O cinema trava, desde seu início, no final do século 19, um diálogo intenso com a literatura, seja na forma como no conteúdo. No desenvolvimento de suas aproximações com o público, ambas as artes são capazes de prender a atenção e arrebatar o espectador. Marco Polli, em artigo publicado no Le Monde Diplomatique, Dos Livros para o Cinema, fala do

envolvimento precoce entre cinema e literatura. Diz que “o entusiasmo de muitos autores com o cinema é bem exemplificado pelos modernistas brasileiros: Mário de Andrade chegou a descrever o seu Amar, Verbo Intransitivo como um ‘romance cinematográfico’. Já a emergente indústria do cinema mostrava-se ávida por romances e contos que pudessem dar base às suas produções”.

É justamente disso que trata a mostra de cinema “Livros, Câmera, Ação”, promovida pelo Cinusp a partir desta segunda. Fica clara a pertinência do tema quando se observa o ranking de 2007 do American Film

O brasileiro O Cheiro do Ralo, de Heitor Dhalia, a partir do romance de Mutarelli (ao lado), e, abaixo, o clássico Morte em Veneza, de Luchino Visconti

Institute, que destaca os cem melhores filmes da história do cinema americano, mostrando que, dos longas da lista, 42 foram adaptados ou inspirados em romances e contos, sete foram baseados em livros de não-ficção e mais cinco em peças ou musicais de teatro. O instituto destaca títulos como O Poderoso Chefão (1972), um clássico baseado no livro de mesmo nome de Mario Puzo; Spartacus (1960), criado a partir da obra homônima de Howard Fast; E o Vento Levou (1939), baseado na novela de mesmo nome escrita por Margareth Mitchell; O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel (2001), que tem como ponto de partida o livro homônimo de John Ronald Reuel Tolkien; e Forrest Gump (1994), inspirado na novela de Winston Groom, que carrega o mesmo nome; Amor, Sublime Amor (1961), de Robert Wise e Jerome Robbins, que foi adaptado do musical homônimo da Broadway, que é, por sua vez, baseado na peça Romeu e Julieta, de Shakespeare.

O cinema conta, ainda, com outros clássicos baseados em obras literárias selecionados para exibição como Um Amor em Swann (Alemanha/França, 1984), obra-prima de Marcel Proust que teve sua versão cinematográfica dirigida por Volker Schlondörff; Morte em Veneza (Itália/França, 1971), escrito por Thomas Mann e levado para as telas por Luchino Visconti; Lolita (EUA, 1962), romance de Vladimir Nabokov que virou filme pelas lentes de Stanley Kubrick; e Macunaíma (Brasil, 1969), rapsódia de Mário de Andrade transposta para o cinema por Joaquim Pedro de Andrade. O caso desta última obra é interessante, pois, se o romance já havia sido representante da vanguarda do Modernismo literário no Brasil, o filme, por sua vez, foi produzido no momento do surgimento do Cinema Novo, na década de 60, outro período vanguardista brasileiro que culmina com a Tropicália. Tanto o filme quanto o livro adquiriram força e significado em momentos diferentes, mas seguindo a mesma temática e estrutura. Isso reforça o fato de que a transposição da gramática literária para a gramática particular do cinema constitui, por si só, um ato de inovação artística.

Uma outra forma de diálogo entre cinema e literatura diz respeito a uma transposição não completamente fidedigna da obra literária, mas sim a uma intertextualidade pontual, que permite a extração dos temas universais do romance e sua atualização. Nesse quadro encaixa-se o longa Match Point (EUA, 2005), em que Woody Allen reconstrói, a partir de outro ângulo, a cena de assassinato de Crime e Castigo, de Dostoiévski. O diretor diz, dessa forma, que os temas tratados pelo livro ainda são pertinentes, podendo ser revisitados pelo viés dos valores da sociedade atual.

Ainda estão presentes na mostra, A Dama de Honra (Alemanha/França, 2004), dirigido pelo premiado cineasta francês Claude Chabrol, que transforma em suspense romântico a obra homônima de Ruth Rendell; Mil e Uma Noites (EUA, 1974), de Pier Paolo Pasolini, uma adaptação da antiga antologia árabe O Livro das Mil e Uma Noites, formado por diversos contos eróticos; e Pecados Íntimos (EUA, 2006), com direção de Todd Field, baseado no romance Criancinhas, do escritor norte-americano Tom Perotta; O Cheiro do Ralo (Brasil, 2007), uma adaptação do primeiro livro de ficção do cartunista Lourenço Mutarelli dirigida por Heitor Dhalia; Fahrenheit 451 (Inglaterra/França, 1966), de François Truffaut, que dá uma assustadora dimensão realística à obra-prima literária de Ray Bradbury sobre um futuro sem livros; e Querelle (Alemanha/França, 1982), dirigido por Rainer Werner Fassbinder e baseado livremente no romance homônimo de Jean Genet.

A literatura nunca deixou de desafiar o cinema no que tange à riqueza da linguagem. Este, por sua vez, instiga o universo literário pela riqueza de suas construções imagéticas. Se o cinema se esforça para conseguir transpor a beleza das composições lingüísticas, por outro lado, a literatura vive uma fase em que não pode deixar de prestar contas aos estonteantes planos cinematográficos.

A mostra fica em cartaz até dia 27 de junho, com sessões de segunda a sexta, às 16h e 19h, no Cinusp, que fica na r. do Anfiteatro, 181, favo 4 das Colméias, Cidade Universitária, tel. 3091-3540. A programação completa da mostra e a sinopse dos filmes podem ser acessadas pelo site www.usp.br/cinusp. Entrada franca.

 
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