Duzentos e noventa e seis anos depois da publicação dos dois primeiros volumes, o Vocabulário portuguez e latino de Raphael Bluteau está, novinho em folha, no site do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, à disposição de historiadores, lingüistas e todo tipo de pesquisadores na área de humanidades. O primeiro dicionário em língua portuguesa

Foto crédito: Cecília Bastos

não sai apenas atualizado na grafia dos verbetes, para facilitar a busca; sai inteirinho, como nos oito volumes originais e nos dois de suplementos, em fac-símile, exatamente como saiu das oficinas do Collegio das Artes da Companhia de Jesus, em Lisboa, em 1712, com todas as licenças necessárias, oferecido e dedicado a El Rey de Portugal D. João V.

Já na capa fica-se sabendo que o dicionário abrange todas, ou quase todas,  as áreas do saber, pois é adjetivado como “aulico, anatomico, architectonico”, até “uranologico, xenophonico e zoologico”,  acompanhado da explicação de que vem “autorizado com exemplos dos melhores escritores portuguezes e latinos”. Ainda na capa está dito que o pioneiro em dicionários portugueses é padre, doutor em teologia, pregador da rainha de Inglaterra, atuando na inquisição de Lisboa. Bluteau descendia de franceses, nasceu em Londres (Inglaterra), estudou na França com os padres jesuítas e viveu em Portugal. Como religioso, pertenceu à Ordem de São Caetano, também conhecida como dos  Teatinos.


Fotografia – A técnica da fotografia adotada pelo IEB na reprodução do dicionário permite que se apreciem, desde o A, “letra elementar portugueza e scientifica”, a arte e o capricho da época na edição de livros, cujas páginas vêm ornadas de iluminuras, capitulares e mais recursos gráficos, pouco usuais nas edições modernas. Mas  por que reeditar hoje e colocar na internet um vocabulário do século 18? A pesquisadora Márcia Moisés Ribeiro, historiadora formada na USP, atualmente vinculada à Biblioteca José Mindlin, que coordena o Projeto Dicionários do IEB, diz que se trata de ferramenta de grande procura por parte de estudiosos, em particular das áreas de letras, história e história da arte.

Segundo ela, não é raro que pesquisadores se deparem com termos que não se encontram em dicionários contemporâneos, mas só existem em obras antigas, raras e de difícil acesso, que  para serem encontradas exigem viagens e deslocamentos muitas vezes cansativos e dispendiosos. Ela mesma já viveu situações parecidas, até mesmo quando em busca de apenas um vocábulo. Também não é difícil observar pessoas vindas de outros estados em busca de obras raras na USP. Além da biblioteca do IEB, outros exemplares do dicionário de Bluteau existem no acervo de Mindlin, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e em mais cinco ou seis lugares.  Por isso mesmo, a pesquisadora acredita que a versão digitalizada e disponibilizada na internet terá muita procura, embora ainda não tenha sido possível avaliar o número de acessos diários, uma vez que o novo serviço do IEB ainda está em fase de teste.

Foto crédito: Cecília Bastos
Márcia: pesquisas facilitadas

A idéia de lançar a obra de Bluteau na internet surgiu quando Márcia tocava outro projeto, o Brasil Ciência, que já objetivava facilitar o acesso a obras raras procuradas por historiadores do pensamento científico no Brasil. Com ajuda da Fapesp, foi então montado um banco de dados, agora com 800 títulos, disponibilizados no site do IEB. Fazendo as contas, a pesquisadora chega à conclusão de que a sua equipe digitalizou 120 obras raras e mais uma centena de documentos manuscritos.

Na continuidade desse trabalho veio o dicionário fac-similar. Antes disso, estudiosos do Rio de Janeiro já haviam feito um CD abrangendo os dez volumes do Vocabulário portuguez e latino, mas o tempo demonstrou que esse sistema não funciona e o CD teve pouca utilidade. Era necessário encontrar um sistema de busca mais racional e prático, além de conseguir superar uma série de outras dificuldades decorrentes da grafia antiga e até da ordem de colocação das palavras no dicionário do século 18.

Primeiro, era imprescindível atualizar a grafia dos verbetes e fazer a correspondência dessas palavras; depois, descobrir uma forma de localizar as palavras que se encontram fora da ordem alfabética. Assim, “Amado” está na letra B, “Mar Negro”, na letra N, e o nosso açúcar se escrevia com dois esses. Uma das técnicas pensadas inicialmente na tentativa de reproduzir a obra para usuários de computador foi escanear todas as páginas, mas logo se percebeu não ser possível, por causa da lombada dos volumes. O jeito foi recorrer à fotografia, página por página. Só as chamadas que possibilitam a confrontação das palavras com grafias diferentes é que foram digitadas. Estes são os números do dicionário de Bluteau: 43.664 verbetes em oito volumes, mais 5 mil verbetes nos dois volumes suplementares. Portanto, no site do IEB a busca pode ser feita tanto pela palavra na grafia antiga como  na atual, e há ainda a opção de procurar pela ordem alfabética.

O trabalho para lançar o dicionário na internet ocupou uma equipe coordenada por Márcia e integrada por um historiador, Aldair Rodrigues, e duas técnicas de informática. Foram um ano e dois meses de trabalho, com apoio financeiro do próprio IEB e da Biblioteca José Mindlin. O dicionário chegou ao fim, mas a digitalização e disponibilização de obras raras na web continua. Nos próximos meses, o tempo da equipe será dedicado a outros dois dicionários antigos, o Diccionario da língua portugueza (1813)  de Antonio Morais Silva e o Dicionário histórico e documental (1899) de Souza Viterbo, além de Tesoro de la lengua guarani (1639) de Antonio Ruiz Monteya.

 
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