Um grupo de professoras e acadêmicas estava particularmente emocionado na quarta-feira da semana passada (dia 25), durante o velório da antropóloga Ruth Corrêa Leite Cardoso, professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, falecida no dia 24 em decorrência de problemas cardíacos. O

jornal O Estado de S. Paulo registrou, na edição do dia 26, os depoimentos das chamadas “meninas da Ruth”: Ana Cristina Braga Martes, Helena Sampaio, Maria Filomena Gregori, Simone Coelho e Cátia Aida da Silva foram orientadas pela professora e se consideram continuadoras de sua obra.

“Aprendi com a Ruth a fazer pesquisa, a ter gosto de ir a campo, a valorizar pesquisas empíricas. Mas ela ensinava a viver, a conviver, a ver o mundo de um modo

Ruth na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos: carreira sólida

peculiar, muito perspicaz e delicado”, diz Ana Cristina, que foi orientada por Ruth Cardoso no mestrado e no doutorado e atualmente é professora na Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. “Todas as pesquisas que ela desenvolveu no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) sobre movimentos sociais e participação popular refletem essas qualidades e uma enorme abertura para apreender o novo.”

Intelectual respeitada no mundo político e nos setores ligados aos movimentos sociais, Ruth Cardoso teve na USP uma atuação acadêmica que deixou frutos hoje espalhados por inúmeras instituições Brasil afora, sejam públicas ou não-governamentais, nas áreas de ensino, pesquisa, assessoria, implantação e acompanhamento de políticas. “Ruth Cardoso orientou parte do nosso corpo docente, e muitos de nós fomos seus alunos. Sua orientação firme, erudição e amizade deixam saudades”, diz uma nota assinada pelo professor Omar Ribeiro Thomaz, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.

Inovação – A FFLCH, local em que a professora construiu sua carreira profissional – entre 1975 e 1978, por exemplo, foi coordenadora do curso de pós-graduação em Ciência Política –, foi o palco privilegiado para que esses frutos se manifestassem. Em depoimento a Gustavo Dainezi, do Serviço de Comunicação Social da FFLCH, José Álvaro Moisés, professor titular do Departamento de Ciência Política e diretor do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP, destaca a “experiência fantástica” que teve desde que foi aluno da antropóloga no curso de Ciências Sociais. “Realizei uma pesquisa na periferia de São Paulo que marcou definitivamente minha carreira. O viés da pesquisa foi muito rico porque ela se preocupava com a cultura da população, fator que podemos observar em toda a sua carreira”, relata.


A antropóloga Ruth Cardoso e uma das atividades do Comunidade Solidária, sua grande obra no governo FHC (abaixo): "generosidade, delicadeza e inteligência"

Moisés considera que um fato determinante foi Ruth Cardoso ter chamado a atenção para os estudos de antropologia urbana, além dos estudos tradicionais. “Foi extremamente importante no sentido em que chamou a atenção para os movimentos sociais diversos do país (mulheres, negros, homossexuais, entre outros). Ela trouxe uma visão inovadora, na medida em que, para ela, os movimentos deveriam participar da cena política e dialogar com a sociedade mesmo sem terem participação política ‘homologada’ através de siglas partidárias.” Para o professor, a antropóloga deixa um legado de “extrema generosidade, delicadeza e inteligência”.

O mesmo tom é adotado por Cláudio José Torres Vouga, docente aposentado do Departamento de Ciência Política, que foi orientado por Ruth Cardoso em seu doutorado, concluído em 1987. “Ela tornou-se minha amiga naquela ocasião e continuou sendo depois. Uma de suas marcas foi sempre ajudar e dar muita atenção aos mais jovens, como era o meu caso na época”, diz. Na carreira docente, em que posteriormente foram colegas, Vouga salienta características que marcaram a convivência: “Uma excelente companheira, com uma presença constante e generosidade intelectual imensa”.

Professor titular de Sociologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), José Ricardo Garcia Pereira Ramalho trabalhou com Ruth Cardoso entre 1974 e 1987, quando foi orientado por ela no mestrado e no doutorado. “Tive uma experiência excepcional por várias razões. Uma delas é que Ruth Cardoso era uma orientadora muito criativa, inteligente e séria, com um padrão de exigência muito grande, que estimulava o pesquisador de forma intensa”, diz.

No mestrado, concluído em 1979, Ramalho debruçou-se sobre o mundo do crime e estudou a penitenciária do Carandiru. “Era uma pesquisa pioneira no sentido social, e a orientação dela em termos de teoria, de metodologia e de indicação de leituras foi muito rica”, considera.

O professor ressalta ainda características pessoais importantes de Ruth Cardoso, como a generosidade e a lealdade para com seus orientandos e o estímulo à interlocução com outros pesquisadores. “Embora fosse uma pessoa fundamental na USP, ela era bastante modesta, no bom sentido. Em nosso meio é muito comum a vaidade prevalecer sobre a qualidade e a profundidade do trabalho. Esse não era absolutamente o caso dela, que mesmo dotada de profundo conhecimento era uma pessoa simples”, afirma.

Diversidade – “As diferenças políticas nos afastaram sem nos afastar”, testemunha a antropóloga Regina Novaes, professora aposentada do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ. Regina conviveu intensamente com Ruth Cardoso quando esta a orientava na tese de doutorado “De corpo e alma: catolicismo e conflito no campo”, concluída em 1989. O trabalho foi produzido em meio à efervescência do final da ditadura militar, da abertura política e da constituição de novos partidos. Regina permaneceu ligada ao PT, enquanto Ruth Cardoso dedicou-se à construção do PSDB, fundado em 1988. “Nossa convivência nesse momento foi o que eu chamo de um exercício democrático de respeito à diversidade. Em nenhum momento as diferenças no campo político se refletiram no acadêmico”, afirma Regina.

 

Imigração japonesa foi tema de pesquisa


Ruth Cardoso com Tomie Ohtake: estudos sobre a comunidade japonesa

A comemoração do centenário da imigração japonesa no Brasil guarda uma relação com a trajetória de Ruth Cardoso na USP. Em seu doutorado, a antropóloga estudou a mobilidade social dos imigrantes japoneses e seus descendentes. Ruth Cardoso iniciou sua pesquisa em 1963, mas precisou deixar o país por conta da perseguição da ditadura militar a ela e ao marido e só pôde concluir o trabalho em 1972, quando defendeu a tese “Estrutura familiar e mobilidade social – Estudos dos japoneses no estado de São Paulo”, orientada por Eunice Durham. Em 1998, na celebração dos 90 anos da imigração, o texto foi publicado numa edição especial trilíngüe (em português, inglês e japonês) organizada por Masato Ninomiya, professor da Faculdade de Direito da USP.

 

Uma carreira irretocável

SUELY VILELA

Tecer considerações sobre a irretocável carreira acadêmica de Ruth Cardoso na USP pode parecer redundância diante dessa grande pesquisadora que alcançou reconhecimento em nosso país e no exterior, dedicando-se a estudos antropológicos, principalmente na área de políticas sociais brasileiras.

Mais do que sua brilhante trajetória em nossa Universidade, o grande legado que Ruth Cardoso nos deixa, atestado por aqueles que tiveram a felicidade de privar de sua convivência, compartilhando de seus estudos e ideais, é a grande generosidade, não apenas intelectual, com que sempre brindou seus colegas e alunos na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH).

Muitos desses estudantes, seus orientados de mestrado e doutorado, hoje fazem parte do quadro de docentes da USP, com sólida atuação e destaque em seus campos de estudo. Outros são lideranças que dela herdaram os programas sociais que a notabilizaram no cenário nacional e internacional. Todos, certamente, foram inspirados pela chama que sempre moveu a grande mestre Ruth Cardoso em busca de um país melhor.

Suely Vilela é reitora da USP

 
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