Em sua autobiografia, Flashbacks, o escritor e psicólogo Timothy Leary – que ficou conhecido como “o guru do LSD” nos anos 60 – relata um diálogo com o também escritor Aldous Huxley no qual o autor de As portas da percepção lhe disse que a Bíblia começa com uma lei antidrogas: o Senhor, ao determinar a Adão e Eva que poderiam fazer o que

quisessem no Jardim do Éden, “exceto comer do fruto da árvore da sabedoria”, instituiu “a primeira substância controlada” da história. Também na Bíblia está o relato do primeiro milagre público de Jesus Cristo: transformar água em vinho num casamento em Caná. Jesus ainda usou o vinho como símbolo de seu sangue para lembrança de seu sacrifício.


Séculos e séculos depois, a humanidade acumula uma longa lista de substâncias – controladas ou não, lícitas ou ilícitas, encontradas na natureza ou produzidas artificialmente – que podem ser definidas como drogas. “O conceito de droga é extremamente polissêmico. Seus significados abrangem tudo o que se ingere e que não constitui alimento, embora alguns alimentos também possam ser designados como drogas: bebidas alcoólicas, especiarias, tabaco, açúcar, chá, café, chocolate”, escreve o professor Henrique Carneiro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em seu livro Pequena enciclopédia da história das drogas e bebidas.

Henrique Carneiro será um dos palestrantes da IX São Paulo Research Conference, intitulada “Drogas: uma abordagem interdisciplinar”, promoção da Pró-Reitoria de Pesquisa da USP, que a Faculdade de Direito sedia de 29 a 31 de maio. Entre outros temas, a conferência vai discutir a geopolítica mundial das drogas e a responsabilidade dos estados (na palestra de abertura, a cargo do francês Alain Labrousse), neurociência, dependência, tratamentos, narcotráfico – discussão a ser coordenada pelo professor Sérgio Adorno, do Núcleo de Estudos da Violência da USP – e a abordagem sobre drogas na mídia. O encerramento terá como palestrante o psiquiatra inglês Robin Murray, do Instituto de Psiquiatria do King’s College de Londres.

“É um tema que merece muita discussão”, reconhece o professor Boris Vargaftig, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e membro do comitê científico do evento. O professor salienta que, ao contrário do que ocorre, por exemplo, com os crimes de morte, condenados em praticamente todos os países, o uso de drogas recebe distintos tratamentos ao redor do globo. “O título da conferência não traz nenhuma idéia de ‘combate’ ou ‘eliminação’. Os oradores é que vão expressar as mais diferentes posições”, diz o professor.

Mais jovens – O diálogo entre Timothy Leary e Aldous Huxley está na abertura da tese de doutorado de Stella Pereira de Almeida, uma das palestrantes da conferência. Sua pesquisa no Instituto de Psicologia da USP rendeu, no ano passado, uma polêmica que ocupou as páginas da imprensa. O trabalho da pesquisadora foi acusado de “estimular” o uso de ecstasy, especialmente entre os freqüentadores de festas ligadas à música eletrônica, por meio do Projeto Baladaboa. Na verdade, o projeto, originário da pesquisa, destinava-se a conhecer o perfil dos usuários e a apontar subsídios para a elaboração de material voltado a uma política de redução de danos destinada a esse público. Para Stella, distribuir flyers (folhetos ilustrados) com informações cientificamente comprovadas a respeito das conseqüências do uso da droga seria uma proposta com boa receptividade entre os usuários. A pesquisadora defende que “o aumento da disponibilidade de ecstasy no Brasil indica urgência da implantação de um primeiro programa preventivo brasileiro voltado para essa droga”.

Pesquisas mostram que está crescendo o consumo de álcool por adolescentes, que também estão começando a beber mais cedo. O Primeiro Levantamento Nacional sobre Padrões de Consumo de Álcool na População Brasileira, realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), demonstrou que um terço dos adolescentes bebe e que 13% dos entrevistados entre 14 e 17 anos já consomem álcool com freqüência e quantidade problemáticas. “Baixou muito a faixa etária das pessoas que procuram o grupo dos Alcoólicos Anônimos (AA). Hoje temos gente até com 12 anos”, disse, no debate de apresentação da pesquisa, Hugo Leal, membro do AA, que se apresentou como “jornalista, publicitário e ‘pé-de-cana’”.

Leal é o que se chama de “dependente cruzado” – que utiliza álcool associado a outras drogas. Embora tenha deixado o consumo em 1984, define-se até hoje como “alcoólico em recuperação”, de acordo com a filosofia do AA. De fato, a experiência mostra que as recaídas são freqüentes, chegando a 50% nos primeiros meses de tratamento. Nos grupos de AA, conta Leal, há cada vez mais jovens na casa dos 19 e 20 anos de idade. “Isso muda toda a conversa. Antes, falavam-se das perdas, seja na família, no trabalho, no patrimônio etc. Hoje não. Esse cara ainda não conseguiu ganhar nada, por isso também ainda não perdeu muito.” Para o representante da irmandade, é preciso cada vez mais discutir e pesquisar o universo dos familiares afetados por um usuário. A situação deles, diz, é fundamental para a recuperação do dependente.

Educação – Uma das questões que o professor Henrique Carneiro vai abordar no evento é a contraposição entre as posturas de temperança e as políticas de proscrição e abolição – pensamento hoje presente na chamada “guerra contra as drogas”. Para Carneiro, sempre houve consumo de substâncias que podem ser chamadas de drogas, em todos os tempos e em todas as culturas, e pensar em erradicação total é utopia. A vertente proibicionista que prevaleceu na época da Lei Seca norte-americana, entre os anos de 1920 e 1933, é “o melhor exemplo do que não deve ser feito”, porque além de não acabar com o consumo de álcool ainda gerou um mercado clandestino.

É preciso, defende o professor, encontrar modelos alternativos baseados na educação e na formação das pessoas para resistir às situações de dependência e de abuso. Às idéias de erradicação e proibição, contrapõe-se o caminho da temperança e do “uso das substâncias com sabedoria”, como as culturas clássicas fizeram ao longo da história. “Gosto da metáfora com o fogo”, diz Carneiro. “Não é porque ele pode provocar incêndios que vamos proibi-lo ou querer acabar com ele.”

A IX São Paulo Research Conference – “Drogas: uma abordagem interdisciplinar” será realizada de 29 a 31 de maio, na Faculdade de Direito da USP (Largo São Francisco, centro, São Paulo). A inscrição custa R$ 140,00 (estudantes de graduação), R$ 180,00 (estudantes de pós-graduação, residentes, assistentes sociais, representantes de ONGs e voluntários) e R$ 380,00 (profissionais). Esses valores são válidos até o dia 23 de maio. Mais informações podem ser obtidas no endereço eletrônico www.eventus.com.br/bioconferences, pelo e-mail eventus@eventus.com.br ou pelo telefone (11) 3361-3056.

 

 Em pauta, origens da vida e medicina molecular

Já estão agendadas mais duas edições da São Paulo Research Conferences (SPRC) para este ano. A décima será sobre “Origens da vida”, de 19 a 21 de junho, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Entre os destaques da programação estão as palestras de abertura, com a pesquisadora Marie-Christine Maurel, da Universidade Paris 6, e de encerramento, a cargo do professor Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

De 18 a 20 de setembro, no Centro de Convenções Rebouças, é a vez da XI SPRC, com o tema “Medicina molecular e farmacogenética”. Estará presente Oliver Smithies, que dividiu o Prêmio Nobel de Medicina de 2007 com Mario Capecchi e Martin Evans.

As inscrições para as duas conferências estão abertas. Mais informações no site www.eventus.com.br.

 
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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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