A realização de uma ampla auditoria de tudo o que ocorreu antes e durante a construção de Itaipu trará contribuições enormes para o fortalecimento das democracias do Brasil e do Paraguai. Há poucos estudos históricos sobre Itaipu e acredito que esse conhecimento fará com que os dois países conheçam

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melhor suas próprias histórias. A afirmação é do professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE) da USP Ildo Sauer. Para o ex-diretor de Gás e Energia da Petrobras, ainda há muitos fatos obscuros na criação da gigante hidrelétrica, entre eles o custo da obra, que ficou três vezes mais alto em relação ao orçamento original, além de acordos que teriam enriquecido um consórcio de empreiteiros.

Na opinião de Sauer, não deve ser um tabu renegociar os termos acordados sobre os preços da energia elétrica estabelecidos no

Tratado de Itaipu, assinado em 1973, que deveriam ser revistos apenas depois de 50 anos, em 2023. “Não pode ser tabu porque o contrato já passou por alterações anteriores. Porém, essa medida teria um cunho político. Serviria, por exemplo, ao fortalecimento de alianças, a fim de que o país vizinho seja um forte aliado em questões de interesse político do Brasil”, afirma.

O debate sobre a renegociação do preço que o Brasil paga ao Paraguai pela energia elétrica gerada em Itaipu voltou à tona com o resultado histórico das eleições presidenciais no país vizinho. No dia 20 de abril, o bispo licenciado Fernando Lugo, eleito novo presidente do país, pôs fim a seis décadas de hegemonia do Partido Colorado. A revisão do Tratado de Itaipu dominou o debate político durante as campanhas dos presidenciáveis e foi também um dos motes da plataforma de Lugo.

Segundo o tratado, o Brasil arcaria com os custos totais da obra através da Eletrobras, que afinal ficou responsável por saldar as dívidas contraídas com credores externos para a construção da hidrelétrica. Em contrapartida, em vez de o Brasil pagar royalties pelo uso parcial das águas paraguaias, ficou estabelecido que Itaipu seria uma empresa binacional, com direito de uso de 50% aos dois países. Com isso, a energia excedente que o Paraguai não consumisse seria vendida ao Brasil para amortizar sua dívida com a obra.

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Lugo, do Paraguai: revisão

O Paraguai utiliza apenas 5% do que tem direito da energia produzida em Itaipu, o que corresponde a 95% da sua demanda interna. O excedente é vendido ao Brasil, a uma taxa que hoje equivale a US$ 45,31/MWh (cerca de R$ 75,00). “Atualmente a energia de Itaipu está mais barata porque de quatro anos para cá houve uma mudança estrutural nesse mercado e a energia nova ficou mais cara em relação a Itaipu. Mas nem sempre foi assim. Nos 20 anos anteriores, a energia de Itaipu sempre foi mais cara. Chegou a ser o dobro do preço da energia produzida por outras fontes brasileiras. Havia uma lei brasileira que obrigava que cada concessionária comprasse uma cota de Itaipu, a fim de que a Eletrobras pudesse arrecadar dinheiro para poder saldar a dívida com os credores”, afirma Sauer.

Além da possibilidade de renegociar os preços acordados no tratado, outra alternativa de resolução do impasse, na opinião de Sauer, seria incentivar um consumo maior de energia por parte do Paraguai. “Isso seria feito com o Brasil incentivando o processo de industrialização do Paraguai, que se beneficiaria com os custos de uma energia barata”, pondera o professor.

Política exterior – O Brasil já manifestou a intenção de abrir o diálogo sobre o tema com o novo presidente paraguaio. À primeira vista, se o governo brasileiro aceitar a revisão de tarifas, pode parecer que a diplomacia está cedendo muito espaço em questões estratégicas e de soberania. Especialmente depois do episódio ocorrido em maio de 2006 com a Bolívia, por exemplo, quando o presidente Evo Morales decidiu nacionalizar a exploração e produção de petróleo e gás e ordenou que seu Exército ocupasse os campos de produção das companhias estrangeiras, entre elas a Petrobras.

Na opinião do professor de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH) João Paulo Cândia Veiga, o fato de aceitar renegociar tarifas não deve ser interpretado como uma ação de ordem técnica contratual ou de mercado, mas essencialmente uma questão política. “Os governos se movem em função da política, e não do direito. Rever as tarifas pode ser relevante para a política externa, diante da postura ideológica adotada pelo atual governo, focada no discurso da justiça social e integração regional”, afirma. 

Por outro lado, diz Veiga, pode existir a interpretação da capitulação, ou seja, de que a atual administração brasileira fica encurralada diante de impasses e outros países talvez queiram “tirar proveito” disso. Por isso é preciso rever os princípios que dão sentido a essa aliança com o Paraguai, lembra Veiga.

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Sauer: possíveis ganhos políticos

“O governo entende que está se aproximando de um parceiro estratégico e exercendo sua liderança. De certa forma, os clamores dos países vizinhos são um pedido para que o Brasil assuma o ônus da sua liderança. Da mesma forma, acontece, por exemplo, com o México e o Canadá em relação aos Estados Unidos”, compara o cientista político.

A professora do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP Janina Onuki julga “adequada” a postura brasileira de negociar o tratado. “O Brasil possui uma diplomacia extremamente competente e a postura brasileira sempre foi de negociação e não de confronto. Na questão da Bolívia também prevaleceu essa postura, até porque foram concessões que o Brasil achou necessária para manter uma política externa que o próprio governo chama de ‘solidária’ e que diz muito sobre a relação que o Brasil mantém com os países mais pobres da região”, afirma a professora.

A questão com a Bolívia, na opinião dos entrevistados, não pode ser comparada em nenhum aspecto com a atual reivindicação do Paraguai. Em primeiro lugar, o contrato com a Bolívia é recente, comparado ao do Paraguai, e, portanto, o contexto de sua assinatura é completamente diferente, ressalta Ildo Sauer, do IEE. “A atitude quixotesca de Morales de colocar tropas nas refinarias foi exagerada, um desespero para demonstração de força. Mas isso em nada prejudicou o acordo com o Brasil. O contrato firmado em 1999 tem sido cumprido rigorosamente, o preço do gás e sua entrega estão sendo cumpridos. Ao contrário do que se pensava, acabou prevalecendo o equilíbrio. O direito do povo boliviano de ter acesso a um benefício maior e de ter mais equilíbrio na exploração de seus recursos foi respeitado”, afirma.

Para Sauer, as refinarias não poderiam ser objeto de controvérsia naquele episódio porque, ao passo que a exploração e a produção de energia rendem contratos bilionários, os negócios com refinarias geram contratos de montantes muito inferiores. “Houve uma grande polêmica por parte da imprensa por não entender bem quais os interesses realmente em jogo. No passado, os espanhóis tiraram a prata da Bolívia. O estanho ficou nas mãos de uma oligarquia boliviana abastada morando em Londres e Nova York. A Lei dos Carburos implantada por Morales veio rever a partilha dos recursos não-renováveis de forma mais justa para o povo boliviano. Nesse contexto, a Petrobras tinha um papel menor, pois há muitos grupos internacionais com investimentos muito mais pesados lá”, afirma.

Sete Quedas – A visão geopolítica do Brasil potência prevalente na década de 1970 norteou a construção de Itaipu e esta seria “impensável” no mundo de hoje, segundo Sauer, tanto por questões ambientais como de turismo, economia e sociedade. Só para citar dois exemplos, o conjunto de cachoeiras conhecido como Sete Quedas, que por muito tempo simbolizou o estado do Paraná, foi engolido pelas águas. Da mesma forma, 8 mil famílias foram desalojadas quando suas propriedades foram invadidas pelo espelho d`água da barragem. As indenizações insuficientes para comprar terras produtivas na proporção que tinham anteriormente obrigaram muitas famílias brasileiras a adquirir posses do lado paraguaio da fronteira, surgindo as comunidades dos chamados “brasiguaios”.

O professor de Geografia Política da FFLCH André Roberto Martins lembra que a lógica da confrontação, e não da integração, com a Argentina dominava o contexto político durante o qual Itaipu foi construída. “Sob o ponto de vista do poder regional, a obra do general Golbery do Couto e Silva foi correta pelos termos da época. Para realizar a usina, a retenção das águas no lado brasileiro prejudicou a capacidade de duas represas argentinas a jusante. Isso foi motivo de longa controvérsia com a Argentina. E depois, com a obra pronta, o Brasil passou a ser visto como liderança. No entanto, hoje, ambos os países lamentam que não tivessem sido previstas reclusas no projeto original, a fim de permitir a navegação e integração entre os países”, analisa Martins.

 
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