Engana-se quem pensa que o índice de sucesso na recuperação de dependentes de drogas é muito baixo. Ele é tão bom ou tão ruim como no tratamento de outras doenças crônicas, como diabete, asma ou hipertensão arterial. No caso da hipertensão, por exemplo, 60% dos pacientes deixam de aderir ao tratamento medicamentoso prescrito pelos

médicos; apenas 30% aderem à recomendação de praticar exercícios físicos; e, 12 meses depois de iniciado o tratamento,  mais de 50%  acabam procurando um hospital ou pronto-socorro em razão de complicações da doença. No caso de viciados em drogas, há muitas recaídas e elas se devem principalmente à falta de adesão ao tratamento terapêutico e farmacológico prescrito, ao status econômico do paciente (mais pobre, menor adesão) e ao baixo suporte familiar. Uma grande aula sobre tratamento da dependência química, incluindo análise dos recursos atualmente disponíveis e as perspectivas a médio e longo prazo, foi dada pelo médico psiquiatra André Malbergier, do Grupo Interdisciplinar de

Estudos de Álcool e Drogas (Grea) – sediado no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP –, durante a realização da 9a São Paulo Research Conferences,  na Faculdade de Direito da USP, de 29 a 31 de maio.

A conferência, dedicada ao tema “Drogas: uma abordagem interdisciplinar”, foi promovida pela Pró-Reitoria de Pesquisa da USP e teve apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e de várias empresas. Representantes convidados de várias universidades e institutos de pesquisa brasileiros e alguns do exterior apresentaram resultados de estudos sobre temas como drogas na universidade, embriaguez e trabalho, álcool e alcoolismo no livro didático, psicologia do esporte em pessoas em tratamento de dependência química e busca de políticas públicas preventivas da dependência química, entre outros.

Houve até apresentação de pesquisa sobre tráfico de drogas e o PCC (Primeiro Comando da Capital, organização criminosa de São Paulo), pela professora Marisa Feffermann, do Instituto de Saúde do Estado de São Paulo. Ela trouxe a informação de que os jovens envolvidos no tráfico têm alguma relação com o PCC.  “Entusiasmados com a fama do PCC, ingressam na organização e muitos se dizem integrantes, quando, de fato, não são.” A pesquisa conclui que o PCC está presente na maioria dos pontos de venda da periferia de São Paulo. “A partir dos depoimentos, pode-se perceber que a representação dos jovens em relação aos integrantes da organização oscila entre admiração e medo.”

Terapia – Contrastando com a linguagem eminentemente técnica da maioria dos expositores, com apresentação de dezenas de gráficos e slides, a aula de Malbergier, em alto e bom som,  pôde ser facilmente acompanhada por toda a platéia. Ele começou perguntando quem considerava a dependência de drogas uma doença. Era a maioria. Continuou: se você tivesse um colega de trabalho diabético, que faltasse muito, você lidaria com ele da mesma maneira que lida com um dependente de cocaína que também falta muito e, na véspera, em vez de ir dormir foi para a balada e cheirou todas? O tratamento certamente seria diferente, apesar de o diabete e a dependência química serem ambas consideradas doenças.

Então, existe na dependência de drogas alguma coisa que explique o preconceito em relação ao usuário. Os colegas  se perguntam: será que ele não poderia fazer diferente, deixar a balada, poupar-se para trabalhar no dia seguinte? Mas é aí que está o problema, que até os familiares do dependente químico às vezes não conseguem entender. Dependência de drogas não é igual a apendicite: leva-se o paciente ao hospital, opera-se e dias depois está curado. Pelo contrário, trata-se de doença crônica que pode exigir internação em alguns casos e tratamento prolongado.

O pesquisador do Grea alerta que algumas pessoas acham que a droga em si não é problema, que não leva à dependência, pois sempre existiu e vai existir. Errado: ela traz o risco de dependência, sim, garante o psiquiatra. Seu uso continuado é doença que precisa de tratamento. Continuando a aula, Malbergier explicou os vários estágios de motivação em que costumam se encontrar os pacientes ao chegarem para tratamento. A motivação é fundamental para o êxito da terapia.

O primeiro estágio é o de pré-contemplação. É quando o consumidor de droga chega e diz: “Não sei de nada e não quero saber”. No momento em que aparece na TV um alerta ou campanha alertando, por exemplo, contra o risco do fumo, ele muda de canal para não ver. É comum uma mulher ligar para o médico ou aparecer no consultório, dizendo: “Meu marido bebe, mas acha que não tem problema”. É provável que o marido esteja no estágio de pré-contemplação. Se a mulher consegue levá-lo até o médico, a reação do paciente impaciente costuma ser “não tenho problema, minha mulher é que é uma chata”. 

O que fazer, então? Há algumas técnicas, diz o pesquisador. Uma delas é discutir o padrão de consumo da droga ou do álcool. O fato de a esposa tê-lo trazido ao médico e ele achar que ela é que é chata já indica a presença de um problema: o do relacionamento marido-mulher. É uma questão associada ao consumo. O médico tenta, então, levar o paciente ao segundo estágio, o da contemplação, quando a pessoa percebe que tem um problema. Cheirar cocaína a noite toda e chegar atrasado ao trabalho de manhã, ou à faculdade, é um problema. A partir daí, a conversa entre médico e paciente tem que ser bem objetiva, atingir diretamente o interesse pessoal do paciente. Não adianta, por exemplo, dizer que o cigarro mata aos 70 anos, quando o fumante tem 30. Isso diz respeito a todos os homens, não a ele especificamente. Mas ter problemas com o filho, ter dentes amarelados pela nicotina, tossir à noite, isso sim é problema dele. Em determinado momento, o viciado em droga acaba pedindo ajuda e esse é o paciente que todo médico gostaria de ter; que sabe que, além de mulher chata, tem um problema a resolver. E quer resolver.


Malbergier: motivação traz a cura

Doenças associadas – Chegou a hora de oferecer soluções, sem esquecer de alertar o paciente de que sua doença é crônica e ele estará sujeito a recaídas. Importante nesse estágio de motivação, segundo Malbergier, é não se deixar seduzir pelo modelo convencional de tratamento, e lembrar-se de que em geral a dependência de drogas vem acompanhada de outras doenças associadas, psiquiátricas, que necessitam de diagnóstico correto por profissional da área, que também poderá prescrever medicamentos.

A luta maior será pela manutenção do tratamento, pois não são raros os casos em que o paciente, para mostrar que a sua mulher é chata mesmo, decide ficar, e fica, um mês sem usar droga. Pode até concluir daí que a droga não é o problema, pois ele pára de usá-la quando quer. Na realidade, volta ao vício. O pesquisador do Grea recomenda ficar atento à tolerância (quanto de droga usa para ter sempre o mesmo efeito), à  abstinência (o desconforto que sente ao parar com o uso da droga) e aos hábitos sociais e recreativos do paciente (negligenciados nas crises).

Segundo  Malbergier, existem alguns princípios básicos para tratamento de dependentes, mas nenhum serve para todos os casos. Ao profissional da saúde que cuida do paciente caberá perceber o método mais adequado. De todo modo, o tratamento tem que começar pela desintoxicação; não precisa necessariamente ser voluntário (internações podem ocorrer) e costuma ser longo.

Segundo o pesquisador da USP, há no mundo todo uma corrida em busca de novas drogas para combater as drogas. A dificuldade em consegui-las reside no fato de ainda sermos primários no entendimento da dependência da doença cerebral. Um dos objetivos dos medicamentos é atuar no circuito do prazer: tirar o prazer associado ao uso de drogas. Só que ainda restará convencer o paciente a tomar um remédio que tira a principal atração do vício, o aparente e momentâneo bem-estar.

Última informação do pesquisador do Grea: em vez de falar mal do país, é preciso lembrar que o Brasil é campeão mundial na diminuição proporcional de fumantes.

 
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