O currículo do Professor Emérito Sérgio Mascarenhas Oliveira, do Instituto de Estudos Avançados de São Carlos da USP, denota que se trata de uma pessoa empreendedora ao extremo. Mas não mostra a vitalidade do ser humano e a enorme capacidade de liderar e fazer interagir forças em torno de uma idéia quando esta se transforma na bola da vez

para esse inquieto cientista. Ao contrário de encerrar a carreira acadêmica quando chega à aposentadoria – e a USP está cheia desses exemplos –, pesquisadores desse porte aceleram ainda mais o processo criativo. À parte tudo o que já realizou depois que, no início da década de 1980, encerrou oficialmente suas atividades docentes, o professor Mascarenhas acaba de comemorar seus 80 anos de idade da forma que mais gosta: anunciando mais uma idéia.

Um auditório lotado, recém-construído e repleto de grandes nomes da ciência e da tecnologia brasileira, inaugurado no dia 30 de abril com seu nome, ouviu atentamente os novos projetos de Mascarenhas. Em especial, o que está lançando com o astronauta Marcos Pontes. Trata-se do projeto Associação de Laboratórios Interdisciplinares de Ciência e Tecnologias Aeroespaciais (Alice).


Como todas as iniciativas que liderou e as instituições que já fundou – entre elas o Instituto de Física de São Carlos da USP, a Universidade Federal de São Carlos e a unidade Instrumentação Agropecuária da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) –, o Alice deverá ser um projeto que ecoará na ciência do futuro, acredita Mascarenhas. “O nome do laboratório sinaliza a emoção que a personagem Alice (criada por Lewis Carroll em Aventuras de Alice no país das maravilhas) trouxe para toda a literatura mundial. O Brasil saiu do programa internacional da Nasa porque não conseguiu cumprir prazos de entrega de algumas peças e equipamentos. Queremos correr atrás do prejuízo e acredito que este é o momento. Não podemos nos acovardar diante do futuro, pois contamos com o ambiente e talentos necessários para criar o futuro. O Brasil tem que entrar na corrida espacial, pois essa é uma área que acarreta um desenvolvimento em cadeia, com reflexos no agronegócio, na medicina, nos transportes, na alta tecnologia e em muitos outros setores”, disse o professor.

Inicialmente, os planos eram estruturar um laboratório de pesquisas em fisiologia espacial com o objetivo de investigar os efeitos da microgravidade nos processos do organismo. Mas a idéia embrionária evoluiu para uma associação, devido ao potencial da região de São Carlos e também à necessidade de agregar conhecimentos interdisciplinares na pesquisa espacial, contou o astronauta Marcos Pontes, durante entrevista coletiva à imprensa, realizada num hotel em São Carlos, no dia 30 de abril.

Foto crédito: Francisco Emolo
Marcos Pontes entre alunos da USP de São Carlos: incentivo

Segundo o astronauta, além dos problemas usuais enfrentados pelo homem no vôo, como o fator de carga, desorientação espacial, distúrbios de visão e de circulação, os quais interferem no próprio vôo e na sua segurança, existem ainda os agravos causados pela baixa gravidade do espaço. “A microgravidade interfere nos processos do organismo, causando, por exemplo, osteoporose, perda de capacidade muscular bastante acentuada, vários tipos de alterações no sistema circulatório e problemas devido à exposição à radiação. Estudar esses aspectos permite abrir uma ramificação enorme para outros campos de estudo e não só de pesquisa pura, mas também aplicada. Os resultados práticos dessas pesquisas trazem melhores condições de vida para o ser humano como um todo, pois muitas soluções encontradas para o espaço também servem para nós aqui na Terra”, afirma Pontes.

Também participaram da coletiva o professor Mascarenhas e o professor Fernando Catalanho, chefe do Departamento de Engenharia Aeronáutica da Escola de Engenharia de São Carlos da USP, que está envolvido no projeto. Entre as instituições que inicialmente participam das pesquisas estão o Instituto de Estudos Avançados de São Carlos, a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP e o Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia.

Segundo o professor Catalanho, a estrutura e o cronograma do Alice estão sendo planejados e os detalhes da formatação só estarão prontos em cerca de dez meses. “As alianças ainda estão sendo firmadas e não temos detalhes dos esquemas de trabalho. Mas, a princípio, poderemos introduzir disciplinas na grade curricular do curso de Engenharia Aeronáutica, de modo a estruturar um curso com ênfase em engenharia aeroespacial. Seria o caminho mais natural para constituirmos um curso com mais segurança quanto aos seus objetivos e resultados”, disse Catalanho.

Foto crédito: Francisco Emolo
A inauguração do auditório que leva o nome do professor Sérgio Mascarenhas: homenagem a um cientista notável

Experimentos – Embora a associação ainda esteja engatinhando, já existe um experimento com pressão intracraniana sendo testado. O professor Mascarenhas conta que uma centrífuga imitando altas acelerações está em funcionamento para a realização de testes em pequenos animais. O objetivo é desenvolver sensores capazes de medir de forma não-invasiva a pressão intracraniana em situações de altas acelerações. Hoje, isso só é possível com a realização de furos no crânio. As próximas etapas constituirão testes clínicos realizados em parceria com a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP.

Mascarenhas disse que o Alice não surgiu agora. É a continuidade de um trabalho. “Marcos Pontes está ligado à USP de São Carlos há mais de dez anos, desde o início do projeto do professor Glaucius Oliva, do Instituto de física. O professor Oliva investiga moléculas biológicas para o desenvolvimento de fármacos para doenças tropicais, como leishmaniose e doenças de Chagas. Em microgravidade, observou-se que essas moléculas se cristalizam com muito maior perfeição. Quem diria que se poderá ajudar a resolver problemas com doenças tropicais usando o espaço? Isso foi proposto pelo projeto do professor Oliva e seu grupo do Laboratório de Cristalografia Molecular do Instituto de Física de São Carlos. Portanto, estamos falando da continuidade desse trabalho”, disse. Mascarenhas lembrou a necessidade de a ciência servir à humanidade e o papel do Alice nessa perspectiva. “A criatividade, na ciência moderna, é uma convergência de necessidades e situações que levam à formação de uma cultura sociológica e não uma cultura individual. A ciência não é para ficar dentro da Universidade ou numa prateleira para a publicação de trabalho. Ela deve servir à sociedade. O cientista que apenas serve a si próprio, a meu ver, não tem amplitude sociológica necessária principalmente num país em desenvolvimento como o Brasil.”

Foto crédito: Francisco Emolo
Evento que comemorou os 80 anos de Sérgio Mascarenhas (abaixo, recebendo placas das mãos do vice-prefeito de São Carlos, Emerson Pires Leal) teve presença do astronauta Marcos Pontes, parceiro do professor no projeto de pesquisa Alice: "Não podemos nos acovardar. Contamos com ambiente e talentos necessários para criar o futuro", disse Mascarenhas

Sonho – Primeiro astronauta brasileiro a ir ao espaço, através da Missão Centenário, Marcos Pontes avistou o globo terrestre a partir do espaço em 30 de março de 2006, quando partiu em direção à Estação Espacial Internacional (ISS). A bordo da nave russa Soyuz TMA-8, levou oito experimentos científicos brasileiros para serem realizados em ambiente de microgravidade.

Antes da entrevista coletiva dada no dia 30 de abril, Pontes visitou o Departamento de Engenharia Aeronáutica da USP de São Carlos e comparou o contato com os jovens estudantes à emoção que sentiu ao avistar pela primeira vez a Terra a partir do espaço. Cercado de estudantes curiosos e muitas perguntas, declarou que estava realizando um sonho. “Eu tenho sonhado durante muito tempo em realizar esse intercâmbio e quando olho para vocês vejo muitos candidatos a astronauta. O interesse de vocês pela carreira dá a sensação de que valeu a pena, pois meu trabalho não é só aprender e participar de missões. O principal é compartilhar esse conhecimento e, para mim, estar aqui me dá uma satisfação muito grande. Talvez só comparável àquela de quando avistei pela primeira vez a Terra”, disse.

Para Pontes, a principal tarefa do astronauta está na Terra e é espalhar conhecimento. “Sonho em formar um pólo de pesquisas aeroespaciais aqui e vocês (estudantes) serão os vetores que irão tocar esse sonho adiante. Vocês têm vantagens porque aprendem ciências exatas e biológicas e outros conhecimentos necessários à carreira. Mas também devem se esforçar para fazer cursos extras, como pilotagem na aviação civil, pára-quedismo, mergulho e outros. A ênfase da atividade do astronauta é na parte operacional. Ele é as mãos e os olhos do cientista, é quem realiza os experimentos do cientista no espaço. É preciso tomar muito cuidado com a saúde. Fumar, não pode de jeito nenhum. A fisiologia no espaço é muito afetada”, disse.

Foto crédito: Francisco EmoloPerguntado pelos estudantes sobre campo de trabalho e financiamentos de pesquisas na área, Pontes respondeu que a aviação está em expansão no Brasil e cresce no mundo todo. “O Programa Constelação agora está sendo desenvolvido. E o mundo precisa de novos modelos de avião. Há um campo vasto. Porém, temos que lembrar que na área espacial não há produção em escala. Muitas empresas do ramo, até para sobreviver, acabam diversificando sua atuação e o resultado é um leque de produtos de tecnologia de ponta que acabam sendo oferecidos ao mercado”, disse.

Sobre o financiamento de pesquisas na área espacial, disse que ainda há uma “dúvida grande sobre o tema” e por isso defendeu a entrada de capital privado e a facilitação de parcerias através do terceiro setor. “É uma área em que teoricamente não deveria haver contingenciamento, mas ele existe e por isso acredito que as pesquisas não devem ficar apenas a cargo do setor público. A solução para o problema é mudar e por que não começar por aqui? Não é possível desenvolver uma tecnologia e uma ciência se não envolvermos muitos campos, como a academia, o setor privado, o setor público e o terceiro setor, e também outros países para cooperações internacionais”, disse.

Um dos alunos quis saber se seria viável no Brasil a criação de centros espaciais ou programas comparáveis ao norte-americano, ao russo ou ainda ao chinês. “Seria mais viável fazermos pré-seleção de candidatos aqui para enviarmos àqueles centros, através de um acordo de cooperação. Aqui ainda temos muitas barreiras. O programa VLS, por exemplo, ainda não se viabilizou não por falta de meios técnicos, mas por questões burocráticas e políticas. Ainda temos muitas barreiras a vencer. Seremos pioneiros e, como todo pioneiro, seremos os que apanharão primeiro”, disse Pontes.

Depois de falar com os estudantes, o astronauta assistiu a uma apresentação da estrutura do curso e do perfil dos alunos de Engenharia Aeronáutica da USP, feita pelo professor Catalanho e outros docentes.

Interdisciplinaridade – Pontes enfatizou a necessidade de unir os interesses privado e público, do terceiro setor e das universidades para fazer deslanchar as pesquisas espaciais no Brasil. “A junção de recursos, necessidades e infra-estrutura faz com que o fluxo de conhecimento permaneça circulando e cada setor irá retirar desse fluxo a parte que lhe interessa, seja conhecimento, produtos ou tecnologias. O setor aeroespacial tem essa característica interdisciplinar. Se para colocarmos determinado experimento no espaço tivermos, por exemplo, de desenvolver um sistema de propulsão, ou de telemetria, ou algum material, essas criações geram outras. Tudo isso gera empresas e empregos. Tudo isso incentiva a educação e dissemina a ciência. É um círculo”, disse.

Nos dois dias em que permaneceu em São Carlos, Pontes participou de uma agenda de visitas que incluiu empresas de tecnologia ligadas à área espacial, entre elas a Opto Eletrônica, que está desenvolvendo lentes de última geração para a câmera de um satélite sino-brasileiro, que irá registrar imagens terrestres para uma série de aplicações. Entre outras instituições visitadas, buscou parcerias também com a Embrapa Instrumentação Agropecuária, que usa sensoriamento via satélite para monitoramento e pesquisas no agronegócio.

“Pesquisa e desenvolvimento nas empresas têm custos muito altos. Poderíamos ganhar muito se o setor privado tiver a possibilidade de utilizar conhecimentos integrados em tempo hábil para aplicações práticas e demandas de mercado. Há várias empresas aqui na região sendo ampliadas em torno do setor aeroespacial e temos de aproveitar esse momento e estimular esse desenvolvimento”, afirmou Pontes.

O professor Mascarenhas destacou os desafios tecnológicos de áreas que necessitam de pesquisas interdisciplinares, como o agronegócio. “Temos muitos desafios pela frente no agronegócio, especialmente agora, com o atual debate sobre a falta de alimentos e água no mundo. Todos esses problemas dependem de monitoramento por satélite e todos são temas altamente interdisciplinares, incluindo a nanotecnologia”, disse.

O professor Mascarenhas manifestou a intenção de o Alice colaborar também com o Programa Nacional de Atividades Espaciais, de responsabilidade da Agência Espacial Brasileira (AEB). “O governo e  Marcos Pontes foram muito criticados pelas pesquisas no espaço porque teve uma porção de gente que não entendeu nada. Há uma diversidade de conhecimentos que pode ser produzida a partir dessas pesquisas”, enfatizou.

 

Mascarenhas e seus “descendentes”

As comemorações do aniversário de 80 anos do professor Mascarenhas – completados no dia 2 de maio – começaram a partir das 14 horas do dia 30 de abril, no Auditório Professor Sérgio Mascarenhas do Instituto de Física de São Carlos da USP. O espaço foi inaugurado no dia 30 com a realização do simpósio “A educação em ciência no Brasil”. As palestras versaram sobre divulgação científica, um tema privilegiado entre as preocupações de Mascarenhas. Os palestrantes contaram também suas experiências pessoais de como o professor influenciou a vida de cada um.

Por teleconferência, o ministro de Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, apresentou o plano de ação do governo federal para ciência e tecnologia e anunciou em primeira mão os aumentos das bolsas de mestrado e doutorado, que passaram, respectivamente, para R$ 1.200,00 e R$ 1.800,00. Mostrou o bilhete que o professor Mascarenhas lhe escreveu, em 1970, “convocando” Rezende a participar de um projeto de pesquisa em Pernambuco. “Não fosse por ele, acredito que eu não estaria onde estou hoje”, disse Rezende. E finalizou com uma brincadeira. Um “presente” vindo de Brasília chegou ao auditório por “teletransporte”, mostrando os resultados de “uma rede de tecnologias avançadas que estamos desenvolvendo”, brincou. 

O diretor-presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Silvio Crestana, declarou: “Somos todos descendentes do professor Sérgio Mascarenhas”. Crestana o nomeou como mestre, cientista, empreendedor, líder, incentivador, ser humano, amigo e pai. “Se hoje temos a excelência científica no setor agropecuário, isso só foi possível porque há 35 anos um visionário convenceu um grupo de estudantes de Barretos a iniciar o projeto que daria início à unidade de Instrumentação Agropecuária”, disse.

O vice-reitor da USP, Franco Maria Lajolo, representou a reitora Suely Vilela. Outras homenagens vieram do professor Ernst Wolfgang Hamburger, do professor Feliciano Sánchez Sinencio, diretor do Centro Latino-americano de Física, do professor Vanderlei Salvador Bagnato (IFSC), do professor Roberto Mendonça Faria (IFSC), da professora Leila Maria Beltramini (IFSC) e do professor João Candido Portinari, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, além do astronauta Marcos Pontes.

Os professores Oswaldo Baffa Filho e José Aparecido da Silva, ambos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, lançaram o livro Convivendo com a ciência, dedicado ao professor Mascarenhas. Trata-se de uma compilação de textos em formato jornalístico sobre temas científicos. Lançado pela editora Funpec, os textos, assinados por cientistas das mais diversas áreas do conhecimento, foram originalmente publicados em espaço semanal da Gazeta de Ribeirão Preto.

“Faz muito sentido dedicar um livro como esse ao professor Mascarenhas, pois ele tem longa história como divulgador científico. Recentemente, ele encabeçou o lançamento da agência multimídia CiênciaWeb, que além de divulgar ciência funciona como um portal de apoio ao ensino de ciências para a rede pública”, conta o diretor editorial da agência, Francisco Belda. Jornalista e doutorando da Escola de Engenharia de São Carlos, Belda em breve lançará um livro sobre a vida do professor Mascarenhas. O portal pode ser acessado pelo endereço www.cienciaweb.com.br.

O professor Mascarenhas encerrou o evento contando que seus mais recentes interesses estão voltados à pesquisa em engenharia florestal, com a transgenia dos eucaliptos e o mercado de créditos de carbono. Enfatizou também os estudos de pressão intracraniana em altas acelerações e apresentou à platéia o projeto Alice.

 
PROCURAR POR
NESTA EDIÇÃO
O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[
EXPEDIENTE] [EMAIL]