Ringo andou pulando a cerca – quatro vezes já, registre-se – e o resultado é que deixou descendência em pelo menos duas companheiras. Ringo não é o Starr, o sortudo baterista da banda mais famosa de todos os tempos, mas é também uma estrela que fez sucesso num congresso internacional em que sua história foi contada. Trata-se de um cão da raça golden

Foto crédito: United States Holocaust Memorial Museum, Washington, DC, Estados Unidos

retriever abrigado no canil GRMD Brasil (a sigla, em inglês, é de “Golden Retriever Muscular Dystrophy”), mantido pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP. O animal tem 5 anos de idade, é portador do gene da distrofia muscular, mas está protegido dos efeitos da doença – por isso conseguiu dar suas escapadelas. Sua evolução vem chamando a atenção dos pesquisadores brasileiros e surpreendeu também os estrangeiros. “Para a pesquisa ele é fantástico. Se conseguirmos entender o que o protege, teremos outro caminho para o tratamento da doença”, diz a professora Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano do Instituto de Biociências (IB) da USP.

O GRMD Brasil não sacrifica os animais quando os severos efeitos da distrofia os impedem até de se alimentar ou beber água sozinhos, o que acontece em geral no segundo ano de vida. O canil é um dos três do gênero no mundo – os outros ficam nos Estados Unidos e na França –, mas é o único que não pratica eutanásia. Essa opção dá

muito mais trabalho aos pesquisadores envolvidos com o canil, porque implica cuidados especiais: é preciso, por exemplo, desenvolver técnicas para alimentar os bichos ou evitar que eles tenham contato com o solo frio, porque sua resistência vai diminuindo com o passar do tempo. Os filhotes de Ringo têm o mesmo comportamento do pai, e os pesquisadores estão tentando identificar qual é a “proteção” que o cachorro, seus antecedentes e descendentes possuem.

Cerca de 30 animais são mantidos no canil, onde estão envolvidos 40 pesquisadores, entre docentes e estudantes de iniciação científica, mestrandos, doutorandos e pós-doutorandos, que fazem testes pré-clínicos nos cães para tratamentos utilizando células-tronco. “Muitas doenças que acometem os homens aparecem também nos animais. O cão é o modelo que mais se aproxima do humano para essa pesquisa, por isso sua importância é muito grande”, explica Maria Angelica Miglino, professora titular do Departamento de Cirurgia da FMVZ e responsável pelo canil.

Como já orientou teses com uso de células-tronco embrionárias em animais, Maria Angelica tem consciência de que não é fácil obter resultados a curto prazo e de que eles dependem do envolvimento de muita gente bem preparada fazendo ciência em cooperação. Se a terapia com células obtidas de animais der certo, os cientistas saberão que é possível utilizar células humanas para tratar seres humanos. Apaixonada pelo trabalho na medicina veterinária, a professora terá motivos para comemorar em ambos os casos. Por enquanto, tanto ela como Mayana Zatz torcem para que a reforma do canil saia do papel o mais rápido possível. Enquanto o espaço estiver em obras, a pesquisa terá que parar.

Foto crédito: Roosewelt Pinheiro
A votação no STF: argumentos usados pelos ministros foram da ciência à teologia

Integração – Maria Angelica Miglino se envolveu com a pesquisa da distrofia muscular a convite de Mayana Zatz, que já havia providenciado a importação, dos Estados Unidos, de uma cadela portadora da doença. Fazer trabalho de equipe e integrar competências é um dos princípios da atuação da coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano. “A integração de diferentes grupos e diferentes competências vai nos permitir fazer trabalhos de ponta”, diz Mayana.

A professora tornou-se símbolo da luta que culminou com a aprovação das pesquisas com células-tronco embrionárias humanas, processo que tramitava no Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2005 e cuja votação final, no dia 29 de maio, foi acompanhada atentamente pela sociedade. Os ministros do STF esgrimiram argumentos que foram da ciência à teologia, e não poucas vezes a geneticista da USP foi citada nos votos. Mayana envolvera-se no debate alguns anos antes, quando ajudou a redigir um documento assinado por academias de ciências de 63 países condenando a clonagem reprodutiva e pedindo a liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias.

A professora esteve em Brasília várias vezes debatendo com parlamentares, cientistas e representantes de grupos contrários à proposta. No dia da votação, comemorou ao lado de portadores de doenças degenerativas e de seus familiares, esperançosos com as perspectivas de tratamento que o futuro pode trazer para esses males. Mesmo tendo-se transformado num símbolo dessa luta, Mayana não a encara como um mérito pessoal. “Foi uma vitória da ciência e da sociedade”, diz (leia entrevista abaixo).

Foto crédito: Wilson Dias
Portadores de paralisias comemoram o resultado da votação diante do STF: esperança de cura

O diferencial das células-tronco embrionárias, explica a professora, é que elas são as únicas que permitem que se fabriquem todos os tecidos do organismo. “A grande vantagem é que só as embrionárias conseguem formar neurônios, as células nervosas funcionais. Com as adultas a gente conseguiu osso, músculo, gordura ou cartilagem, mas não neurônios”, diz. Com eles, poderão ser tratados no futuro, entre outros, portadores de doenças neuromusculares e pessoas que se tornaram paraplégicas ou tetraplégicas. “Ninguém conseguiu ainda fazer células produtoras de insulina com células-tronco adultas”, acrescenta, incluindo o diabete no horizonte.

Cautela – Quando se fala de tratamento, porém, não se pode imaginar um cenário como as divertidas estripulias de Ringo. Mayana Zatz recebe incontáveis e-mails de pessoas desesperadas oferecendo-se como cobaias para terapias com células-tronco. Os pesquisadores sabem que a luta é contra o tempo. Os pacientes de alguns tipos de distrofia muscular – como a de Duchenne, a mais severa delas – dificilmente vivem além da adolescência. Aliada ao desespero dos familiares com a falta de respostas imediatas, a existência de promessas de tratamentos milagrosos forma um caldo perigoso. Por isso, embora se revele otimista, a pesquisadora não faz prognósticos sobre em quanto tempo os eventuais tratamentos derivados do uso de células-tronco estarão disponíveis.

“Os resultados que estamos tendo com modelos animais são bem interessantes, mas até ir para o ser humano demora”, afirma. Até o momento, uma vez introduzidas no organismo, tanto a célula-tronco adulta quanto a embrionária saem do controle do pesquisador. “Não podemos nem sonhar em injetar essas células enquanto não tivermos certeza de que estamos controlando totalmente a diferenciação. Imagine se eu quero regenerar músculo e as células de repente ‘dizem’: ‘queremos virar osso’. Seria um desastre.” Por isso, as terapias somente serão aplicadas em seres humanos quando os cientistas tiverem certeza de que, primeiro, poderão direcionar as células exatamente para o órgão-alvo e, segundo, de que elas se diferenciarão exclusivamente no tecido desejado.

Foto crédito: Cecília Bastos
Cães usados em pesquisas, como Ringo (à esq.), ajudam a ciência: resultados promissores

Uma das polêmicas envolvidas no julgamento no STF foi sobre a origem dos embriões que serão usados nas pesquisas. De acordo com Mayana Zatz, levantamentos apontam que há cerca de 20 mil embriões congelados em clínicas de reprodução assistida no Brasil. Para a pesquisadora, a grande maioria deles não é viável para implante no útero – ou seja, mesmo descongelados, não se dividiriam mais. “Se tivermos a doação de 2% deles, teríamos 200 linhagens. Isso é material suficiente para todos os pesquisadores brasileiros durante anos e anos de pesquisa, porque você pode multiplicar essas linhagens”, explica.

Um documento recém-lançado pelo Ministério da Saúde dá um panorama de 25 países que permitem pesquisas com células-tronco embrionárias. A lista inclui Austrália, Estados Unidos, Canadá, França, Suécia, China, Índia, Rússia, Israel e Irã. Entre as nações mais desenvolvidas, apenas a Itália – “por razões óbvias”, salienta Mayana Zatz – ainda as proíbem. O Brasil, diz a professora, terá que largar com a corrida já em andamento. “Vamos ter que aprender com quem tem experiência. Felizmente temos pesquisadores estrangeiros dispostos a trabalhar conosco e a nos ensinar.”

Do ponto de vista internacional, a pesquisa gerada na USP, ainda que sob o abrigo do centro mais desenvolvido da América Latina, está engatinhando quando se trata de células-tronco, pondera Mayana. “Mas temos potencial para fazer trabalhos muito bons”, garante. Entre as iniciativas que a professora destaca na Universidade – “além do Genoma Humano, modestamente, é claro”, brinca – está o Centro de Terapia Celular (CTC), localizado na Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto e coordenado pelo doutor Marco Antonio Zago. Ambos integram a rede de dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Aprovada a liberação de pesquisas que podem romper novas fronteiras do conhecimento, cabe aos cientistas “voltar ao laboratório”, como salientou, no dia da votação do STF em Brasília, a própria Mayana Zatz.

 

“A gente quer ter mais trabalho”

Foto crédito: Cecília Bastos
Mayana: “quando a causa é boa, todos temos que lutar por ela”

“Foi uma vitória da ciência e da sociedade e a gente espera poder mostrar que valeu a pena”, afirma a professora Mayana Zatz, na entrevista a seguir, referindo-se à aprovação da pesquisa com células-tronco embrionárias humanas, no dia 29 de maio. “No momento em que tivermos os primeiros resultados, tenho certeza de que quem se posicionou contra vai mudar de idéia.”

Jornal da USP – O que representa essa decisão do STF?

Mayana Zatz – A decisão foi muito importante porque agora a gente vai poder fazer as pesquisas sem se preocupar e sem ter medo de interrompê-las a qualquer minuto, como seria se o STF fosse contra.

JUSP – Que novas pesquisas virão?

Mayana – A nova pesquisa é trabalhar com células-tronco embrionárias. Minha equipe está trabalhando muito com células-tronco adultas, com resultados muito interessantes, que estamos publicando em revistas de impacto. Queremos saber qual é o potencial de cada uma de formar diferentes tecidos e para fazer isso temos que comparar as adultas com as embrionárias. Outra coisa em que tenho muito interesse é montar, junto ao Centro de Estudos do Genoma Humano, um banco de células-tronco de pacientes com doenças genéticas. Se um casal teve uma criança que morreu, por exemplo, de atrofia espinhal, que é uma doença gravíssima, a gente sabe que há um risco de 25% de outro filho ter a mesma doença. O casal recorre a um diagnóstico de pré-implantação e faz a fertilização in vitro. Quando o embrião tem oito células, você pode ver se ele tem ou não a mutação. Se não tiver, implanta no útero. Se tiver, você obviamente não vai implantar, mas esse embrião é um material precioso para pesquisa, porque a partir dele posso derivar linhagens teoricamente de qualquer tecido. Posso tentar ver estratégias para corrigir o defeito, testar drogas e fazer inúmeras experiências que não posso fazer no paciente.

JUSP – Trabalhar com as embrionárias é mais difícil?

Mayana – Os cientistas que defenderam a liberação são justamente aqueles que estão em contato com os pacientes, trabalham com as células-tronco adultas e estão vendo as suas limitações. Derivar células-tronco embrionárias não é trivial, não é fácil. Estamos dominando a tecnologia nas adultas, mas é muito mais fácil trabalhar com elas do que com as embrionárias. Se fosse tão bom só com as adultas, a gente não iria querer as embrionárias, porque elas dão muito mais trabalho. Assim como têm esse potencial de formar qualquer tecido, as embrionárias têm a capacidade de se diferenciar a qualquer hora. Você tem que vigiá-las 24 horas por dia: fim de semana, feriado etc. Ou seja, a gente quer ter mais trabalho.

JUSP – E os temores quanto ao aumento da responsabilidade ética dos cientistas?

Mayana – Todos os projetos são aprovados pelos comitês de ética, e todos os comitês têm que ser aprovados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep, órgão ligado ao Ministério da Saúde), que além disso indica um membro em cada comitê. É tudo muito bem controlado. Eu brinco dizendo que, se a gente conseguisse fazer tudo o que os não-cientistas acham que a gente pode, seria uma maravilha.

JUSP – Como as pessoas podem se prevenir de promessas de tratamentos milagrosos?

Mayana – Na China já estão vendendo “injeções de células-tronco” a US$ 25 mil. Ou seja, é um negócio da China... Aqui no Brasil também já houve casos. A receita que eu dou para as pessoas que me escrevem é: primeiro, enquanto experimento, não se cobra. Segundo, existe uma grande aliada chamada internet. Pesquise na internet o nome do pesquisador que diz que está aplicando células-tronco, veja em que instituição ele está, qual o currículo dele, e depois disso veja se você vai se submeter ao tratamento ou não.

JUSP – Em que pé está a pesquisa da USP nessa área?

Mayana – Temos muita competência formada. Com essa liberação, vamos formar outros grupos. Há muita gente interessada e estamos num momento em que a possibilidade de fazer pesquisas é fabulosa. Agora precisamos de verba e principalmente de agilidade para trazer e implantar as coisas. As pesquisas são extremamente competitivas, e sem rapidez a gente não consegue acompanhar. Fiquei muito feliz porque no ano passado dois assessores internacionais vieram avaliar o nosso centro. Um deles me disse: “Acho que o trabalho que vocês estão fazendo aqui no Genoma é fantástico, mas em relação às células-tronco não esperem publicar trabalhos, porque é uma área altamente competitiva”. Estamos publicando agora o décimo trabalho internacional em células-tronco. Ora, se um assessor americano disse que é muito difícil e nós estamos conseguindo, esse é um feito importante.

JUSP – A senhora considera essa liberação no STF também uma vitória pessoal?

Mayana – Não acho que seja pessoal. Foi um trabalho conjunto dos cientistas, dos representantes de entidades de pacientes que se mobilizaram e da sociedade como um todo. Essa votação mostrou que, toda vez que tivermos uma causa boa, temos que nos mobilizar, nos juntar e lutar por ela. Isso faz toda a diferença. Foi uma vitória da ciência e da sociedade e a gente espera poder mostrar que valeu a pena. No momento em que tivermos os primeiros resultados, tenho certeza de que quem se posicionou contra vai mudar de idéia.

 

“Gordurinhas” que ajudam a ciência

A agenda de Mayana Zatz divide-se entre a coordenação do Centro de Estudos do Genoma Humano, a Pró-Reitoria de Pesquisa da USP, da qual é titular, a presidência da Associação Brasileira de Distrofia Muscular, por ela fundada, e outros compromissos que incluem viagens e orientação de alunos. A professora recebeu a reportagem do Jornal da USP, em seu gabinete na Pró-Reitoria, na véspera de um embarque aos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que atendia as jovens doutorandas do Instituto de Biociências Natássia Vieira e Mariane Secco, limpava milhares de mensagens da caixa de e-mails e dava conta de outras atribuições. De Nova York, para onde foi na semana passada, a pró-reitora segue nesta semana para a Filadélfia, onde vai se encontrar com Natássia e Mariane para o congresso da Sociedade Internacional de Pesquisas em Células-Tronco (ISSCR, na sigla em inglês), no qual as alunas vão apresentar trabalhos.

Natássia, 26 anos, brinca dizendo que no Laboratório de Doenças Neuromusculares do Centro de Estudos do Genoma Humano “a gente trabalha com lixo”. O material é obtido, por exemplo, de cordões umbilicais ou dentes-de-leite. No seu caso, é da gordura retirada em sessões de lipoaspiração e cedida por uma médica que colabora com a equipe que vêm as células-tronco utilizadas na pesquisa. Natássia utilizou modelos animais de camundongos que têm degeneração de músculo e injetou as células-tronco adultas, com a finalidade de investigar se eles teriam melhora tanto na restauração da proteína do músculo quanto na sua funcionalidade.

Sete camundongos foram tratados e sete não. Aqueles que receberam as células tiveram melhora de desempenho nos testes físicos. O próximo passo é trabalhar com cachorros. “É um desafio maior, porque os cachorros têm mais variabilidade e mais células do que os camundongos”, diz. A pesquisa de Mariane Secco, 25 anos, mostrou que há mais células-tronco do tipo mesenquimal no cordão umbilical do que no sangue do cordão – daí a importância de não descartar o primeiro.

Ser orientada por Mayana Zatz desde os primeiros anos da graduação (depois da iniciação científica, Natássia passou diretamente ao doutorado) fez da jovem uma admiradora da professora. “A Mayana é uma pessoa superocupada e você tem que ter na cabeça que ela não estará ao seu lado o tempo todo para ajudar a fazer tudo, mas estará lá quando você precisar dela”, relata. “Ela não consegue receber um ‘não’ como resposta. A grande lição que ela dá é lutar até o fim pelos seus ideais”, acrescenta. Natássia ainda tem dois anos de doutorado pela frente e pensa num pós-doc no exterior. “É importante a gente ir para fora, não para ficar, mas para voltar e trazer para cá o que aprendeu”, diz. “Quem faz USP tem que devolver o que foi investido nele.”

 
PROCURAR POR
NESTA EDIÇÃO
O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]