Cartas expressando condolências a um funcionário que havia perdido o filho ou com pedidos pessoais a um superior hierárquico, para ajudar em alguns mil-réis nas despesas com aluguel. Ao lado de documentos oficiais como atas, prontuários e boletins acadêmicos, esses testemunhos preciosos escritos à mão em papéis amarelecidos pelo tempo

Foto crédito: Cecília Bastos

contam a história dos 90 anos da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, que remonta à criação do Laboratório de Higiene (ou Hygiene, na grafia da época), em 1918. Esse acervo, entretanto, estava praticamente condenado ao esquecimento – tratado como “arquivo morto” – e se deteriorava nas dependências da FSP.

Foi a partir do final de 2004 que o Projeto Institucional de Revitalização do Arquivo Central Acadêmico e Administrativo da FSP passou a recuperar, organizar e catalogar todo o material. Um dos objetivos da organização do arquivo – no qual se pode detectar, por exemplo, o registro das perseguições a alunos e professores durante a ditadura militar (1964-1985) – é atrair pesquisadores que produzam novos trabalhos a partir do acervo. O resultado já se pode sentir: nesses poucos anos, originaram-se dali quatro teses e uma dissertação. Nos próximos dias, o material deve ser transferido para uma nova sala, próxima à atual, também no subsolo do prédio da faculdade.


O trabalho no arquivo ficou a cargo da professora Maria da Penha Costa Vasconcellos, que divide o mérito com os estagiários que “colocam a mão na massa” – no caso, nos papéis –, pois a faculdade não tem funcionários designados especialmente para a tarefa. Maria da Penha já respondia também pela coordenação do Centro de Memória da Saúde Pública da FSP, herdeiro de iniciativas desenvolvidas a partir da década de 80. “É preciso fazer um apelo às unidades da USP para que não deixem essa história em segundo plano. Todas têm acervos maravilhosos”, diz a professora, de pé na pequena sala do térreo onde sobra pouco espaço para se movimentar em meio a estantes e arquivos que abrigam as cerca de 5 mil imagens do Centro de Memória.

Boa parte dessas nove décadas está registrada em fotografias que, em muitos casos, documentam a prática dos professores e pesquisadores em suas saídas de campo e no trabalho com populações urbanas e rurais dos mais diferentes pontos do Estado. É fácil constatar a importância desse material: “De 1918 até os anos 50 (quando foi fundada a Escola Nacional de Saúde Pública, no Rio de Janeiro), só aqui existia formação sanitária no Brasil”, explica a professora.

“Há documentos sobre a Revolução Constitucionalista de 1932 que sabemos que não existem em outros lugares”, exemplifica. Lá estão, por exemplo, fotos de treinamento de enfermeiras, pois a escola havia sido requisitada para “epidemiologia de guerra” – um exagero, claro, mas que demonstra o quanto a instituição estava imbricada com a vida dos paulistanos. “A prática do sanitarista é pensar a cidade. A cidade é o nosso objeto”, afirma.

Foto crédito: Francisco Emolo
Aula do curso de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública: preocupação com o bem-estar da população em São Paulo e no Brasil

Caos urbano – A criação da FSP é um reflexo disso. O final do século 19 e o início do 20 assistiram ao grande salto populacional, político e econômico que transformaria São Paulo na maior cidade do Brasil. O crescimento desordenado empurrava os empregados das oficinas, ferrovias, fábricas, comércio e serviços públicos a viver amontoados em habitações coletivas, porões, fundos de estábulos e cocheiras sem as mínimas condições de higiene. Nesses locais, debilitados pela ausência de ventilação, iluminação e latrinas, os trabalhadores iam definhando, o que gerava “‘maus’ operários, fracos e corroídos pela ‘tísica’”, registra a professora Maria da Penha no livro Memórias da saúde pública – A fotografia como testemunha. O livro, publicado em 1995, já representa um esforço para a preservação da história, feito pelo então Arquivo Pró-Memória da FSP.

“A situação da cidade, ao encerrar-se a década de 1910, era explosiva e beirava o caos, com a alta generalizada dos aluguéis, da alimentação, dos transportes e, para completar, com o fechamento de fábricas e o não-pagamento de salários, culminando com a greve geral de uma semana, em julho de 1917, que reuniu 70 mil trabalhadores e que se repetiria dois anos depois”, conta o livro. Epidemias como a da febre tifóide, em 1914-15, e da gripe, quatro anos depois, atacaram vastos contingentes da população. “Não é, portanto, mero acaso que instituições com caráter e finalidades diversas tenham sido criadas, em São Paulo, com o objetivo de, cada qual na sua área, estudar, conhecer, identificar e propor soluções para as ‘questões urbanas’”, continua.

Foram criados então o Departamento Estadual do Trabalho, em 1911; a Repartição de Estatística e Arquivo, reorganizada em 1911; a Faculdade de Medicina e Cirurgia, em 1913; o Instituto de Engenharia, em 1917; e finalmente o Instituto de Higiene, em 1918, “para discutir, propagar e implementar novas concepções sobre higiene, saúde, trabalho e educação, com base em dispositivos técnico-racionalizadores e que tiveram ampla penetração na sociedade paulista”, diz a professora no livro.


A Seção de Química da faculdade, em 1923

O Instituto de Higiene é fruto de contrato assinado em 18 de fevereiro de 1918 entre o governo de São Paulo e a Junta Internacional de Saúde da Fundação Rockefeller, e inicialmente funcionou como cadeira da Faculdade de Medicina e Cirurgia. Seu primeiro diretor foi o sanitarista americano Samuel Taylor Darling, substituído em 1921 por Wilson George Smilie. Foi a “primeira instituição dedicada ao ensino da higiene e da saúde pública, idealizada e mantida por convênio direto pela Fundação Rockefeller fora dos Estados Unidos, apenas um ano após a criação da Escola de Higiene e Saúde Pública na Universidade Johns Hopkins, em Baltimore”, conta a professora Maria da Penha. “Tinha início um modelo de ensino, pesquisa e intervenção na área da higiene e da saúde pública, com base na utilização de pressupostos aparentemente neutros e de aplicação imediata e universal.”

Em 1924, o governo paulista assumiu todos os encargos do departamento, que funcionava junto à Faculdade de Medicina, então localizada na rua Brigadeiro Tobias. No ano seguinte, o instituto tornou-se autônomo. Em 1928 foi assinado o contrato para a construção do novo prédio, na avenida Doutor Arnaldo, numa área que concentraria ainda diversos organismos ligados à saúde: a Faculdade de Medicina, o Instituto Adolfo Lutz, o Hospital Emílio Ribas, o Instituto Médico Legal e o Hospital das Clínicas.

Pioneirismo – Desde 1922 o instituto era dirigido por Geraldo Horário de Paula Souza, que ficou no cargo até 1951, ano de sua morte. Para a historiadora Lina Faria, Paula Souza “foi para o Instituto de Higiene de São Paulo o que Arnaldo Vieira de Carvalho foi para a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo e Oswaldo Cruz para o Instituto de Manguinhos”. No artigo “A Casa de Geraldo de Paula Souza: texto e imagem sobre um sanitarista paulista”, Lina diz que o diretor “desempenhou papel fundamental na formulação da política sanitária estadual, adotada a partir de 1925, quando a educação sanitária veio a ser a pedra de toque da política pública em saúde”. Uma das iniciativas do período foi a criação de um centro de saúde-modelo, o primeiro do Brasil, até hoje ativo como campo de estágio e treinamento de profissionais, e que atualmente leva o nome de Paula Souza.


O professor Paula Souza - que desempenhou papel fundamental na política sanitária estadual adotada a partir de 1925

Desde os primeiros anos o ensino foi o propósito fundamental do instituto, que já nos anos 40 se consolidava como centro de excelência, desempenhando um papel importante no desenvolvimento das políticas de saúde pública e da pesquisa laboratorial e na sedimentação de carreiras científicas. Ao lado de Paula Souza, muitos outros nomes marcaram a história da FSP. Entre eles – e só para citar alguns –, estão Borges Vieira, Yaro Gandra e Oswaldo Forattini. Em 1931 o instituto foi reconhecido como Escola de Higiene e Saúde Pública, e sua incorporação à USP se deu em 1938 – a Universidade, recorde-se, havia sido fundada em 1934. A denominação atual é de 1969.

O pioneirismo da FSP em várias áreas é destacado pelo diretor da unidade, professor Chester Luiz Galvão Cesar. A criação de registros públicos de mortalidade e de nascimentos, o uso de fluoretação na água para saúde bucal e a formação em administração hospitalar e engenharia sanitária estão entre elas. “A faculdade é seguramente a mais interdisciplinar na USP”, diz, apontando outra característica importante: 12 unidades têm disciplinas ministradas pela FSP. São aulas não só para cursos em que imediatamente se identificam as correlações da saúde, como Enfermagem, Fonoaudiologia ou Farmácia, mas em outros, como a Escola Politécnica – na área de saneamento – ou no Instituto de Matemática e Estatística (IME). “A estatística tem um papel importante na saúde pública”, diz o professor Chester Cesar. Com essas disciplinas, aponta, a FSP consegue também despertar vocações e atrair alunos para iniciação científica e pós-graduação, sua principal ênfase.

O único curso de graduação da faculdade é o de Nutrição. Os demais são os programas de pós-graduação em Saúde Pública, Nutrição em Saúde Pública e o Mestrado Profissional em Vigilância em Saúde Pública. São mais de cem mestrados e doutorados concluídos anualmente. “Cerca de 40% dos doutores em Saúde Pública do Brasil saem daqui”, diz o diretor. São profissionais que em muitos casos trabalharão na formulação de políticas e órgãos governamentais do setor. Mais recentemente, a FSP tem avançado em parcerias com outras universidades públicas, propiciando que os alunos façam pós-graduação no seu local de origem – casos, por exemplo, de doutorado na Universidade Federal do Ceará e de mestrado e doutorado na Universidade Federal do Acre. “Cumprimos assim um papel importante de qualificar pesquisadores de outras localidades que vão atuar também na formação de novos profissionais”, acredita o diretor.

A FSP tem uma longa história a celebrar, mas está atenta aos desafios do futuro. Para o professor Chester Cesar, a faculdade tem procurado responder a eles com o desenvolvimento de áreas de pesquisa e ensino e incorporação de novas tecnologias. A comemoração dos 90 anos inclui um seminário que vai debatê-los (leia o texto abaixo), na perspectiva de que a saúde não é uma “conquista” isolada, mas está intimamente ligada às condições de alimentação, trabalho, acesso à prevenção e relação com o ambiente (basta pensar nos prejuízos que a poluição causa aos paulistanos), entre outros fatores. “A desigualdade acaba repercutindo nas condições e na qualidade de vida da população”, diz Chester Cesar. “A desigualdade é um dos temas que permeiam a saúde coletiva e representa um dos grandes desafios que temos que enfrentar.”

 

Seminário vai discutir presente e futuro da saúde pública

Os parceiros originais da criação do departamento e da disciplina de Higiene estarão reunidos num evento científico que vai comemorar os 90 anos dessa história. Na semana que vem, a Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP vai sediar o “Seminário Internacional Desafios da Saúde Pública – Passado, presente e futuro”. Representantes da Universidade Johns Hopkins (que formou os primeiros professores para a disciplina), da Fundação Kellogg (que financiou o prédio da biblioteca), da Organização Mundial da Saúde (cuja origem está ligada a formulações e propostas de Geraldo de Paula Souza) e da Escola de Saúde Pública de Harvard vão se juntar a professores de instituições brasileiras para as discussões do seminário. A evocação das origens, expressa na escolha dos convidados, não significa que o olhar dos debates estará voltado para trás. “Não queremos ser saudosistas, mas sim pensar no presente e no futuro da saúde pública”, diz a professora Helena Ribeiro, vice-diretora da FSP e coordenadora do evento.

O tema das mesas demonstra essa opção. A primeira delas vai tratar dos “Avanços científicos em saúde pública”. Em pauta estará, por exemplo, a biologia molecular. Participam dela, entre outros, o doutor James Yager, da Johns Hopkins, e o doutor Francisco Tancredi, diretor regional para a América Latina da Fundação W. K. Kellogg. A segunda vai abordar “Políticas de saúde pública: do local ao global”. “Há uma mudança grande no perfil mundial por conta da globalização e da rapidez com que os processos se desenvolvem. As doenças infecciosas se transmitem muito rapidamente e com isso o cidadão é do município e do mundo”, diz a professora Helena. Um dos convidados dessa mesa é o secretário de Saúde do Estado de São Paulo, Luiz Roberto Barradas Barata.

O terceiro debate será sobre “Pesquisar em saúde pública”. Uma das participantes será a doutora Arachu Castro, da Escola de Medicina de Harvard, que estudou a história de vida de 300 portadores de HIV em Cuba para compreender a introdução do vírus na ilha. A mesa que encerra o seminário é “Temas contemporâneos em saúde pública”. Nela será abordada, por exemplo, a relação entre mudanças climáticas e saúde, entre a organização do trabalho e a saúde do trabalhador (tópico a cargo da professora da FSP Frida Marina Fischer), e entre emoções e saúde, com o professor Marcos Boulos, diretor da Faculdade de Medicina da USP.

A abertura do seminário será no dia 6 de abril, domingo, às 16h, e deve contar com a presença do ministro da Saúde, José Gomes Temporão. As mesas ocorrem a partir das 8h30 da segunda-feira, dia 7 (Dia Mundial da Saúde). O Banco Nossa Caixa e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) dão apoio financeiro ao evento. O seminário ocorre no auditório João Yunes da FSP (av. Doutor Arnaldo, 715). Mais informações no endereço eletrônico da FSP.

 
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