“Para minha viúva. Minha muito querida. Estamos em situação extremamente difícil e tenho dúvidas de que conseguiremos ultrapassá-la. Nos poucos momentos em que somos abençoados com um minguado calor, na hora do almoço, aproveito para escrever cartas que preparem a todos para um fim possível. A primeira carta naturalmente é

Foto crédito: Marina Bandeira

para você, em quem meus pensamentos, acordado ou dormindo, principalmente se concentram. Se algo me acontecer, eu gostaria que soubesse o quanto você significou para mim e o quanto me confortam, neste momento de partida, as agradáveis lembranças de nossa vida em comum. Gostaria que você também fosse por elas confortada e que tivesse certeza de que não sofrerei nenhuma dor, deixarei o mundo em plena atividade, com toda a saúde e vigor. Infelizmente já está estabelecido: quando as provisões acabarem, nós simplesmente ficaremos onde estivermos, a uma curta distância de algum outro posto.”

Quando o explorador inglês Robert Falcon Scott (1868-1912) escreveu a última carta para sua esposa, ele já sabia que iria morrer na Antártida, que não voltaria mais para a sua casa. Scott, naqueles momentos difíceis,

jamais poderia imaginar que um dia o mundo teria que ter a consciência de cuidar daquelas montanhas de gelo com o carinho de quem cuida da sua própria casa. Ele queria ser o primeiro a atingir o Pólo Sul, mas quando chegou ficou decepcionado ao se deparar com a bandeira do norueguês Roald Amundsen fincada um mês antes. Scott também não imaginou que a sua última carta, escrita a 70 graus negativos, fosse lida, 96 anos depois, por centenas de crianças que visitam a mostra “Latitude 90º – O impacto do aquecimento nos pólos”, no Sesc Pompéia, em São Paulo.

A história de Scott, Amundsen e outros desbravadores da Antártica é um dos destaques da mostra. “Latitude 90º” integra os eventos comemorativos do 4o Ano Polar Internacional, realizado a cada 50 anos. O programa engloba uma intensa campanha de pesquisas científicas, coordenadas por mais de 64 países. “A exposição marca também os 25 anos do Programa Antártico Brasileiro (Proantar), que consolidou a presença brasileira na Antártida”, explica Clóvis Arruda, um dos idealizadores e coordenador-geral da mostra. “As áreas polares são fundamentais para a vida na Terra, pois, conhecendo a dinâmica dos pólos, os cientistas conseguem entender melhor os ecossistemas do planeta e monitorar o impacto das agressões ao ambiente, orientando ações que podem fazer a diferença. A vida na Terra como a conhecemos está ameaçada.”

Transformar a linguagem científica em uma linguagem acessível, especialmente para as crianças, foi o desafio de “Latitude 90º”. Através de painéis com fotos, experimentos e instalações com computadores e vídeos, o público pode entender a formação dos continentes, observar os contrastes geográficos entre os pólos, os aspectos da vida no Ártico e a sua influência sobre o equilíbrio ecológico mundial.

Foto crédito: Cecília BastosConsciência – Apesar dos estudos desenvolvidos no país, a realidade dos pólos, para o grande público, parece estar muito distante. No entanto, o equilíbrio ecológico mundial depende dessa realidade. “A natureza vem sofrendo profundos abalos provocados pelo descaso com que os homens têm tratado o planeta”, explica Arruda. “Hoje, com mais de 6 bilhões de habitantes e uma sociedade industrial e de consumo sem precedentes na história, o planeta pede socorro.”

Os monitores da mostra orientam que o aquecimento global é um dos principais problemas do planeta. Ocorre devido à liberação de gases tóxicos na atmosfera, provenientes da queima de combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão), principalmente o gás carbônico e o metano. Esses gases têm provocado alterações na temperatura e no clima do planeta em velocidades nunca antes observadas.

O gás carbônico e outros gases formam uma capa na atmosfera que funciona como o telhado de uma estufa: permite a entrada de raios solares, mas retém parte do calor refletido pela superfície, que de outra forma se dissiparia no espaço. O resultado desse processo é o agravamento do efeito estufa, que é um fenômeno natural.

“Até o final deste século, o nível médio dos mares deverá aumentar significativamente com o derretimento da periferia da Antártida, do Ártico e dos cumes das montanhas de gelo”, esclarece Arruda. “Com isso, diversas ilhas e cidades costeiras podem desaparecer. O gelo dos pólos e das montanhas dá lugar a extensões de água e rocha, que refletem menos os raios solares e agravam ainda mais o efeito estufa.”

A Antártida é uma vez e meia maior do que o Brasil, com 13,6 milhões de quilômetros quadrados. É um continente coberto por uma camada de gelo de aproximadamente dois quilômetros de espessura, que pode chegar a cinco quilômetros. A massa que cobre o continente representa 90% do gelo de todo o planeta. Abaixo da camada de gelo, existem ilhas, montanhas , vales e lagos.

Há muita confusão entre o Ártico e a Antártida. O Ártico, ao contrário do que se pensa, não é um continente. É um oceano com uma imensa área de gelo, que oscila entre 7 milhões e 16 milhões de quilômetros quadrados. Localizado no Oceano Ártico, no extremo norte da Terra, é circundado pela Ásia, Europa e América do Norte.

O Oceano Ártico permanece congelado quase o ano todo. As principais atividades econômicas são caça, pesca, extração de madeira e criação de salmão. No Alasca, na Groenlândia e nos territórios controlados pela Rússia, Canadá e Dinamarca, existem também centros mineiros de ouro, urânio e petróleo, administrados por grandes companhias. Calcula-se que no Ártico existam 35 bilhões de barris de petróleo, um quarto de todas as reservas mundiais.

A mostra “Latitude 90º” alerta que o futuro do Ártico está em xeque. Nos últimos anos, o turismo vem aumentando tragicamente. O Ártico recebe 1,5 milhão de turistas por ano. As empresas divulgam esse roteiro com o slogan “Vejam antes que acabe”. Há ainda o descaso ambiental gerado pelo interesse no petróleo.

“A Convenção das Nações Unidas para Mudança do Clima usa o termo ‘mudança climática’ para as mudanças causadas pelo homem. O consenso científico identifica o aumento dos níveis de gases estufa como a principal causa do aquecimento que vivenciamos. Esse aumento se deve à atividade humana, e tem sido observado desde o início da era industrial”, esclarece Clóvis Arruda. “Preservar a atmosfera é sem dúvida um dos maiores desafios da humanidade no século 21.”


A exposição “Latitude 90º”, no Sesc Pompéia: tentativa de conscientizar a sociedade sobre ambientes essenciais para a vida no planeta, os polos

Fronteiras científicas – Esse desafio conta com a participação dos pesquisadores da USP. O Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP vem desenvolvendo um projeto que visa à compreensão dos ecossistemas microbianos antárticos e integra o programa oficial do 4º Ano Polar Internacional. A pesquisadora e professora Vivian  Pellizari explica que já participou de cinco expedições na Antártida. “Com o objetivo de explorar fronteiras científicas e aprofundar o conhecimento dos processos microbianos polares e suas conexões com o planeta, se faz necessário desenvolver o conhecimento sobre a diversidade microbiana”, observa. “A Antártida apresenta uma oportunidade única para a pesquisa sobre a biodiversidade e a evolução microbianas. Apesar disso, o tema da diversidade biológica no ambiente antártico durante muitos anos esteve relacionado com a diversidade de peixes, aves e mamíferos marinhos e raramente os microorganismos foram contemplados. Mais recentemente, após a introdução das técnicas moleculares, esse conhecimento tem avançado, trazendo novas informações sobre evolução, endemismo, invasão e seleção.”

Os resultados das pesquisas alertam para a necessidade de atitudes em busca do equilíbrio ecológico mundial. Atitudes que, segundo os monitores que orientam o público na observação da mostra, são simples. E só precisam de uma consciência no dia-a-dia. A monitora Fernanda Andrade explica: “Tire da tomada os eletrodomésticos que não estiver usando. Aproveite mais a luz do dia, abrindo as janelas. Economize água. Em vez de copos descartáveis, use caneca ou garrafinha plástica. Separe o lixo comum do reciclável. Use pilhas e baterias recarregáveis. Ande mais de bicicleta e prefira transporte público. Dispense o elevador e vá de escada. Plante árvores. Ao fazer compras, leve sua própria sacola, dando preferência às de pano”.

Repensar e transformar as atitudes... Cuidar do planeta como quem cuida da própria casa. Esse é o grande recado da mostra “Latitude 90º”. Um recado de esperança pontuado pela última carta do pesquisador Robert Falcon Scott endereçada à esposa e ao filho de 3 anos:

Escrevi cartas em páginas esparsas deste livro. Será que você vai conseguir enviá-las? Estou ansioso por você e o futuro do menino. Faça-o interessar-se por história natural, se você conseguir. É melhor do que jogos. Algumas escolas encorajam esse estudo. Sei que você o manterá, o máximo possível, ao ar livre. Tente fazê-lo acreditar em um Deus, é reconfortante.

A exposição “Latitude 90º – O impacto do aquecimento nos pólos” está em cartaz no Sesc Pompéia (rua Clélia 93, Pompéia, São Paulo, telefone 11 3871-7700) até 3 de agosto, de terça-feira a sábado, das 10h às 20h, domingos e feriados, das 11h às 19h. Entrada grátis.

 
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