Publicamos no Jornal da USP (número 794, de 19 a 25 de março de 2007, disponível aqui) artigo com o mesmo tema, em que denunciamos alguns aspectos da educação do país que, a nosso ver, são responsáveis pelos altos índices de fracasso nas avaliações dos estudantes, notadamente na área de matemática.

Retomamos essa temática, após a publicação de novos índices de desempenho dramáticos das escolas públicas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e de algumas manifestações recebidas de colegas professores e de outros educadores, com o intuito de aprofundar um pouco mais o debate.

A primeira pessoa a nos escrever foi uma diretora de escola pública estadual, que se sentiu tocada com nosso primeiro artigo. Ela o considerou como a ecoar sua voz silenciada, sem ter a quem recorrer para expressar angústias de quem vivencia 24 horas por dia a negligência com a educação. Antes de ler nosso texto, coincidentemente, ela relata que uma professora de matemática de sua escola a procurara sem qualquer esperança: seus alunos haviam entregado a prova bimestral dessa disciplina praticamente em branco. Isso não seria inusitado se a prova não fosse com consulta... A diretora confessou-nos já não saber mais o que fazer: pedir novos métodos de ensino a

todos os docentes de matemática ou apenas àquela professora?

Fracasso – O relato nos mostra que muitos estão perdidos com a problemática do fracasso da educação básica no país. Como já dissemos no artigo anterior, não bastaria que os professores inovassem em seus métodos de ensino. Vejamos por quê.

Primeiro, os alunos do caso relatado pareciam tão completamente desmotivados que nem a possibilidade de consultar as respostas em cadernos e livros foi suficiente para que se dignassem a fazer a prova. Ou seja, negavam-se a um exercício intelectual qualquer, mesmo que este lhes demandasse o menor esforço. Ora, a mudança para quaisquer que fossem os métodos de ensino e, com maior razão ainda, para os bons métodos, que tentam promover uma aprendizagem significativa, demandaria maior esforço intelectual e de reorganização mental desses alunos. Num ambiente como aquele, com uma professora sem esperança e uma diretora sem saber o que fazer, isso seria possível?

Em segundo lugar, diante de um descaso tão grande desses alunos, a própria diretora não parece ter consciência do papel demandado por sua função, pois não via em si mesma um elemento catalisador para provocar mudanças no status dos fatos ocorridos, transferindo qualquer possibilidade de alteração para a responsabilidade dos professores de uma única disciplina. Essa era a única saída que ela enxergava, e não a culpamos, pois também se sentia sozinha para tomar qualquer decisão.

Então, concluímos que algo mais do que a mera preparação e melhor remuneração dos professores está em jogo para mudar o quadro educacional brasileiro. É claro que esses dois obstáculos a serem superados já são de grande vulto. Mas haverá outros ainda?


“As soluções para a educação brasileira existem e são apontadas diuturnamente por especialistas e outras pessoas de bom senso. Faltam-nos organização, seriedade e uma ação integrada para atacar todos os problemas enfrentados em nossas escolas”

Alucinados – Vamos procurar compreender um pouco mais desse quadro, olhando para a realidade nua e crua de nossas escolas. Indagamos, como pesquisadora que freqüentou e freqüenta muitos estabelecimentos escolares da região, se algum dos responsáveis técnicos e políticos pela educação, antes de tomarem suas decisões sobre as políticas públicas nessa área, já se dispuseram a fazer uma excursão a alguns desses locais e ver se gostariam de permanecer ali, como os alunos e funcionários, por longo tempo de suas vidas.

Para ajudá-los, procuramos mostrar-lhes algumas “fotografias” de locais que temos visitado, além daquela vislumbrada com o relato da diretora. Escolhemos algumas sob a ótica de uma estagiária, futura professora de matemática, que visitou uma escola estadual  do período noturno na cidade de São Carlos, interior de São Paulo, conhecida como a “capital da tecnologia”:

A infra-estrutura da escola é precária, com carteiras e cadeiras quebradas, a lousa em péssimas condições e a sala sempre suja e empoeirada. As salas não dispõem de ventiladores ou de uma circulação de ar adequada, o que atrapalhou bastante as aulas durante o verão, devido ao calor excessivo. Outro ponto negativo da escola é a falta de regras, pois alguns alunos ficam transitando pelos corredores, conversando, gritando, outros ficam no pátio ou na quadra de esportes, quando deveriam estar nas salas. Eles dizem que ali “não tem lei”. Assim, o professor precisa competir com o barulho absurdo de dentro e de fora.

Conhecemos esse local e a descrição da estagiária é precisa. Trata-se da mesma que denunciamos no outro artigo, na qual não há fechaduras ou trincos nas portas das salas de aula. E pode ser a fotografia de tantas outras escolas estaduais em que estivemos, onde há mais buracos nas lousas e nos vidros das janelas do que numa tabela de tiro ao alvo.

Ah... e os alunos?

Segundo a nossa estagiária:

Alguns faltam em muitas aulas, inclusive nos dias de provas; outros nunca compareceram a nenhuma aula que acompanhei. (Ela esteve na escola durante quatro  aulas de matemática por semana, em todo o semestre letivo.) E o que mais senti dos alunos foi o desejo imenso de concluir logo o curso básico para, simplesmente, nunca mais estudar. Isso me deixou muito triste, pois são jovens sem sonhos... A turma da 8a série era a que menos se interessava pelas aulas. A lista de matriculados era bem grande, porém apenas oito freqüentavam a escola, e ainda se sentavam em grupinhos nas laterais da sala, até de costas para o professor, enquanto ele “dava” a matéria. (...) Na 3a série do ensino médio, os alunos faziam muito barulho, batiam as carteiras no chão, arrastavam cadeiras e provocavam o professor o tempo todo, sem mencionar o entra-e-sai da sala. Conversavam sem parar. Eu contava os minutos para sair daquela bagunça, que sempre me deixava com dores de cabeça.

Essa é uma escola central na cidade. Visitamos também, no final de 2007, uma outra, na periferia. Não havia tanta sujeira e poeira nas salas de aula quanto na anterior. Porém, ao adentrar o forte portão de chapas de aço fechadas, o impacto foi impressionante: grades de ferro por todos os lados cercavam cada dependência do pátio da escola: uma para as mesas de pingue-pongue, outra para a quadra de futebol, para a sala de informática, para as escadas que davam acesso aos corredores e também para a secretaria e diretoria. Sentimo-nos como que a adentrar uma prisão e, relembrando o relato da  nossa estagiária, a visão poderia ser associada  a um manicômio, onde seres humanos alucinados gritam dentro das salas e outros vagueiam sem rumo pelos corredores.

Discursos – Serão essas as definições de uma escola pública no Brasil? É claro que há exceções, mas para a maioria as fotografias esboçadas pelos relatos parecem dizer que sim, embora saibamos que lá dentro estejam seres humanos ávidos por conhecer, por aprender a viver e se libertar. Nessas escolas reais, temos seres humanos verdadeiros e longos discursos sobre ideais de humanismo, respeito ao ambiente e aos direitos dos cidadãos convivendo entre prédios, ações, atitudes e cultura de cárceres e privações. E não pensemos que isso é privilégio de escolas públicas: muitas escolas privadas, cuja clientela tem alto poder aquisitivo, embora tenham bonitos prédios e muitos recursos técnicos, apresentam regras de comportamento idênticas; quando não, seus alunos ficam para o lado de fora, sendo comodamente atendidos por traficantes nos portões, em suas necessidades de compra de entorpecentes.

Por esses “retratos” e muitos outros que estas páginas não permitem publicar em detalhes é que concluímos que nos falta muito mais do que melhorias na formação e remuneração dos professores que atuam nas escolas brasileiras, a fim de transformarmos nossa educação. Falta mais ética por parte dos dirigentes de todas as instâncias educacionais, para empregarem de forma mais responsável os recursos financeiros que temos; falta a ética dos professores, para agir e criar uma cultura escolar real, que seja compatível com os discursos apregoados; falta ética e participação dos pais para cobrar os direitos de seus filhos a uma escola que os faça querer aprender, mas também o dever dos mesmos de se empenhar nesse aprendizado. Enfim, falta hombridade na sociedade brasileira para exigir uma educação que não construa novos cárceres, ao invés de escolas, de onde as pessoas não desejem mais “sair logo, para não estudar nunca mais”.

Mas quem se indignou com esse quadro? Se você tivesse que optar por uma carreira que exige nível superior de estudos, em que o salário médio mensal será de R$ 1,2 mil, com poucas chances de melhorias ao longo de sua vida, cujo único benefício é tirar alguns dias a mais de abono e de férias e muitas licenças-saúde, para enfrentar uma sala cheia, com 40 alunos que gritam e o agridem de todas as maneiras, e não ouvem o que você tem a dizer, ou ser uma ótima diarista, um excelente pintor de paredes ou um bom jardineiro, mecânico de carros, que, pelo mesmo salário médio, trabalham sossegados nas casas dos patrões, cujos filhos saíram para ir a essas escolas, o que você escolheria?

Há alguns meses, técnicos de algum ministério federal se pronunciaram, dizendo que não bastam políticas que geram dependência na área social, mas que é preciso investir na educação. Ameaça, afinal, cair a venda dos olhos das instâncias governamentais para enxergar o óbvio, que a sociedade brasileira insiste em não querer ver?

Se eu fosse o sr. Bill Gates, e tivesse todo o respeito que ele merece como cidadão, talvez a minha indignação tornada pública pudesse trazer algum efeito em nossas ações para resolver os problemas da educação brasileira, que são complexos e não se resolverão por decretos, como alguns ainda imaginam. Porém, mesmo não sendo o sr. Gates, não posso deixar de me indignar e as verdades aqui relatadas não deixarão de ser verdades. As soluções existem e são apontadas diuturnamente por especialistas e outras pessoas de bom senso. Faltam-nos organização, seriedade e uma ação integrada para atacar todos os problemas enfrentados em nossas escolas. Enquanto precisarmos construir cárceres para acomodar nossos alunos e enquanto estes se comportarem ali como dementes ou alucinados, o fracasso continuará a rondar nossa educação.

Edna Maura Zuffi é professora e pesquisadora em Educação Matemática do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos. A autora agradece à estagiária Aline Casone da Silva, cujos relatos inspiraram este texto

 
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