Vendo a terra arruinada, Deus trouxe o dilúvio para arruinar a carne em que a força da vida estava ativa. Sendo Noé “homem justo e sem defeito entre os seus contemporâneos", ensinou-lhe como construir uma arca, a fim de preservar vivas todas as espécies existentes, sob um novo sistema de coisas (Gênesis 6:17)

Desencadeado pelas obscuras águas dos atuais sistemas políticos, econômicos e culturais, um novo dilúvio ameaça o planeta, e, nesse sentido, não são poucas as vozes que clamam pela construção de uma “nova arca de Noé”, de natureza cultural e ética, a fim de resgatar o propósito, o significado e o valor da vida. Nem Moisés, ao receber os Dez Mandamentos das mãos de Deus, imaginou a sofisticação que a criminalidade encontraria no mundo contemporâneo, camuflada de mil maneiras nos mais variados "consórcios" políticos e econômicos, cujo poder desafia o disposto nas leis e constituições dos estados tradicionais. Aumenta o número daqueles que vêem na cultura ocidental a contradição mais absoluta e radical não apenas do cristianismo, mas de todas as tradições religiosas e morais da humanidade. A força

da moral, diz Bento XVI, sofre com a ciência, que a confina à esfera subjetiva, em detrimento da moral pública.

Os apelos para o bem, quando dirigidos exclusivamente às pessoas, não surtem efeito porque, muitas vezes, elas não conseguem se livrar de um mal estruturado no próprio sistema de coisas, em princípios e práticas enraizados não apenas nas organizações ditas criminosas, mas na sociedade como um todo.

Não se trata de uma questão de sustentabilidade, mas de regeneração da natureza e do homem, ambos em acentuado declínio. É preciso alterar as políticas de desenvolvimento que exigem sempre megaprojetos, "legitimados" pela demanda crescente de matéria e energia, quando, com muito menos, poderia se viver melhor. A atenção aos recursos tecnológicos deve ser contextualizada, não se podendo ignorar as complexas variáveis que intervêm na qualidade de vida. Como lembra Auerbach, uma das técnicas da propaganda é iluminar excessivamente uma pequena parte do problema para deixar na completa escuridão todo o restante.

Quem caminha por estreitas sendas delimitadas por possantes focos de luz dificilmente estará seguro no vasto espaço adjacente, imerso em escuridão. No entanto é o que fazemos no mundo de hoje, "iluminados" pelos mais variados simulacros e simulações de um sistema que nos mantém escravos do consumo.

Estando o mundo dividido em esferas de poder, diferentes nomenclaturas, enquistadas em partidos políticos, corporações de negócios e meios de comunicação social, continuamente buscam controlar o que se diz, o que se produz, o que se vende e o que se compra, enfim, nossos estilos de vida.

Hoje em dia há uma grande ênfase na informação, mas pouco se fala em formação. Influenciada pelos mais variados interesses, na melhor das hipóteses a informação apela para o ideal iluminista, que supõe ser o homem guiado pela razão: ao deixar as trevas da ignorância, estaria livre de todos os vícios e pecados. Sabemos, no entanto, que o que está em jogo é a capacidade de interpretação dos fatos e esta depende do desenvolvimento cognitivo e cultural. Sabemos também que pessoas pretensamente "esclarecidas" perseveram em suas condutas nocivas porque, a curto prazo, "gozar a vida é o mais importante" (afinal, a "vida é uma só").

A educação, no entanto, aposta na resiliência dos sujeitos, que poderiam escapar da generalização, da causalidade, da predicabilidade – mesmo quando afetados pelas mais variadas e complexas situações. O sujeito de que fala o educador seria livre para amar o saber; do sujeito dependeria a continuidade da aventura humana.

Esse espaço de liberdade, mais ou menos tolerado pelos interesses dominantes, precisa ser ampliado. O acesso à universalização da informação não pode ser feito em prejuízo da discussão pedagógica dos problemas que afetam a qualidade de vida: o acesso à informação é mais um recurso, não é uma panacéia.

O compromisso principal da educação, no mundo atual, é de formar homens e mulheres que possam se comprometer com novos paradigmas e não com os pretensos benefícios do mercado ou com tecnologias que geram imensos lucros às corporações de negócios, ao serem incorporadas às políticas públicas.

A universidade não pode ser serva do sistema ou mera caixa de ressonância dos interesses dominantes, mas, para isso, é preciso abrir novas fronteiras, aliando a ciência à qualidade de vida e assumindo uma postura crítica, de amplo espectro, no terreno educacional, cultural, social, político e econômico.

O que as pessoas fazem em relação à natureza depende de como se posicionam em relação a si próprias e às coisas ao seu redor. A ecologia humana está condicionada às crenças sobre a natureza, sobre o cosmos e o destino do homem na Terra, "o que envolve a religião", como observa o historiador Lynn White.

Nesse sentido, a Universidade de Harvard, entre outras iniciativas, patrocinou uma série de conferências sob perspectiva histórica e cultural (“Religions of the world and ecology”), visando a uma reflexão sobre as relações entre as tradições religiosas e o ambiente, tendo em conta diferentes culturas.

Qual o papel das práticas democráticas e da educação no esclarecimento e na emancipação das pessoas, face a novas formas de estar no mundo, que impeçam a destruição de valores e a devastação de territórios imensos, controlados por poderosas oligarquias políticas e econômicas? 

A emergência da autoridade privada corrói o poder do estado, suas estratégias e métodos provocam desenraizamentos, discórdia, guerra, fome, iniqüidade, devastação e profunda divisão social, com conseqüências funestas, como o crescimento do crime organizado em todo o mundo. A presente crise não pode ser compreendida e superada sem a mudança do conceito de homem, como espécie "dominante", para espécie coadjutora, sem que se deixe de identificar "progresso" e "desenvolvimento" com os interesses muito particulares das grandes corporações de negócios.

Num mundo em que os maiores benefícios são repartidos apenas entre os detentores do poder político e econômico e os custos "democraticamente" divididos entre os demais, a injustiça prevalece e a ciência e a tecnologia passam a servir a interesses oligopolísticos, em prejuízo da qualidade de vida.

Nas "economias de mercado", o crime e a violência, a política como balcão de negócios, a dissolução dos laços sociais geram seres caracterizados pela irresponsabilidade, oportunismo, incoerência e ausência de valores morais, que passam a controlar, de forma insidiosa e hegemônica, o conjunto da sociedade.

O neoliberalismo atomiza a sociedade e quebra todos os vínculos, exceto os contratuais, resultando nas piores formas de violência. Aspectos críticos dos efeitos dos modelos de "desenvolvimento" são ignorados, maquiados ou mantidos em silêncio por seus proponentes.

Diante do enfraquecimento do estado, é necessária "uma revolução a longo prazo" (Caplan), a participação coletiva em ações conjugadas, que possam transformar a realidade política, econômica, cultural e educacional, tendo em vista novos paradigmas de crescimento, riqueza, poder e trabalho.

Quando o caos político, econômico e cultural normaliza toda sorte de procedimentos, as transgressões, iniqüidades, violência e desmandos são considerados como parte do dia-a-dia; projetos segmentados permanecem na superfície, onde estouram os problemas-bolha, sem atingir o bojo do caldeirão efervescente.

Os problemas atuais não derivam apenas do não-atendimento das necessidades básicas do ser humano, mas estão associados à concentração de renda, ao consumo conspícuo, ao imenso desperdício, ao planejamento a serviço de interesses privados, cujos poderosos lobbies se confundem com as estruturas de poder.

Seus efeitos perversos nas megacidades do mundo de hoje se evidenciam na criminalidade, nos espaços públicos reduzidos a mercados de consumo, na monocultura do lazer regida pelos meios de comunicação de massa, nas periferias inseguras e carentes, no tráfego e transporte congestionados, na poluição ambiental.

As políticas de inclusão social usualmente não são transformadoras, mas antes "acomodam" as pessoas ao sistema vigente. Isso significa que, uma vez "incluídas", apenas engrossam as legiões de produtores e consumidores egocêntricos, que exploram as benesses do sistema em proveito próprio, sem questioná-lo.

Incluir mais e mais pessoas no atual sistema de coisas apenas aumenta a sua perversidade. É necessário modificá-lo para que as pessoas possam se desenvolver como seres humanos, tendo em vista novos paradigmas de poder, riqueza, crescimento, trabalho, lazer e liberdade.

O mundo de hoje deve caminhar para a racionalização da produção e do consumo. Destituídos de atributos essenciais, os mais variados produtos se valem de mensagens sofisticadas e suntuosos encartes de propaganda de bens ilusórios, cuja posse supostamente resgataria a cidadania e a auto-estima das pessoas.

Políticas descentralizadoras e redistributivas deverão ser implementadas em todas as megacidades de hoje, tendo em vista a acessibilidade de serviços públicos, a proximidade dos locais de moradia, trabalho, lazer e estudo, diminuindo os percursos e incentivando o transporte público, poupador de energia.

Segurança implica aspectos mutuamente imbricados, culturais, econômicos, políticos, educacionais, sanitários, ambientais. Associe-se a eles, como condição para os direitos humanos, a elevação espiritual, a ausência de medo, a solidariedade, o desenvolvimento ético, cultural e de todas as artes.

Onde estão as raízes da violência na sociedade atual? Os criminosos de todo o tipo, por acaso não se pautam pelos mesmos valores, restritos ao consumo conspícuo e aos prazeres proporcionados pelo dinheiro? A criminalidade não é um dos meios para adquirir os "bens" alardeados pela sociedade de consumo?

Uma das histórias de Pierre Gripari (O Partido dos Mortos) é um convite à reflexão sobre os rumos do mundo atual: em um país qualquer, a população passa, insensivelmente, para a condição de mortos, que assumem o poder e passam a determinar as políticas mais convenientes para eles (como a expansão dos cemitérios).

Apoderam-se, de forma avassaladora, de postos-chave na política, na economia, na indústria cultural e onde quer que possam promover o "enterro" dos que ainda estão vivos. Maquiavélicos e habilidosos, estão sempre prontos "para condenar as armadilhas que os apanham, mas nunca a si mesmos" (Blake).

Manipulados e controlados por um sistema que nos oferece a nossa própria mortalha, privados de discernimento e vontade própria, como "zumbis" ou "mortos-vivos" participamos de uma dança macabra, cujo terrível contraponto é orquestrado, com igual maestria, tanto pelas "culturas da pobreza" como pelas "culturas da riqueza".

Se as coisas não mudarem, adverte Edgar Morin, nossa sorte não será diferente dos descuidados passageiros do Titanic, que, confiando na tecnologia da nave e em seu comandante, sucumbiram ao naufrágio. Enquanto a "orquestra de bordo" permanecer tocando suas atuais “melodias”, mais depressa iremos para o fundo.

André Francisco Pilon é professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.

 

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