Os olhos amendoados, quase oblíquos (mas nada dissimulados, que estes são de Capitu), as maçãs salientes do rosto, marca registrada eslava, cabelos claros e um ar altivo de eterno mistério. Clarice Lispector (1920-1977) nasceu para a escrita – e obras ímpares da literatura brasileira como A hora da estrela, A paixão segundo G.H e A

maçã no escuro provam isso –, mas também nasceu para ser fotografada. Por mais que isso pareça uma contradição, como já foi apontado por alguns analistas, posto que Clarice era muito reservada e muitas vezes – fosse por meio de sua literatura, fosse através de entrevistas – deu a entender que não conseguia encontrar um posicionamento adequado no mundo. Mas isso não a impediu de posar para uma infinidade de fotos e deixar sua imagem registrada pelos inúmeros lugares pelos quais passou. Para muitos, Clarice Lispector era um enorme puzzle, um quebra-cabeças interminável. A se pensar assim, as muitas fotos tiradas dela são peças que ajudam, se não a contar, pelo menos a compor um painel mais amplo da personalidade dessa escritora nascida ucraniana mas com alma e tônus brasileiros – nordestino, poderia se dizer mais acertadamente.

Muitas dessas peças que ajudam a ver e a compreender Clarice por vários ângulos acabam de ser colocadas a público com o lançamento do livro Clarice fotobiografia, uma parceria da Editora da USP (Edusp) com a Imprensa Oficial do Estado. É uma obra de tirar o fôlego. Ao longo de suas quase 700 páginas, o livro organizado pela professora

de Literatura da USP Nádia Battella Gotlib – uma das maiores especialistas em Clarice Lispector no país – apresenta 800 imagens que oferecem um amplo painel cronológico da vida e da obra da autora de Água-viva. E o livro não se ocupa apenas com as fotos de sua biografada – o que já seria muita coisa –, mas apresenta também uma contextualização de época através de imagens históricas, que ajudam o leitor a compreender melhor o período em que cada ação está se desenrolando. Por exemplo: ao falar dos primeiros momentos de vida de Clarice na Ucrânia, Nádia Gotlib vai buscar as fotos referentes à Revolução Russa – que engolfou também o país natal da escritora – para traçar um painel de época que torne mais compreensível, visual e textualmente, a história que se está contando.

Afinal, Clarice foi uma mulher de muitas paragens, de muitas viagens. E é isso que sua alentada fotobiografia mostra com extremo apuro. Nascida em Tchechelnik, na Ucrânia, Clarice chegou ao Brasil com dois anos de idade, acompanhada dos pais e de suas duas irmãs, fugindo da guerra civil que estava destroçando seu país, um desdobramento da Revolução de Outubro de 1917. Sua família passou por Maceió e Recife, até se fixar no Rio de Janeiro. Foi lá que Clarice conheceu e se casou com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem viveu entre 1943 e 1959. Nesse período, Clarice o acompanhou  em várias missões – algumas ainda durante a Segunda Guerra Mundial – em cidades como Belém do Pará, Berna, na Suíça, Nápoles, na Itália, e Torquay, na Inglaterra. Por todos esses lugares Clarice se deixou fotografar – e muitos desses registros estão agora no livro da Edusp, como um em que ela aparece como enfermeira voluntária em Nápoles, quando as bombas da guerra ainda espocavam pela Europa. Talvez este seja uma dos principais atributos dessa Fotobiografia: ilustrar de forma clara o percurso de vida de uma mulher em busca de seu lugar no mundo.

Tempo e espaço – Mais de uma vez, Clarice Lispector deu a entender em seus textos e em entrevistas que “não pertencia” a lugar algum. Seu mundo era outro, sua linguagem, seus sentidos. O mundo podia até ser uma maçã no escuro, que ela tateava e procurava compreender. É essa relação muito peculiar com o mundo, esse correr riscos com a palavra e com a vida que faz da literatura de Clarice algo único, algo que já em seu primeiro romance – Perto do coração selvagem – chamava a atenção de críticos como Antonio Candido e Lúcio Cardoso.

A escrita fragmentada de Clarice nesse primeiro trabalho, que vai se apresentar em outros, são as “pulsações” que reinventam seu lugar no tempo e no espaço, criando uma escrita que perturba, as mesmo tempo que atrai. E ela não era uma autora de fazer concessões. “Eu escrevo para nada e para ninguém. Se alguém me ler será por conta própria e auto-risco”, escreveu ela, certa vez. Ela sabia do risco que era lê-la. Todos sabiam. E continuavam a ler, como se fosse um mantra, como se cada página virada fosse uma mandala arquitetada. Palavras mágicas, feitiços vocabulares – não era bruxa convencional, mas sim curiosa com a força que as palavras tinham. Foi a um congresso de bruxaria na Colômbia mais por diversão do que por familiaridade com o tema. Mas seus livros enfeitiçavam. Assim como suas crônicas, escritas no Jornal do Brasil e na revista Sr., por exemplo.

Essas peculiaridades da personalidade e da obra de Clarice transparecem por todas as 656 páginas de sua Fotobiografia. São originais fora de ordem, são esboços de textos que um dia virariam livros, são cartas de vários tons e semitons. É Clarice de corpo inteiro. Mesmo quando ela se ocupa de preocupações pueris, como pedir, em uma carta, que o escritor mineiro Murilo Rubião parasse de publicar fotos dela quando estava “temporariamente gorda”. “Mando-lhe fotografias (recentíssimas, do final do mês de dezembro) e em troca você me manda todos os negativos que você tem. Certo?”, escreveu ela em 9 de janeiro de 1974. “Afinal, o fato de escrever não me faz perder um pouco da vaidade, não sou homem.”


Clarice fotobiografa, de Nádia Battella Gotlib, Edusp e Imprensa Oficial do Estado, 656 páginas, R$ 90,00

O livro que Nádia Gotlib organizou é um trabalho de fôlego e importantíssimo. E não é pelas centenas de fotos que o compõem. É, pode-se dizer, pelo “conjunto da obra”.  As imagens detalhadamente escolhidas, o apuro técnico e editorial e um alentado “apêndice”, com comentários sobre as imagens e uma cronologia das mais completas. É Clarice de alma e face fotografadas. Registradas. Imagens e dados de uma autora que, como diz Nádia Gotlib em sua apresentação, “parecem adormecidos, adquirem certa vida, ou sobrevida, a partir do registro visual”.  São, como a própria Nádia afirma, “encontros mágicos” para o leitor/espectador dessa Fotobiografia. Em se tratando de Clarice Lispector, não poderia mesmo ser diferente.

 

Clarice por Clarice

“Nesta coluna estou de algum modo me dando a conhecer. Perco minha intimidade secreta. Mas o que fazer? É que escrevo ao correr da máquina e, quando vejo, revelei certa parte minha. Acho que se escrever sobre a superprodução de café no Brasil terminarei sendo pessoal”

“Escrevo agora porque estou precisando de dinheiro. Eu queria ficar calada. Há coisas que nunca escrevi, e morrerei sem tê-las escrito. Essas por dinheiro nenhum. Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso de tudo: o próprio silêncio”

“As coisas acontecem porque devem acontecer. Nunca pensei escrever livros para crianças. O primeiro surgiu de um pedido de meu filho Pauluca, há muitos anos, e o outro, de uma sensação de culpa da qual queria me redimir”

“Somente quem teme a própria animalidade não gosta de bichos. Eu adoro. Já tive macaco, na infância. Me dou muito bem com bicho. Eu entendo uma galinha perfeitamente, quer dizer, a vida íntima de uma galinha, eu sei como é. Me dou tão bem com bicho, você não imagina. Talvez seja porque sou de Sagitário, metade bicho”

“Que não lamentem os mortos: eles sabem o que fazem”

“No que eu escrevo só me interessa encontrar meu timbre. Meu timbre de vida”

“Eu não gosto de entrevista... Parece que me mitificaram. Eu sou uma mulher simples. Não tenho nada de sofisticação. As entrevistas que eu dou são para explicar que não sou um mito. Sou uma pessoa como outra qualquer”

“Eu escrevo para nada e para ninguém. Se alguém me ler será por conta própria e auto-risco”

 

 
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