Poucas vezes um livro chega às livrarias em momento tão oportuno como Violência e sofrimento de crianças e adolescentes na perspectiva winnicottiana, dos professores José Tolentino Rosa e Ivonise Fernandes da Motta, do Instituto de Psicologia da USP, além de outros especialistas da área. Por mera coincidência – pois foi aprovado pela

Fapesp para publicação em setembro do ano passado –, o lançamento se deu no final de abril, quando se tornou mais intenso o debate nacional sobre violência contra crianças provocado pelo assassinato da menina Isabella Nardoni, sufocada e atirada pela janela de um apartamento na zona norte de São Paulo, em 29 de março.

Os autores da obra atendem crianças e adolescentes na clínica do Instituto de Psicologia e sabem que a morte de Isabella não é isolada, pois só em São Paulo registram-se em média quatro casos diários de violência contra crianças. A maioria passa despercebida do público porque envolve pessoas pobres, desajustadas ou viciadas em drogas ou álcool, ao contrário da família de Isabella, em tudo “como nós”, da classe média, a que mais se agitou nesse caso. Tolentino atua em clínica psicológica desde 1973, tendo sido responsável pela Coordenadoria de Saúde Mental do Estado de São Paulo,  atuado em departamentos de psiquiatria e prestado serviços ao sistema legal paulista. Atualmente, é professor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP e também da

Universidade Metodista. Ivonise leciona no Instituto de Psicologia da USP, onde também coordena o Laboratório de Pesquisa sobre o Desenvolvimento Psíquico e a Criatividade em Diferentes Abordagens Psicoterápicas.

Modelo inglês – No ensino, nas pesquisas e na clínica psicológica, Tolentino, Ivonise e demais co-autores de Violência e sofrimento seguem preferencialmente os passos e teorias de Donald Woods Winnicott (1896-1971), pediatra e psicanalista infantil inglês que estudou o desenvolvimento emocional e as relações primitivas do bebê com o seu ambiente, conforme informa na introdução do livro o psiquiatra fluminense Sérgio Belmont. Winnicott, que na década de 40 acompanhava adolescentes afastados das suas famílias pela guerra, escreveu que “tudo aquilo que conduz as pessoas aos tribunais, ou aos manicômios, possui um equivalente normal na infância e na meninice, e também na relação da criança com seu próprio lar”.

Tanto na obra como em entrevista ao Jornal da USP, ao examinar a violência no relacionamento entre pais e filhos, os autores do livro afirmam que “o amor e o ódio caminham juntos, quer na realidade interna, quer na realidade externa do bebê”, mas esse estado mental, caracterizado pela integração, “é um passo na direção do desenvolvimento normal”. E o mais surpreendente é que, “tendo possibilidade de chegar a esse momento evolutivo, o bebê sente culpa e preocupação em relação aos seus relacionamentos”. Observam em seguida que nessa hora o ambiente que envolve a criança é fundamental. Portanto, insistem, sentir culpa e sentir-se responsável é uma conquista da saúde, “reveladora de que uma parte árdua e significativa do desenvolvimento emocional foi realizada”. Então, está claro que muito cedo a criança sente culpa. Tolentino dá até o mês de vida do bebê a partir do qual isso ocorre: o sexto, coincidindo com o aparecimento e funcionamento dos dentes, instrumento que o bebê  usa para testar a reação da mãe, mordendo seus mamilos e esperando que ela grite. 

Foto crédito: Francisco Emolo
Tolentino e Ivonise (abaixo): "amor e ódio caminham juntos"

Em alguns momentos, a linguagem dos psicólogos e psiquiatras chega a ser chocante aos ouvidos dos leigos em Freud e Winnicott, numa demonstração de que precisa ser analisada e entendida no contexto de toda a obra, sob risco de mal-entendidos. Por exemplo, esta afirmação de Winnicott: “A mãe odeia o seu bebê desde o início”, seguida de uma série de motivos que justificariam esse ódio: machuca-a com os dentes, trata-a como escrava, demonstra desilusão com ela etc. Ivonise e Tolentino acrescentam que “é uma questão atual e básica a emergência e intensidade com que o relacionamento pais e filhos pode ser afetado pelo ódio, tanto dos próprios pais e filhos quanto do ambiente circundante em suas mais diferentes e diversas vertentes”.

Na busca de motivação para a violência contra crianças, mas sem necessariamente tomar como referência principal o caso Isabella, posto que ainda não está esclarecido, uma das conclusões de Tolentino é que as agressões costumam começar quando os envolvidos “não sabem parar”. Parar na discussão, na luta, na briga. Por exemplo, as crianças gostam de brincar e na brincadeira se entusiasmam, rolam, lutam, muitas vezes passam a brigar e até fingir matar. Chega uma hora em que um dos lutadores pode estar sendo sufocado por uma “gravata”, ou outra forma de golpe, e para se safar precisa dar um sinal, “pedir água” ao oponente. Se não dá o alerta, o outro continua a sufocá-lo e a se irritar mais ainda, podendo até perder o controle e a sanidade (a razão), pois interpreta o suposto heroísmo do adversário como desprezo. Assim, quando nenhum dos envolvidos sabe a hora de parar, a luta pode virar briga e em caso extremo, tragédia. Na prática do judô, o atleta em apuros bate a mão no tatame e o juiz encerra a luta. Em família, isso nem sempre acontece. “Não saber pedir socorro é um grave problema na relação humana”, afirma Tolentino.

Ouvir crianças – O que fazer em casos de violência em que uma criança é testemunha de crime? A polícia acredita que essa situação  tenha se verificado na morte de Isabella, pois o seu meio-irmão de 3 anos estava no apartamento da família na hora do crime (seja quem for o verdadeiro autor dele).

Foto crédito: Francisco EmoloTolentino entende que em situações semelhantes a criança precisa falar, não tanto para esclarecer eventuais crimes, mas para se livrar de  traumas psicológicos futuros. “O que é reprimido uma hora acaba saindo de alguma forma, até pela pele; do contrário vira problema mental. O importante é levar a criança a falar.”

Mas como falam crianças dessa idade? Falam através de brincadeiras, ao contrário dos adultos, que têm sonhos e lembranças. Segundo o psicólogo, os brinquedos que estimulam essa fala podem ser agressivos (espadas, revólveres, martelos), afetivos (animais como gatos e cachorros domésticos, bonecos ou bonecas representando pais, mães, avós, objetos de cozinha e do quarto), depressivos, que permitem a volta no tempo (mamadeira, água, caixa de areia) e intelectuais (jogo de xadrez) ou gráficos (cera, tinta, guache).

Através da brincadeira a criança revela o seu mundo mental e o psicólogo pode descobrir se ela é daquelas que, quando entram na briga, são capazes ou não de parar em tempo ou de dar o alerta para que o adversário pare. Se não sabe alertar para o risco ou não sabe perceber o alerta, é provável que se trate de criança com algum problema, sujeita a se tornar rebelde na adolescência, brigar muito com os pais, sair de casa mais cedo. No entanto, Tolentino afasta o determinismo, o erro de entender, por exemplo, que uma criança que perdeu o pai aos 9 anos será uma pessoa triste e deprimida sempre. Lembra que aconteceu coisa bem diferente com Heitor Villa-Lobos. O compositor  perdeu o pai aos 9 anos, mas tornou-se um virtuose no violoncelo, dedicou ao pai o melhor de sua vida e suas composições choravam por ele no violoncelo.”

Quando se trata de atender crianças, o professor Tolentino explica que o tempo de tratamento “é inversamente proporcional à idade do paciente”. Quanto mais cedo for feito o diagnóstico, mais fácil será a cura. Em alguns casos, duas sessões em um mês já podem ser suficientes.  Alguns hospitais de ponta, como o Albert Einstein, em São Paulo, adotaram a atenção primária para gestantes. O bebê tem acompanhamento psicológico antes mesmo de nascer.


Violência e Sofrimento de crianças e adolescentes na perspectiva winnicottiana
, José Tolentino Rosa e Ivonise Fernandes da Motta, Fapesp, Idéias e Letras, 232 páginas, R$ 21,50.

Ivonise insiste na necessidade de analisar os casos de violência contra crianças do ponto de vista de toda a família, argumentando que a família contemporânea tem características muito diferentes das dos tempos antigos. Agora há possibilidade de divórcio, há novas normas sobre com quem devem ficar os filhos menores, há novos casamentos, padrastos, madrastas. Segundo a psicóloga, “que tal examinar sempre a influência dos pais, avós, tios, primas?”

Por último, os professores lembram que a clínica do Instituto de Psicologia da USP está aberta à comunidade e quem precisar de seus serviços pode ligar para 3091-4281 ou 3031-2420. A clínica fica no Bloco D do instituto, na Cidade Universitária.

 
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