Cem anos depois de aportar no Brasil, o povo japonês ainda intriga. E quanto mais os brasileiros – chamados pelos imigrantes de gaijin (ou “estrangeiros”, numa época em que os estrangeiros eram eles próprios) – se interessam pela cultura, mais estereótipos encontram. Os próprios yonseis (bisnetos dos primeiros imigrantes) se sentem orgulhosos de

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reverenciar o Japão. Entre o pop dos cabelos coloridos e a onda dos mangás (as histórias em quadrinhos que têm sua origem no período Nara, no século 8 depois de Cristo), eles se reúnem na praça da Liberdade, nos shoppings. Andam em grupos e o mais curioso é que se orgulham mais de serem japoneses do que os próprios isseis e nisseis.

São os descendentes não só do país do sol nascente, mas do Japão internacional que entra nas casas através dos eletrodomésticos, de objetos pessoais como relógio e tênis, de carros superpotentes ou nos momentos de lazer, optando pelos inúmeros restaurantes com sushis e sashimis à moda típica, brasileira ou italiana. No entanto, esse status do ser japonês de hoje, no Brasil, passa longe da essência da história e da cultura do povo do sol nascente.

É nesse clima festivo do Centenário da Imigração Japonesa que Célia Sakurai, doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Campinas (Unicamp), lança o livro Os japoneses, pela Editora Contexto. O objetivo é apresentar o Japão a partir de sua história e as práticas culturais que se desenvolveram. A autora, especialista no

Livro aborda as várias faces da milenar cultura japonesa: povo orgulhoso de suas tradições

estudo da imigração japonesa, conta como se formou o feudalismo japonês, resgatando a importância dos samurais. Mostra como aparece o xogum, que, formalmente submisso ao imperador, no entanto impõe o seu poder. Interessante a forma como Célia revela o Japão medieval, com suas tradições e costumes. Discute a ética samurai, a espada, a postura das gueixas. Também registra os japoneses no mundo e o Japão pop, com os Pokémons, Godzilla, Hello Kitty, o estilo zen e a culinária que atravessou o oceano.

O ser e a natureza – A autora abre o livro lembrando a relação do ser japonês com a natureza. “Eles já foram chamados de cúmplices por um observador arguto. Assim, nada melhor do que começar a conhecer os japoneses por sua relação tão próxima com a natureza que os cerca”, diz Célia. “De fato, a natureza tem um espaço muito particular. Suas marcas são evidentes, mesmo num tempo de grandes metrópoles de concreto, asfalto e néon, em inúmeras dimensões de suas vidas: na forma como exploram economicamente as terras ou preservam suas florestas, na religião, na arte, na literatura, na concepção de lazer.”

Célia explica que os ensinamentos confucionistas  entendem a relação íntima com o mundo natural como parte da busca pela harmonia do Universo. “Quando, na segunda metade do século 19, as famílias foram obrigadas a adotar um sobrenome, optaram por alusões à natureza. Há muitos sobrenomes repetidos, como os que começam ou terminam com yama (montanha), mizu (água), kawa (rio), hayashi (bosque), matsu (pinheiro) e sakura (cerejeira).

Ao mesmo tempo em que fala sobre as tradições, as crenças e os costumes que pontuam a história, Célia contextualiza descrevendo o Japão de hoje com a sua urbanização, geografia e os problemas sociais e econômicos. “O Japão tem abundância de águas que descem das montanhas para as planícies antes de desembocar no oceano. Não há rios de grandes extensões, mas cursos d’água estreitos e velozes. Os japoneses apreciam tanto os lagos que se esmeraram em construir lagoas artificiais nos seus jardins. Banhar-se na água quente que brota das rochas vulcânicas é uma das formas preferidas dos japoneses para relaxar.”

A falta de espaço, agravada pela expansão industrial, é um dos problemas apontados pela autora. “Os japoneses do início do século 21 têm diante de si um quadro de perspectivas que destaca os problemas decorrentes da disputa por espaços para o desenvolvimento econômico e demográfico. Desde o início de sua história, a utilização e o domínio dos espaços foram problemáticos. Assim, a geografia teve um papel preponderante no desenrolar da história japonesa. Ela explica muito os processos de ocupação do território e as lutas contínuas pelo domínio das melhores terras.”

O caminho dos deuses – Estudar a pré-história no Japão e desenvolver pesquisas arqueológicas é, segundo Célia Sakurai, muito complicado. “Além dos inúmeros problemas inerentes às dificuldades com o trabalho de campo e as interpretações científicas, os pesquisadores têm que se defrontar com questões políticas e ideológicas profundamente arraigadas na maneira como os japoneses se auto-identificam e tradicionalmente explicam seu passado.”

Foto crédito: Ami MatsushimaDurante muito tempo, as crianças japonesas aprendiam que eram descendentes de Ameratsu, a deusa do sol. “Ela, a deusa-mãe, teria dado origem a toda a linhagem do povo japonês, que descende diretamente desse tronco divino. A mensagem embutida nessa mitologia é a de que os japoneses são diferentes de todo o resto do mundo pela sua origem divina e, mais ainda, que são homogêneos do ponto de vista racial e cultural. Assim, perante si e diante dos outros, todos os japoneses se percebiam como totalmente diferentes.”

Só depois da Segunda Guerra Mundial essa crença começou a ser questionada. “A derrota japonesa em 1945 marca o fim de um ciclo na história do Japão, que teve início em meados do século 19, com as reformas Meiji, quando o país começou a mudar de posição no cenário internacional. Esse ciclo fez com que os japoneses saíssem de seu isolamento e, no contato com outros povos, repensassem não só sua posição no mundo como também sua auto-imagem.”

Célia cita a aparição do imperador Hiroito declarando ser apenas um representante do país perante os japoneses e o mundo, e não uma representação divina. “Essa redefinição do poder real, que em países ocidentais ocorrera há pelo menos dois séculos, no Japão aconteceu de fato em meados do século 19. O pós-guerra, para o Japão, além de ficar marcado pela reconstrução material do país, significou uma revisão completa dos primeiros séculos da história do território japonês e seus habitantes.”


Os japoneses, de Célia Sakurai, Editora Contexto, 368 páginas, R$ 49,90.

Como definir o que é tipicamente japonês é um dos muitos questionamentos que o livro traz. A pesquisadora discorre sobre a dinâmica da cultura e, especialmente, a língua, que é fascinante. “Aos que nasceram ouvindo seus sons, ela se apresenta difícil e misteriosa. Entretanto, revela-se riquíssima aos que se aventuram na epopéia que é o seu aprendizado. A língua é um dos principais elementos da identidade nacional japonesa. Como tantas outras, o japonês é uma língua viva e atual, muda com o tempo e os usos.”

 
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