Reciclagem, energia, água: se essas três palavras tivessem algum sentido religioso e caíssem na caneta do poeta francês Charles  Péguy (1873-1914), ele diria que, assim como as três virtudes cardeais (fé, esperança e caridade), são três irmãs gêmeas que andam de mãos dadas pelos caminhos do mundo (não apenas da França). Ainda assim, restaria a

Foto crédito: Reprodução

dúvida sobre qual delas agrada mais a Deus, que no caso das cardeais preferia a esperança, uma virtude surpreendente nos homens, pois, diante de tanta miséria, como podem esperar  alguma coisa melhor? Bem mais surpreendente que a fé, tão evidente na Criação, e mais que a caridade, tão natural ao se olhar a multidão de gente humilde caminhando às margens das estradas.

Pois as três irmãs mais modernas que as cardeais – reciclagem, energia e água, representadas pelos programas USP Recicla,

Uso Eficiente de Energia (Pure) e Uso Racional da Água (Pura) – uniram-se na Semana do Meio Ambiente na USP (que começa nesta segunda-feira, dia 2) e convocaram especialistas para analisar, não qual delas tem a preferência de Deus, mas este tema básico: “Água, resíduo, energia: quem paga para ver? Uma vida sustentável para nós e para as futuras gerações”. Poetas de versos formais não foram convocados, e para quê, se a poesia está em toda parte?

Serão dias de ouvir (debates) e de ver (filmes), primeiro, no auditório do prédio da Energia Elétrica da Poli, depois no Cinusp, na rua do Anfiteatro. Entre os convidados, Paulo Saldiva, o pesquisador da Faculdade de Medicina que os paulistanos conhecem bem, pois com freqüência aparece na televisão mostrando os malefícios da poluição e como é saudável andar de bicicleta em vez de usar carro. A professora Maria Laura Silveira, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), vai comentar o filme Encontro com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá. A comunidade científica se lembra bem de Milton Santos, o geógrafo brasileiro mais conhecido e premiado no exterior, falecido em 2001.

Templo e catedral – Merece reflexão a posição de dois economistas sempre atentos à questão ambiental. Valquíria Padilha, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto, autora de estudo sobre shopping center, que classifica de catedral das mercadorias e templo do consumo, disse que, embora ensine economia capitalista, mantém-se na perspectiva crítica, sociológica (possui graduação em Ciências Sociais pela PUC de Campinas e mestrado em Sociologia pela Unicamp). “Estamos embalados pela publicidade, levados a acumular capital, servir ao capital, mas isso não supre as necessidades humanas. E ainda há o outro lado, o desgaste do ambiente pelo excesso de consumo.”


Conservação da água, tratamento de resíduos e produção de energia são os temas principais da Semana do Meio Ambiente na USP: filmes e debates para gerar reflexão, conscientização
e preservação

Diante dessa realidade do consumo que nos manipula, as pessoas tentam se proteger e se organizam em associações e outras formas de pensar, agir e defender o ambiente. As três entidades da USP que organizaram a semana seriam exemplos desse esforço. Segundo a professora, são representativas da fase do possível, pois a fase do desejável só virá quando mudar a “lógica produtivista”. Mudar mentalidades demanda muito tempo. Ainda bem, disse, que vivemos numa época facilitadora do debate, que abre brechas para pensar a realidade. Ensina Valquíria que  “o medo organiza as pessoas”. Elas procuram saídas pelo diálogo, não mais pelas revoluções.

Outro economista, Ladislau Dowbor, diz que ele mesmo gostaria de saber o que deveria falar aos participantes da semana ambiental. Certamente que a dúvida não lhe vinha por falta do que dizer; talvez por excesso. Dowbor estudou muito. Economia na Universidade de Lausanne (Suíça) e na Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia (Polônia) e continua a aprender ensinando na PUC paulista. Como Valquíria, associa a área econômica às exigências sociais num planeta em explosão, em que 4 bilhões de pessoas vivem precariamente e 75 milhões se acrescentam anualmente ao contingente mundial. Enquanto isso, os recursos naturais vão se esgotando e o perfil de consumo se torna cada vez mais insustentável. Nesse contexto, o grande desafio da humanidade apontado pelo professor é: o que fazer, como  decidir? “Uma coisa é constatar o drama, analisar a catástrofe em câmera lenta, outra coisa é encontrar uma saída.”

De acordo com o professor, é urgente mudar os processos mundiais decisórios. Já não se pode confiar em políticas como a do presidente norte-americano George Bush ou nos executivos das transnacionais que, imitando imperadores e príncipes do século 19, antes das catástrofes fazem bailes e alardeiam otimismos. Os desafios principais do planeta “consistem em nos dotarmos de formas de organização social que permitam ao cidadão ter impacto sobre o que realmente importa, em gerar processos de decisão mais racionais. Com a globalização o processo se agravou. As decisões estratégicas sobre para onde caminhamos como sociedade passaram a pertencer a instâncias distantes”. Assim, “as reuniões dos que mandam, em Davos, lembram vagamente as reuniões de príncipes brilhantes e inconscientes na Viena do século 19. A ONU carrega uma herança surrealista, onde qualquer ilhota do Pacífico com status de nação tem um voto, tal como a Índia, que tem um sexto da população mundial”.

Até a forma de avaliar o sucesso dos esforços econômicos deveria sofrer alteração, na opinião de  Dowbor. Ele diz: “Liquidar a vida dos mares aparece como aumento do PIB, quando só se contabiliza o que se extrai, e não se contabiliza a descapitalização planetária que daí resulta. Cortamos as nossas florestas, destruímos a camada do solo, liquidamos as reservas de petróleo, esgotamos os lençóis freáticos de água. E nada disso é contabilizado, a não ser como valor positivo no produto vendido, sem desconto nos custos ambientais”. Isso quer dizer que, em  termos contábeis, “o PIB é calculado de forma errada. Nenhuma empresa ou administração pública teria as suas contas aprovadas se não levasse em conta a redução dos estoques”.

 

Filmes que geram reflexões

A  Semana do Meio Ambiente na USP será aberta nesta segunda-feira (2), às 9h30, no auditório do Departamento de Engenharia Elétrica da Escola Politécnica (avenida Professor Luciano Gualberto, travessa 3, número 158), com a mesa de debates sobre “Água. Resíduo. Energia”. A mostra de filmes e debates será no Cinusp Paulo Emilio (rua do Anfiteatro, 181, Colméia, favo 4). A programação da mostra de filmes (um curta às 16 horas e um longa às 18 horas) é a seguinte:

Segunda-feira:  Ilha das flores (12 min.), Estamira (115 min.).

Terça-feira: Césios (13,7 min.),  500 Almas (109 min.).

Quarta-feira: Narradores de Javé (100 min.), Encontro com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá (89 min.).

Quinta-feira: Mudanças do clima, mudanças de vida (15 mim.); Uma verdade inconveniente (100 min.).

Sexta-feira: Arraial do Cabo (17 min.); O pesadelo de Darwin (109 min.); Sociedade do Automóvel (39 min.).

 
PROCURAR POR

NESTA EDIÇÃO
O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.

[EXPEDIENTE] [EMAIL]