabalho em equipe

O professor lembra que a grande novidade no mercado editorial nos últimos 20 anos é a atuação das editoras universitárias. “De resto, o que aconteceu de novo? Que grandes editoras apareceram e sobreviveram? São sempre as mesmas. As pequenas aparecem e desaparecem. Já as editoras universitárias não, elas têm um projeto que vem se ampliando. Vêm ocupando um espaço que não existia, que estava por ser feito. Existem problemas, é claro. Um deles é o da distribuição, ou seja, fazer com que o livro universitário chegue mais facilmente ao leitor. É importante pesquisar e se pautar em outros modelos jurídicos como os das universidades americanas e inglesas.” Plinio Martins aposta em outro desafio: o crescimento cada vez maior da Edusp. “Para tanto, é importante que se tenha a liberdade de utilizar as leis de mercado. Essa possibilidade faria da Edusp uma potência.”

 

Épicos inaugura a coleção Multiclássicos

O milésimo título do catálogo da Edusp, Épicos, inaugura a coleção Multiclássicos, concebida e organizada pelo professor Ivan Teixeira. O lançamento será durante a festa de aniversário da Edusp, nesta terça-feira, dia 25, às 19 horas, no auditório da Fiesp (avenida Paulista, 1.313), em São Paulo.

Épicos apresenta os textos mais representativos desse gênero na literatura brasileira. O primeiro é Prosopopéia, de Bento Teixeira, que narra o início da colonização portuguesa no Brasil. O poema seguinte é O Uraguai, de Basílio da Gama, que satiriza a civilização jesuítica. O mais ambicioso poema do volume é Caramuru, em que Frei José de Santa Rita Durão faz uma síntese poética da história do país. Vila Rica, de Cláudio Manuel da Costa, reconstrói discursos sobre a fundação da cidade na época da mineração.

Em A confederação dos tamoios, Gonçalves de Magalhães elabora um relato heróico sobre a participação dos índios na luta entre católicos e protestantes no Brasil, episódio de que resulta a fundação do Rio de Janeiro. O último poema do volume é I-Juca-Pirama, obra-prima do Romantismo brasileiro, em que Gonçalves Dias compõe um combate imaginário entre timbiras e tupis.

Em entrevista ao Jornal da USP, o professor Ivan Teixeira – docente de Literatura Brasileira na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e na Universidade do Texas, em Austin, nos Estados Unidos – fala sobre as metas da coleção.

JUSP – Na sua avaliação como professor e autor, o que representa essa edição número mil?

Ivan Teixeira – Tanto quanto posso supor, o volume Épicos, que inaugura a série Multiclássicos, simboliza o milésimo título da editora pela sua representatividade acadêmica. Tenho esperança de que o volume não decepcionará, pois, além de possuir uma concepção moderna e funcional, conta com a colaboração de professores de várias universidades. O corpo de colaboradores não se restringe à USP. Envolve também pesquisadores e ensaístas de Campinas, de Minas Gerais, do Paraná, do Rio de Janeiro e da Bahia. Da mesma forma, os clássicos editados não obedecem a um cânone ossificado e previsível. Vão desde Bento Teixeira (Pernambuco, século 16) até Gonçalves Dias (Rio de Janeiro, século 19). Procurando obedecer à tradição integradora da USP, esforcei-me por escolher colaboradores que pudessem alargar os horizontes de leitura desses textos antigos, mas sempre aptos a desencadear novas idéias. 

JUSP – Quais são as grandes metas dessa coleção?

Teixeira – Espero que a coleção Multiclássicos não fuja ao padrão médio das boas publicações acadêmicas. Sua meta principal é ajudar o resgate, a preservação e a circulação de textos que nem sempre seduzem editoras privadas. O primeiro volume reúne seis poemas épicos da tradição, alguns esquecidos ou nunca lidos adequadamente. No Brasil, há inúmeros livros sobre os quais se repetem noções envelhecidas, algumas com séculos de existência. Somente a leitura destemida pode corrigir esse tipo de erro. A introdução geral ao volume, sobre o gênero épico, foi escrita por João Adolfo Hansen. O ensaio de Paulo Franchetti sobre I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias, traz também revelações surpreendentes. Acredito que os estudos específicos sobre os demais poemas produzem igualmente novas perspectivas de leitura.  

JUSP – Como foram escolhidas as obras?

Teixeira – Tal como o primeiro, os demais volumes deverão conter entre três e seis obras, que serão selecionadas pelo gênero literário, e não pelo período histórico a que pertencem. Todas deverão possuir comprovada representatividade cultural. O segundo volume da série está praticamente pronto e se chama Naturalistas. Deverá editar e discutir romances importantes do século 19, alguns ignorados pelas novas gerações. Pode ser que a reedição sirva de estímulo ao debate, promovendo sua inserção atualizada nos dias de hoje. Sérgio Paulo Rouanet, da Academia Brasileira de Letras, e Leopoldo Bernucci, da Universidade da Califórnia, participarão do volume.

JUSP – Quantos volumes integrarão essa coleção e quais serão os próximos temas?

Teixeira – O projeto não prevê número acabado de volumes, mas propõe uma disposição mais ou menos uniforme para todos. O estabelecimento dos textos não seguiu critérios de edição crítica no sentido filológico do termo, mas se baseia em apurado rigor editorial. Haverá estudos que situem as respectivas obras nas questões de seu tempo e na história de sua leitura. Os temas dos volumes serão, principalmente, literatura, história, alegoria moralizante, doutrina poética e política. Para os próximos volumes, a direção da série espera poder contar com sugestão de idéias e de projetos – não só da USP, mas do Brasil e do exterior.

JUSP – Qual a sua expectativa como organizador?

Teixeira – Como agora estou no exterior, não tive oportunidade de ver o primeiro volume acabado. Mas acompanhei todos os passos de sua produção, até o momento de ir para a gráfica. A exemplo dos anteriores, o atual presidente da Edusp, Plinio Martins Filho, possui fina sensibilidade e invulgar sabedoria editorial. Na época em que discutíamos o projeto da Multiclássicos, estabeleceu-se como meta a integração da pesquisa intelectual com a pesquisa em organização da informação impressa. Por isso, mobilizaram-se não só intelectuais de comprovada competência, mas também técnicos em editoração com igual aptidão.

JUSP – Para o senhor, que está lecionando na Universidade do Texas, como é o conceito das editoras das universidades americanas? Como o senhor avalia a trajetória da Edusp?

Teixeira – Minha experiência nos Estados Unidos é pequena, pois este é o quarto semestre que leciono aqui. Mas qualquer pessoa sabe que a função de uma editora universitária é captar, divulgar e preservar a produção intelectual do corpo docente. Não será isso também um estímulo ao debate e à pesquisa? Nesse sentido, a Edusp não difere das editoras americanas, com a diferença de que, aqui, uma universidade não precisa atingir o porte da USP para possuir um bom centro de publicação. Por outro lado, a Edusp, desde que se associou ao curso de Editoração da ECA, tem demonstrado talvez uma criatividade editorial mais evidente. Seus livros são menos padronizados e mais cativantes. Na gestão de Sérgio Miceli, por exemplo, foram criadas coleções destinadas a artistas plásticos brasileiros. Com o projeto de João Alexandre Barbosa e de Plinio Martins Filho, penso que as publicações atingiram um padrão de excelência apreciável em qualquer lugar do mundo. Atenta à importância da função histórica da editora na Universidade, não estranha, pois, que a reitora Suely Vilela esteja concedendo tanto apoio à manutenção e ao desenvolvimento da Edusp.

 

“É uma grande editora”

A seguir, algumas opiniões sobre a trajetória da Edusp.

José Goldemberg, ex-reitor da USP – A ação que tomei em relação à Edusp se enquadrava dentro de uma tentativa geral que fiz de reerguer a USP. Integrei a lista para ser escolhido como reitor da USP com a bandeira de reerguer a USP. Fui o primeiro reitor que veio depois do período autoritário. E reerguer a USP, em todos os sentidos, significava também reerguer a Editora da USP. Eu já havia ficado impressionado, antes de ser reitor, com a Editora da Universidade de Brasília. A UnB possuía uma editora que publicava livros muito interessantes, que não seriam publicados por uma editora puramente comercial. A Edusp se enquadra dentro da orientação geral que tentei dar, de criar órgãos com mais autonomia. Não é que não deva haver, digamos, canais estruturados de administração e de prestação de contas, mas para os institutos funcionarem era preciso dar mais autonomia a eles e também à editora. Naturalmente que eu tive muita sorte por ter escolhido o João Alexandre e ele ter aceitado. Acredito que o desenvolvimento da editora veio junto com esse renascimento todo da USP. O que mais me impressiona é a própria marca alcançada. O fato de ter atingido mil títulos fala por si mesmo. É uma grande editora.

Celso Lafer, professor da Faculdade de Direito – O professor João Alexandre era uma pessoa de grandes qualidades intelectuais, uma liderança intelectual e um professor importante no âmbito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Tinha, pela própria formação, uma concepção do que deveria ser uma editora universitária. Foi ele que fez essa mudança substantiva. Creio que João Alexandre queria ter no seu projeto pessoas de respeitabilidade intelectual que possuíssem uma visão específica da Universidade e da cultura e que não tivessem interesses, vamos dizer assim, materiais naquilo que é a indústria editorial. E foi assim que ele compôs esse grupo. O professor Plinio Martins Filho deu uma contribuição inestimável. Desde aquela época, Plinio se mostrou um excepcional editor, alguém que conhece essa atividade admiravelmente bem. Plinio foi, naquele momento, uma pessoa que ajudou muito João Alexandre a operacionalizar a proposta de uma grande editora universitária. A qualidade do que a editora produziu até agora é indiscutível. A Edusp tem o mérito de possuir um catálogo de primeiríssima categoria. Nesse sentido, ela atinge plenamente as melhores aspirações de uma editora universitária. Quanto à linha editorial e à qualidade do que se faz, eu só tenho os mais entusiasmados elogios.               

José Mindlin, bibliófilo – Estou tão habituado à idéia da Edusp que às vezes tenho a sensação de que ela foi uma das coisas trazidas por Dom João VI, em 1808. Mas na realidade ela foi um dos bons frutos da criação da Universidade. E eu acompanho a vida da Universidade, portanto, também da Edusp, desde a sua fundação, pois entrei na Faculdade de Direito em 1932, dois anos antes da fundação da USP. Se não me engano, eu já fazia parte do conselho editorial da Edusp antes desses 20 anos. E tinha uma amizade pessoal muito grande com João Alexandre Barbosa e era amigo do Goldemberg, quando reitor. Cada edição tinha que ser aprovada pela comissão editorial. O Oswaldo Forattini era assíduo e era quem resolvia a conveniência ou não de edições científicas. Nem o Celso Lafer nem eu tínhamos familiaridade com esse campo. Mas o caráter literário prevaleceu de certo modo. A comissão editorial foi ampliada para poder opinar sobre os vários temas das edições da Edusp. Mas ela sempre foi uma comissão ativa e discutia os pareceres. Normalmente os pareceres eram atendidos. Era para isso, afinal, que eles existiam. Mas não eram necessariamente aprovados de início. A gente discutia os próprios temas dos livros. O objetivo básico era a publicação de obras culturalmente importantes, mas de sucesso comercial duvidoso. Nós considerávamos papel da Universidade publicar essas obras. Havia uma sintonia total da comissão com o João Alexandre.

 
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